INTRODUÇÃO
No século XXI, vivencia-se a hegemonia da economia e da tecnologia. A economia se sobrelevou à política, à religião e às relações humanas. A industrialização originou a modernização, o avanço tecnológico e a supervalorização da ciência. Por conseguinte, a sociedade contemporânea, em exacerbado processo de mudança, está dispersa e carente de referenciais, há um vazio racional e ontológico fundamental.
Na área da saúde os avanços se propagaram com a informatização e o surgimento de equipamentos modernos, que trazem benefícios e rapidez ao diagnóstico e tratamento de doenças. Essa tecnologia à serviço do homem contribuiu para a solução de problemas antes não resolutivos, e pode proporcionar melhores condições de vida e saúde para as pessoas.1
Contudo, as tecnologias nem sempre resultam em benefícios. Com o capitalismo, a técnica/tecnologia sai do seu papel de uso e torna-se mercadoria.1 Isso gera a mercantilização da saúde, na qual o cuidado com o outro e a cura passam a ser objetos de lucro.
Neste contexto, a Enfermagem, como profissão da área da saúde, tem historicamente, seu conhecimento disciplinado no cuidado humano. É, pois, incoerente e inaceitável que esse cuidado seja desempenhado por meio de ações consideradas “robotizadas”.2
Ainda assim, observa-se na enfermagem, uma tendência dos profissionais a fugirem da responsabilidade do cuidar do outro. O processo de coisificação do outro pode desencadear na enfermagem o esvaziamento substantivo do Ser-paciente.3 Dessa forma, o enfermeiro é levado a manter-se distante de seu modo mais essencial de ser, que é o cuidado.
Percebe-se, com isso, que a vida moderna valoriza o imediatismo e remete as pessoas para a falta de compromisso moral com o outro, gerando a fluidez nas relações de cuidado.2 Entretanto, cabe observar, que é o cuidado que conduz o homem ao universo existencial. O cuidado é, portanto, o primeiro gesto da existência. Para que o homem possa desenvolver-se como pessoa, é indispensável que ele conviva com outros entes e que realize trocas com os seus semelhantes. Entende-se, com isso, que o homem apenas se conhece na sua relação com o outro.4
Ao refletir sobre o cuidado, talvez seja possível compreender que as atitudes dos profissionais de enfermagem precisam ser reavaliadas constantemente, pois, apesar de terem o cuidado como base da profissão, ainda deparam-se com atitudes e práticas que os tornam mecanicistas. Precisam reconhecer o cuidado na perspectiva ontológica de sua existência, para que possam desenvolver uma prática de enfermagem humana e solidária, para além da técnica.
Assim sendo, esse artigo objetiva apresentar uma reflexão analítica sobre o cuidado em enfermagem, no cenário atual da saúde, segundo a essência do cuidado de Martin Heidegger.
MÉTODOS
O presente estudo foi desenvolvido durante a disciplina “Bases epistemológicas e filosóficas das ciências em saúde e enfermagem” do Doutorado realizada no primeiro semestre de 2016.
Trata-se de estudo descritivo, tipo análise teórico-reflexiva, construído a partir do conceito de cuidado proposto pelo filósofo Martin Heidegger, no livro “Ser e Tempo” e de leituras sobre o cuidado em enfermagem, disponíveis em artigos científicos nas bases eletrônicas de dados: LILACS, MEDLINE, IBECS e BDENF, utilizando-se os descritores: cuidados de enfermagem, filosofia em enfermagem e tecnologia.
A partir da combinação desses descritores obteve-se 53 artigos. Após isso, aplicou-se os critérios de inclusão, que abrangeu artigos com textos completos disponíveis na íntegra, estudos originais e que foram pertinentes ao presente estudo, independentemente do idioma de publicação. Já os critérios de exclusão consistiram em artigos repetidos, resenhas, anais de congresso e editoriais. Foi realizada avaliação dos títulos e resumos o que possibilitou a exclusão de vários artigos. Após isso, foram selecionados 12 artigos os quais foram lidos e analisados na íntegra.
Essa produção teórica caracteriza-se como abordagem qualitativa, devido à interpretação e à análise dos elementos teóricos e filosóficos, conforme a analítica ontológica explorada em “Ser e Tempo”. Essa foi dividida em dois eixos temáticos: o cuidado de enfermagem e o cuidado em enfermagem na perspectiva heideggeriana.
