INTRODUÇÃO
Pacientes que são internados em unidades de terapia intensiva (UTI) estão sujeitos a sofrerem distúrbios endócrinos que se manifestam nas modificações dos níveis glicêmicos, dentre eles, comumente relatados, os episódios de hiperglicemia.1 Como consequência, a hiperglicemia aumenta os riscos de complicações relacionadas ao sistema de mediação da resposta inflamatória, repercutindo no aumento do tempo de internação hospitalar e nos índices de mortalidade. Desta forma, uma das ações estreitadas se desenlaça no controle glicêmico através da infusão contínua de insulina (ICI), que passou a ser o alvo nas condutas destinadas a esta clientela.2,3
O uso de infusão venosa de insulina em pacientes críticos para o controle glicêmico é estudado desde o ano de 2001, em que inicialmente se realizou a comparação sobre o controle glicêmico convencional e o controle glicêmico intensivo. Através de uma análise, tendo-se o perfil amostral de pacientes de pós-operatório de cirurgia cardíaca, observou-se que no grupo em que o controle glicêmico era mantido de modo intensivo entre 80 - 110 mg/dl houve a diminuição significativa nas taxas de mortalidade, sepse, transfusão sanguínea e de necessidade de diálise. Este estudo foi chamado de Leuven I e lançou perspectivas de sua continuidade para o ano de 2006, em um segundo estudo intitulado Leuven II, no qual resultados similares não foram alcançados. Entretanto, observou-se a contribuição do uso da insulina venosa de modo intensivo na redução do tempo de internação hospitalar, na redução do uso da ventilação mecânica e da necessidade de diálise.4,5
Denota-se através dos resultados de ambos os estudos que apesar de comprovados os benefícios do controle glicêmico precoce em pacientes críticos, ainda existem fatores que influenciam na sua sobrevida, tais como a dificuldade de se manter, estabelecer e controlar adequadamente os níveis glicêmicos para um bom funcionamento dos órgãos-alvo através da terapia de insulinoterapia intensiva. Contudo, é possível constatar que o quesito do manejo da terapia de infusão contínua pela equipe de saúde está intrinsecamente ligado à diminuição da mortalidade de pacientes críticos.
Um consenso da American Association of Clinical Endocrinologists (AACE) e da American Diabetes Association (ADA) assevera que é necessário um controle glicêmico na UTI, desde que este não seja tão rigoroso ao ponto de ocasionar hipoglicemias.5) Já a Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD), em seu posicionamento oficial nº 03/2015, corrobora com estes dois organismos internacionais e estabelece que as metas de níveis glicêmicos devam variar entre 140 e 180 mg/ dl, devendo-se evitar glicemias abaixo de 100 mg/dl. Nestas literaturas, os eventos de hipoglicemia são correlacionados como uma das principais complicações associadas à infusão contínua de insulina na terapia intensiva, afetando cerca de 2 a 11 % dos pacientes.5,6,7,8,9
Em 2015, um estudo de revisão integrativa cujo objetivo foi discutir o conhecimento produzido sobre o controle glicêmico de pacientes críticos que receberam a infusão contínua de insulina obteve como conclusão a importância de se fornecer subsídios para os membros da equipe multidisciplinar de saúde envolvidos na prática de vigilância medicamentosa intensiva através da observância sobre as implicações da hipoglicemia grave durante esta terapia.10) Desta forma, denota-se a importância destes profissionais para o controle dos riscos nos processos assistenciais, na sistematização do cuidado de pacientes críticos, na segurança do paciente e na execução de protocolos institucionais, levando-se em consideração a sua facilidade, segurança e viabilidade de aplicação.11,12,13
Sobre esta lente, torna-se pertinente problematizar o presente tema, no que concerne ao manejo complexo do controle glicêmico de pacientes graves dentro das unidades intensivas e à possibilidade de minimização da ocorrência de hipoglicemia associada à ICI a partir da identificação dos fatores de riscos associados às evidências científicas disponíveis a fim de que estas possam gerar subsídios à pratica de cuidado mais assertiva para profissionais envolvidos na assistência ao cliente crítico. Espera-se que o reconhecimento sobre tais fatores de risco associados à insulinoterapia intensiva possibilite a prevenção dos episódios furtivos de hipoglicemia e diminua os índices de mortalidade, assim como reduza o aumento do tempo de hospitalização de desta clientela.
Neste sentido, o presente estudo teve como objetivo identificar na literatura os fatores de risco para hipoglicemia durante a infusão contínua de insulina endovenosa.
MÉTODOS
Estudo de abordagem qualitativa, tipo revisão integrativa de literatura. A revisão integrativa de literatura é um método incorporado em diversas áreas do saber por possibilitar a sistematização do conhecimento científico e a aproximação sobre a problemática apreciada, facilitando o estreitamento sobre um panorama evolutivo temático retratado por diferentes autores, gerando, assim, subsídios às pesquisas posteriores. 14
A realização de estudos integrativos tem suas origens na PBE (Práticas Baseadas em Evidencias), que preveem modalidades de identificação e de diagnóstico para a solução de problemas clínicos reais, embasando o processo de tomada de decisão mais assertivo de profissionais, tendo como princípios a valoração do processo crítico de avaliação e de verificação das evidências científicas existentes.15
Para a sua realização seis etapas cruciais foram respeitadas e delineadas: a definição da questão norteadora; a definição dos critérios de seleção dos artigos; a seleção das publicações que compuseram a amostra da revisão; a descrição dos achados nos artigos selecionados; a interpretação dos resultados; e o relato final da revisão.16
Na primeira etapa, foi definida pelos pesquisadores a seguinte questão norteadora de estudo: Quais são os fatores de risco para hipoglicemia em pacientes críticos que utilizam infusão contínua de insulina?
Assim, a segunda e a terceira etapas que foram realizadas no intercurso dos meses de marco a abril de 2017 objetivaram definir os critérios de busca e de seleção das publicações através do estabelecimento de critérios de inclusão e de exclusão. Os critérios de inclusão propostos foram: intervalo temporal de 2011 a 2015 em buscas realizadas no âmbito da BVS (Biblioteca Virtual de Saúde) nas bases: LILACS- Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde; MEDLINE- Medical Literature Analysis and Retrievel System Online; e BDENF (Base de Dados de Enfermagem); e o recorte temporal entre os anos de 2012 e 2016 nas buscas realizadas na base Pubmed. Foram incluídos artigos em inglês, em espanhol e português desde que abordassem os fatores de risco para hipoglicemia associada à insulina venosa contínua em população adulta, após a leitura atenta de seus títulos e resumos. Consideraram-se inelegíveis a esta revisão as publicações que não se encontravam disponíveis em full-text ou duplicadas.
Os descritores utilizados foram: insulina, fator de risco, hipoglicemia e os Mesh Therms na base Pubmed: insulin, hipoglycemia, intensive care unit. Em ambas as investigações, utilizou-se o operador booleano and, sendo a amostra inicial de estudos pré-refino de 286 artigos na BVS e de 87 artigos na Pubmed.
Posteriormente, aplicou-se os critérios de inclusão e exclusão, sendo selecionados 11 artigos, conforme demonstrado através da figura 1. Cabe sinalizar que a seleção dos estudos foi realizada por dois pares de revisores em caráter independente. Desta forma, almejou-se conferir rigor ao processo de busca e de inclusão dos artigos.
A quarta etapa destinou-se a descrever os resultados dos 11 estudos expondo o ano de maior publicação sobre o tema, os resultados por base de dados, a língua predominante das publicações e as avaliações sobre os níveis de evidências científicas. Desse modo, foram categorizadas como Nível I as evidências oriundas de revisões sistemáticas ou meta-análise de ensaios clínicos randomizados controlados ou provenientes de diretrizes clínicas baseadas em revisões sistemáticas de ensaios clínicos randomizados controlados; Nível II, as evidências derivadas de pelo menos um ensaio clínico randomizado controlado bem delineado; Nível III, as evidências obtidas de ensaios clínicos bem delineados sem randomização; Nível IV, as evidências provenientes de estudos de coorte e de caso-controle bem delineados; Nível V, as evidências originárias de revisão sistemática de estudos descritivos e qualitativos; Nível VI, as evidências derivadas de um único estudo descritivo ou qualitativo; e Nível VII, as evidências oriundas de opiniões de autoridades e/ou relatórios de comitês de especialistas.17
A quinta e a sexta etapas almejaram integrar os resultados provindos dos estudos elencados através da leitura adensada em sua íntegra, a realização da interpretação e a confecção do relato final que compôs o item de discussão deste artigo.
DESENVOLVIMENTO
Foram selecionados n = 11 artigos para compor a pesquisa. O ano de maior publicação sobre o tema dos estudos eleitos foi o ano de 2014, com quatro estudos, seguido pelos anos de 2013, 2015 e 2016 com n = 2 estudos, respectivamente, e o ano de 2012 com um único estudo associado à temática (Quadro).