DESENVOLVIMENTO
O cuidado de enfermagem
O atual momento da humanidade é marcado por crises e incertezas no que concerne à percepção do ser humano e da sociedade. Na área da saúde, isso tem motivado reflexões importantes, particularmente sobre o cuidado na prática dos profissionais.5
Por outro lado, o avanço tecnológico da área tem aumentado a produtividade e viabilizado outras formas de cuidar. Tais avanços não interferem somente na forma de cuidar, mas nos valores, no conhecimento, nas habilidades, bem como nas políticas de atenção em saúde.6
A falta de cuidado, no cotidiano do homem, representa o grande problema da humanidade. É preciso que os profissionais que lidam diretamente com a vida humana desenvolvam um cuidado ético consigo e com os outros.7
Há, pois, a necessidade de se refletir que a crescente cultura tecnológica não pode e não deve afastar o cuidado, a relação, o diálogo, as trocas e empatias entre profissionais e sujeitos do cuidado. Elas devem ser incorporadas para dinamizar, facilitar e guiar condutas de melhoria da saúde das pessoas e das condições do trabalho no setor saúde.
No contexto da enfermagem, observa-se uma clara fase de mudanças que gera o prevalecimento do interesse pelo capital econômico, sobre o desinteresse pela mão de obra do profissional.8 Assim, as transformações tecnológicas produzidas não interferem somente no cuidado, mas nos valores, no conhecimento, nas habilidades, bem como as políticas de atenção em saúde.6
Vale ressaltar que o processo laboral do enfermeiro é considerado complexo, devido à necessidade de desempenho de atividades gerenciais e assistenciais, determinando a tomada de decisão adequada e rápida.
Isso contribui para que na assistência à saúde, as atividades sejam organizadas de maneira apressada, de modo a tornarem-se indiferentes, isso ocasiona o que se chama de esquecimento-do-ser.4 Em meio a essa celeridade demasiada, a saúde, o cuidado e as pessoas sofrem os resultados da indiferença. O conhecimento fica limitado a especializações e o pensamento fracionado, fato que conduz à compreensão dos acontecimentos da vida de forma limitada.2
Esse esquecimento-do-ser, pode estar associado ao descompromisso profissional, à falta de reflexão pessoal sobre a essência do trabalho da equipe de enfermagem, mas também pode estar atrelada à sobrecarga de funções laborais.
Assim, observa-se que o enfermeiro, na atualidade, convive com uma rotina de trabalho muito árdua, caracterizada pela exploração física e mental. Gradativamente ele se torna individualista, e passa a desempenhar somente as prioridades assistenciais dos pacientes sob sua responsabilidade. Isso funciona como uma forma de reação passiva a todas as suas obrigações. Neste contexto, o enfermeiro é constantemente forçado a ir além de seus limites, fato que prejudica a qualidade do cuidado prestado.
Em virtude das condições adversas presentes no ambiente de trabalho, alguns enfermeiros tendem a buscar meios para minimizar o sofrimento e o cansaço, tornando-se mais resistentes e adotando atitudes defensivas ou indiferentes ao processo laboral, optando pela fuga ao trabalho, comprometendo os resultados finais do trabalho.8
Dessa forma, o enfermeiro, muitas vezes, compreende a essência da profissão, busca prestar o cuidado, mas não consegue aplicá-lo de forma efetiva, uma vez que, o tempo dispensado para o cuidado é muito limitado, tendo em vista que é exigido que ele desempenhe atividades assistenciais, gerenciais e administrativas.
No sistema de saúde atual o enfermeiro é vislumbrado como um praticante, diante da tríade: tecnologia, enfermeiro e paciente.9 Os enfermeiros precisam depreender que o cuidado e a tecnologia estão interligados, pois a enfermagem está comprometida com princípios, leis e teorias. Portanto, a tecnologia é representada pela expressão do conhecimento científico e em sua transformação como ciência, enquanto a filosofia possibilita ao profissional a reflexão de forma crítica e participava sobre o seu fazer.10
Nesse sentido, destaca-se aqui que a enfermagem, apesar das múltiplas atividades laborais, deve caminhar nesse novo paradigma, vencer desafios e progredir, cada vez mais, em sua missão maior - o cuidado humano. Cuidado esse, que se diferencia de outras formas de cuidar, pois na enfermagem essa ação tem um sentido e representa um ato com intenção terapêutica, que exige competência técnica, habilidade, compromisso e ética dos seus atores.11
A história da enfermagem mostra que tudo começou com a técnica, avançou para os princípios científicos, chegou à teorização do seu saber e enfrenta no momento atual o desafio de operacionalizar a sua prática, incluindo exatamente técnicas, métodos, teorias e instrumentos que auxiliem a tomada de decisão e organização do trabalho.11,12
Para tanto, é necessário que o profissional esteja empenhado com a sua prática, buscando renovar constantemente seus conhecimentos.10 Deve também buscar sempre aproximação com o principal sentido da sua profissão, o cuidado, que se traduz por “proteger, promover e preservar a humanidade, ajudando pessoas a encontrar significados na doença, no sofrimento, na dor e na própria existência”.13
Nessa direção, o cuidado é mais do que um ato particular ou uma virtude. É um modo de ser. É a forma como o ser humano se estrutura e se realiza no mundo com os outros, produzindo relações que se estabelecem com todas as coisas.14
O cuidado em enfermagem na perspectiva heideggeriana
Martin Heidegger (1889-1976), um dos primeiros filósofos existencialistas e um dos maiores filósofos do século XX, voltou seu olhar para a compreensão do ser. Para ele não basta a experiência da realidade, mas a própria existência. Em seu livro Ser e Tempo, Heidegger trata o homem como expressão ontológica - o homem não mais visto como objeto no mundo, mas colocado como ente - mortal, finito, que já traz consigo uma compreensão do mundo, tendo que se fundar e cuidar o tempo todo.
Para Heidegger, o homem, cuja existência ele chamou de Dasein, encontra-se lançado no mundo e em sua essência, esse ser-no-mundo, o ser-aí, é “cura”, sendo visualizado de forma puramente ontológico-existencial. Dessa forma, a “cura” não implica, primordial ou exclusivamente, em uma estrutura isolada do eu consigo mesmo. A “cura”, assim como propõe o filosofo, significa tanto o “esforço angustiado”, quanto o “cuidado” e a “dedicação”.4
Observa-se, então, que o cuidado induz a uma série de ocupações e preocupações do ser-aí, no exercício de sua existência. Tendo em vista que este ser sempre se ocupa com as coisas e se preocupa com as pessoas, o cuidado é algo intrínseco da existência humana; com isso, o cuidado é uma estrutura ontológica essencial na conservação da existência humana e de todo o tipo de vida. Para explicar isso, Heidegger, em “Ser e tempo”, remete à fábula/mito de Higino, que trata do sentido do cuidado para com a vida humana.4
“Certa vez, atravessando um rio, “cura” viu um pedaço de terra argilosa: cogitando, tomou um pedaço e começou a lhe dar forma. Enquanto refletia sobre o que criara, interveio Júpiter. A cura pediu-lhe que desse espírito à forma de argila, o que ele fez de bom grado. Como a cura quis então dar seu nome ao que tinha dado forma, Júpiter a proibiu e exigiu que fosse dado o seu nome. Enquanto “Cura” e Júpiter disputavam sobre o nome, surgiu também a terra (tellus) querendo dar o seu nome, uma vez que havia fornecido um pedaço de seu corpo. Os disputantes tomaram Saturno como árbitro. Saturno pronunciou a seguinte decisão, aparentemente equitativa: “Tu, Júpiter, por teres dado o espírito, deves receber na morte o espírito e tu, terra por teres dado o corpo, deves receber o corpo. Como, porém, foi a “cura” quem primeiro o formou, ele deve pertencer à “cura” enquanto viver. Como, no entanto, sobre o nome há disputa ele deve se chamar ‘homo’, pois foi feito de húmus (terra)”.4
Observa-se, pois, que Heidegger apresenta esta fábula para demonstrar que o cuidado remete necessariamente à existência humana, é condição primitiva de cada ser. Pode ser entendido como ato, no sentido ôntico, mas vai além do ato, além do que se pode perceber, ocupando um sentido ontológico.2
Para compreender a si e a própria existência o homem se descobre um ser de cuidado. Se este não receber cuidado desde o nascimento até a morte, ele desestrutura-se, definha, perde o sentido e morre. Se durante toda a vida não fizer com cuidado tudo o que cultivar, acabará por depreciar a si mesmo e por aniquilar o que estiver ao seu redor. Por isso o cuidado deve ser compreendido como essência humana.8
Na esteira do pensamento heideggeriano, coloca-se a enfermagem como uma ciência que cuida de pessoas e em cujo cuidar circunscreve relações entre essas, o trabalho e o modo de ser de cada profissional. Assim, o cuidado em enfermagem, aproxima-se do modo ontológico de pensar do filosofo, pois o cuidar deve ultrapassar um simples acompanhamento do paciente, deve gerar construção de afinidade, na medida em que o enfermeiro e a pessoa cuidada vão se conhecendo. Neste processo relacional, os dois compreendem e aprendem a estabelecer pontes que levam ao desvelamento do mundo de ambos, aprofundando dessa maneira, a relação de cuidado.