A base de dados que retornou maiores resultados foi a Pubmed com n = 5 estudos, seguida da base MEDLINE com n = 4 estudos e as bases LILACS e BDENF com apenas n = 1 estudo cada. A língua predominante foi a inglesa com n = 8 estudos, seguida da língua portuguesa n = 2 e espanhola n = 1.
Estudos de nível de evidência IV foram predominantes. Os autores em sua maior parte eram da área médica. Não houve publicações no ano de 2011.
Os dispositivos de monitorização contínua da glicemia em pacientes críticos em uso de ICI têm se mostrado uma tecnologia segura e eficaz, fornecendo as condições de monitoramento e alcance sobre a meta glicêmica ideal de 140 - 180 mg/dl, de acordo com o protocolo NICE - SUGAR. Associa-se como aliado aos dispositivos, em favor do processo de alcance de metas glicêmicas, um protocolo nutricional adequado, podendo este minimizar a ocorrência de hipoglicemia.18) No entanto, tais dispositivos devem dispor de uma boa acurácia e calibração, visto que são eles que determinam as modificações realizadas na infusão, interferindo, dessa forma, nas dosagens medicamentosas e protocoladas nas unidades intensivas.
Foram comparadas a eficácia e a segurança de dois protocolos em uma unidade médica de terapia intensiva. Neste estudo, o alvo glicêmico intensivo era de 85 a 110 mg/dl e o protocolo modificado possuía um alvo glicêmico de 140 a 180 mg/ dl. Esta modificação foi realizada a fim de seguir as novas recomendações da AACE e da ADA. Constatou-se que alvos glicêmicos menos intensivos são capazes de alcançar a meta de glicemia sanguínea mais rapidamente e que as taxas de ocorrência de hipoglicemia grave foram menores.19
Um alvo glicêmico menos intensivo coaduna com uma meta glicêmica mais elevada, esta tem se mostrado mais eficaz quando se trata de minimização da hipoglicemia nos pacientes submetidos à ICI. Assim, torna-se importante analisar os protocolos utilizados nas unidades de terapia intensiva para nortear as equipes de saúde que estão responsáveis pela monitorização do paciente sobre vigência nesta terapia.
Um artigo de revisão concluiu que um controle glicêmico rigoroso aumenta o risco de hipoglicemia e sugere que um controle glicêmico moderado é apropriado para minimizar a ocorrência do mesmo. Em outro extremo, existe em certos casos uma associação positiva da hipoglicemia em pacientes diagnosticados com quadros de insuficiência renal e diabetes, como também em pacientes que faziam uso de vasoaminas.20,21
Constatou-se também que em casos em que há Falha de Órgãos Sequencial (SOFA), a insuficiência renal aguda e a hemoglobina glicada (HbA1c) se fazem presentes, existe um maior fator de risco independente para o desenvolvimento de hipoglicemia.22
Quanto às ações protocolares estreitadas sobre o controle de eventos de hipoglicemia, um estudo que refinou o protocolo de Yale aumentando a faixa-alvo do controle glicêmico conseguiu eliminar de modo significativo as hipoglicemias. Este mesmo estudo observou que o atraso nas aferições da glicemia também é um fator que predispõe a ocorrência de hipoglicemias.23
Através do uso do modelo informatizado do protocolo supracitado, observou-se que as principais causas para ocorrência de moderada foram o (1) desvio do protocolo por parte dos profissionais, isso inclui os atrasos das medições que deveriam ser realizadas a cada 1 hora; (2) as recomendações dirigidas pelo próprio protocolo, tais como aferições da glicemia de 2h a 4 h de intervalo, a reinicialização da infusão em casos de níveis glicêmicos em queda ou em baixa constatada e a continuação da infusão de insulina com glicemias < 100 mg/dl.24
Outros fatores merecem destaque para a ocorrência dos eventos de hipoglicemia durante a ICI, dentre eles a não padronização da via de coleta de sangue para sua aferição, os atrasos nas aferições, os ajustes inadequados da velocidade da ICI descritos nos protocolos, a ausência ou inadequação do suporte nutricional e problemas orgânicos associados, tais como a sepse, a falência orgânica, a insuficiência renal com necessidade de hemodiálise, a doença hepática e o diabetes mellitus.25 A não padronização da via de coleta de sangue para aferição da glicemia conduz a ajustes inadequados da velocidade da ICI. Neste sentido, é sabido que o sangue ideal para aferição glicêmica é o venoso e arterial, uma vez que os dispositivos de aferição capilar estão sujeitos às influências de drogas vasoativas e das anemias.