Percebe-se assim, que o enfermeiro é um ser de relação com as pessoas que cuida. O ser da enfermagem obtém sentido a partir do momento que utiliza a linguagem na interação humana, com ela externa seu saber e sua intencionalidade para o cuidado para com o outro e lhe compreende como um todo.15) É a assistência de enfermagem que vai possibilitar que se estabeleça o diálogo com o ser de cuidado, visto que o vínculo entre enfermeiro e paciente é o fator mais importante da assistência, caracterizada pelo cuidado.
Por meio do diálogo há o favorecimento da escuta e o compartilhamento de significados, assim, o ser cuidado e o cuidador se fazem humanos e torna-se possível construir uma relação compreensiva de cuidado.15
Nesse modo de relação, o enfermeiro se reconhece como um ser-aí em interação com as pessoas, reflete sobre seu contexto vivencial e interpreta a realidade da prática, condição essencial para a compreensão do ser cuidado.16) A cura de Dasein envolve o cuidado de si, na continuidade de suas práticas, a preocupação e compreende o cuidado para dar sentido e significado à existência de si e dos outros.15
Heidegger, em seu texto sobre a cura, postula que quando se cuida do outro, esse cuidar encontra-se no modo da ocupação e já se constitui em estar preocupado. “A cura é sempre ocupação e preocupação, mesmo que de modo privativo”.4
Pode-se compreender que o cuidar se apresenta como preocupação autêntica para a enfermagem quando favorece o desenvolvimento para com o outro, ou pode mostrar-se como modo inautêntico, quando a enfermagem volta sua preocupação para coisas, objetos, ou quando trata o ser cuidado de forma objetiva, sem visar suas conquistas e seu crescimento.
Esta é, pois, uma discussão que ainda é pouco levantada. A enfermagem, ao mesmo tempo em que cuida de coisas e objetos, estes próprios de sua competência de trabalho, não deve fazê-lo inautenticamente, mas buscar neles também a essência desse fazer e aliar a esse cuidar o propósito de sua finalidade que é o cuidado do outro.
Assim, compreende-se que o cuidado em enfermagem, na perspectiva ontológica heideggeriana, implica em atividades desenvolvidas pelos profissionais para e com o ser, tendo por base o conhecimento, a habilidade, a intuição, o pensamento crítico e a criatividade, que contribuirão para a promoção, manutenção e recuperação da dignidade e totalidade do ser.
É esse envolvimento voluntário, sem imposição ou tendências que precisa ser praticado pelo enfermeiro. Esse não deve cuidar ou se utilizar desse termo de forma obrigatória, mas procurando perpetrar um modo de ser autêntico capaz de manifestar sua existência.
Por fim, o cuidado na enfermagem tem base legal, competências, habilidades, técnicas, pensamento crítico, além de conhecimento e intuição.17) Entretanto, deve-se “estar consciente” e pensar sobre as formas de agir para que o cuidado em enfermagem alcance a perspectiva do cuidado apresentado por Heidegger.
CONCLUSÕES
Notou-se, portanto, que apesar do cenário atual da saúde ser marcado pela utilização de tecnologias, cada vez mais modernas, pelas múltiplas atividades laborais do enfermeiro e pela exacerbação do capitalismo, há necessidade de se desenvolver um cuidado em enfermagem ético, humano e baseado em habilidades, competências, atitude profissional e na valorização da subjetividade de cada ser cuidado. Assim, os enfermeiros, por terem o cuidado como essência do ser e da própria profissão, precisam cuidar com uma atitude de ocupação e preocupação, para isso precisam unir a competência técnica com a sensibilidade, a afetividade e o respeito.
Dessa forma, as relações de cuidado, apesar de serem cotidianas, não podem adquirir um caráter de des-cuidado, mas deve-se sempre adotar uma postura empática e de sensibilidade, procurando se perceber no lugar do outro, depositando na assistência a sensibilidade e a preocupação, em uma atitude Heideggeriana. Há necessidade de envolvimento e compromisso com o outro.
Acredita-se que essa reflexão analítica ajudará no empoderamento dos profissionais de enfermagem sobre o cuidado como uma atitude de liberdade, responsabilidade e comprometimento com o ser humano.