As aferições tardias ou erradas da glicemia, assim como o não entendimento do protocolo de ICI, os alvos glicêmicos intensivos para diferentes quadros clínicos e a insuficiência renal crônica, foram causas prevalentes no aumento de episódios de hipoglicemia na população estudada.26) Tal informação indica que as metas devem ser relativizadas a cada caso.
Abordando o quesito nutricional do cliente, constatou-se que o risco de hipoglicemia também pode ser associado ao baixo índice de massa corpórea (IMC) e à ingestão nutricional descontinuada em associação com as aferições tardias da glicemia. A nutrição enteral, mesmo que seja hipocalórica, é mais eficaz na redução do risco de hipoglicemia se comparada com solução de dextrose. Em menor volume, a nutrição enteral hipocalórica é capaz de diminuir os episódios de hipoglicemia. Assim, o suporte nutricional inadequado ou ausente ressurge em vários estudos como uma variável capaz de influenciar na ocorrência de hipoglicemia durante a ICI.27,28
Paralelamente, também são mencionados inúmeros fatores que são inevitáveis à ocorrência da hipoglicemia no paciente que é submetido à terapia de ICI. Alguns destes estão ligados à prática da assistência prestada pelos profissionais, principalmente os da enfermagem, aos quais se subentende maior envolvimento terapêutico. Sendo assim, observa-se a necessidade de conhecimento dos protocolos utilizados durante a ICI, o cuidado na retomada da nutrição o mais brevemente possível, além da atenção aos quadros clínicos destacados pelos estudos, perfazem evidências clínicas preciosas que decerto influenciam na ocorrência de hipoglicemias, sabendo-se que a ocorrência da mesma aumenta sensivelmente na gravidade da doença e nos índices de mortalidade da clientela.
Diante do exposto, os fatores de risco para hipoglicemia durante a ICI, encontrados por esta revisão integrativa, são: alvo glicêmico intensivo; um suporte nutricional inadequado ou descontinuado; doenças metabólicas de base, tais como a diabetes e hepatopatias; a falência orgânica; insuficiência renal aguda e crônica; a não padronização da via de aferição da glicemia; os atrasos e falhas nas aferições da glicemia; os ajustes inadequados e o não entendimento pela equipe das ações estimadas no protocolo de insulina venosa instituído, fato este que o desvia de seu objetivo primordial de evitar os eventos de hipoglicemia; protocolo dirigido para 2h ou 4h; a presença da hemoglobina glicada; e a continuação da terapia com glicemias abaixo de 100 mg/dl.
Em suma, como fatores benéficos à diminuição dos eventos de hipoglicemias, são levantados o uso dos dispositivos de monitorização contínua (ICI), bem como a sua boa calibração, a meta glicêmica elevada para o paciente, a oferta de uma nutrição hipocalórica e um aporte nutricional iniciado de modo adequado e precoce, a escolha da via adequada de coleta para as aferições com preferência pelo sangue arterial, relativização da meta glicêmica, tendo como base o caso clínico do cliente, e o maior envolvimento terapêutico da equipe em consonância aos protocolos utilizados.
Pontua-se a necessidade de treinamento da equipe através das ações de educação continuada e permanente, na observação das políticas de segurança do paciente que devem ser contempladas dentro das instituições de saúde, na busca incessante sobre o melhoramento de boas práticas e protocolos, que se ajustem às demandas da clientela e da realidade das unidades de saúde, em prol da redução de danos e mortalidade advindos dos eventos de hipoglicemias em unidades críticas.
CONCLUSÕES
Pode-se afirmar com este estudo que existem fatores de risco que aumentam e que reduzem a chance de um paciente crítico desenvolver hipoglicemia durante a ICI. Estes fatores devem ser conhecidos pelos profissionais envolvidos na assistência para que promovam um cuidado mais assertivo, zeloso e seguro com o mínimo de danos à clientela de setores críticos.
Como limitações encontradas na realização desta revisão, destacam-se: o número reduzido de estudos realizados sobre fatores de risco para hipoglicemia associados à ICI e à dificuldade de identificação do delineamento metodológico de alguns estudos elencados por estes não estarem claramente descritos pelos autores.