INTRODUÇÃO
O Brasil é um país tropical de dimensões continentais, rico por sua diversidade social e biológica. Suas florestas dispõem de grande parte da flora e fauna do planeta, e sua população miscigenada traz saberes e culturas diversificados. Oriundo dessa pluralidade de saberes, as práticas integrativas e complementares (PIC) surgiram como alicerce à ampliação do modelo de saúde, voltado para o cuidado integral ao indivíduo e coletividade. Nesse ínterim, a Epistemologia do Sul se apresenta como referencial teórico para o avanço das PIC.
As terapias integrativas e complementares surgem com intuito de sanar o vazio social causado à saúde por seus determinantes, assim, em 2006 o Ministério da Saúde institui a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC), instrumento de institucionalização de práticas como a homeopatia, acupuntura, fitoterapia e crenoterapia no contexto do Sistema Único de Saúde (SUS).1,2
Salienta-se que a adesão às PIC no âmbito da atenção primária à saúde fortalece o vínculo entre o usuário e a equipe de saúde, ampliando a integralidade e a humanização do cuidado, além de empoderar o cliente frente ao seu autocuidado à medida em que há respeito às experiências e vivências do usuário diante dos cuidados de sua saúde, com melhoria da qualidade de vida.1
A PNPIC fundamenta os direitos de cidadania do indivíduo, o qual passa a dispor de opções terapêuticas, além do livre acesso à informação sobre a eficácia e eficiência de tais práticas, oriundas do saber popular e fundamentadas por pesquisas científicas.3 Ademais, confere ao profissional a liberdade de permutar por outras fontes de saber, agregando uma nova dimensionalidade à sua prática e se desvinculando do caráter medicalizante, institucionalizado ao longo dos anos.
A enfermagem, ao assumir um posto de liderança no contexto da atenção primária necessita superar os desafios impostos por um mercado medicalizante e empoderar-se de toda a gama de terapêuticas disponíveis para a integralidade, universalização e equidade do cuidado. Assim, conhecer, utilizar e difundir as PIC no SUS atrela à enfermagem a consciência crítica e reflexiva de sua formação nos moldes da Epistemologia do Sul.
Nesse contexto, ao analisar o exposto e considerando-se que apesar da incessante busca por práticas integralizantes, a efetivação das PIC no SUS ainda necessita superar alguns desafios até sua efetiva operacionalização nos serviços de saúde, o presente estudo objetiva refletir sobre a dimensão das Práticas Integrativas e Complementares para o cuidado de enfermagem sob perspectiva da Epistemologia do Sul.
MÉTODOS
Trata-se de um ensaio reflexivo acerca das PIC, embasado no referencial teórico da Epistemologia do Sul, conduzido por quatro categorias reflexivas: Desvelando a Epistemologia do Sul; O caminhar histórico das Práticas Integrativas e Complementares; A Epistemologia do Sul e o transitar entre o saber popular e o saber científico no uso das plantas medicinais; e O entrelaço das Práticas Integrativas e Complementares com a enfermagem, frente à Epistemologia do Sul. Após este delineamento, são apresentadas as considerações finais.
DESENVOLVIMENTO
Desvelando a epistemologia do Sul
Nos termos de Boaventura de Sousa Santos, epistemologia é concebida como toda forma de conhecimento válido materializado mediante o processo de interação social, tornando-o decifrável e inteligível. Por se dá na realização das experiências social, a produção de conhecimento requer, indubitavelmente, a presença de diferentes tipos de práticas e de atores sociais, de modo que a diversidade de interações culturais existentes é prelúdio para a diversidade epistemológica.4
O livro Epistemologias do Sul explora questões referentes ao processo de expansão do modo de produção capitalista, assentado inicialmente em práticas colonialistas associadas à imposição cultural e religiosa que influenciaram diretamente na produção de conhecimento. Como consequência desse pensamento colonial, ou abissal, cita-se a supressão de práti cas sociais em determinadas culturas, com consequente epistemicídio (obliteração dos conhecimentos locais).4
A metáfora estabelecida para compreensão do termo pensamento abissal retoma a ideia do estabelecimento de linhas que dividem o conhecimento e as práticas sociais: os que ficam do lado de cá da linha são considerados úteis, inteligíveis e edificaram a epistemologia dominante; os do lado de lá, inúteis e perigosos, foram deixados no espaço do esquecimento materializado pelo abismo.4
É consensual que a epistemologia dominante é, de fato, uma epistemologia contextual que impõe uma visão unilateral das políticas e sociedade. O projeto da colonização pro curou homogeneizar o mundo, com posturas etnocêntricas, colocando em xeque a diversidade cultural. Associado a isso, ressalta-se o desenvolvimento da ciência sob influência do método cartesiano, que desconsidera crenças e mitos no estabelecimento do conhecimento como verdade.
A crítica a este regime se dá em decorrência de um conjunto de circunstâncias que influenciaram negativamente na propagação de culturas e, como consequência, levam à urgência de alternativas epistemológicas com necessidade de valorizar todos os grupos e saberes, outrora esquecidos. Nesse ínterim, destaca-se a relevância do redirecionamento das construções conceituais hegemônicas introduzidas na iminência da modernidade para a corrente de pensamento denominada como Epistemologia do Sul.
A Epistemologia do Sul, estruturada pela diversidade epistemológica do mundo, vai de encontro à supressão dos ensinamentos tradicionais da humanidade ao valorizar o diálogo entre os vários conhecimentos, de forma horizontal com o propósito de alcançar uma renovação epistêmica nas ciências sociais, política e na humanidade. O diálogo entre a pluralidade dos conhecimentos existentes é denominado de ecologias de saberes.4
Na tentativa de superar as distinções, ausências, injustiça cognitiva e o reducionismo epistêmico, há de se considerar a diversidade do mundo como algo positivo, que amplia as capacidades humanas e enriquece as experiências sociais. Para agregar toda essa dimensão estrutural com valorização do ser, faz-se necessário uma epistemologia embasada na ecologia dos saberes, indo ao encontro da PNPIC.
O caminhar histórico das Práticas Integrativas e Complementares
A insatisfação com o modelo biomédico vigente ou com a medicina tradicional levou à busca por uma alternativa capaz de satisfazer as necessidades de saúde da população de forma integral e universalizante, considerando as preferências e conhecimentos dos sujeitos do cuidado.5 Na busca por um novo modelo de saúde, o movimento de reforma sanitária impulsionou a criação do SUS em 1988 e a procura por estratégias que superassem a hegemonia biomédica, dando início às proposições sobre novas práticas de saúde não tradicionais.
O uso de algumas terapias milenares como a fitoterapia e a acupuntura teve início no SUS na década de 90, ocorrendo de modo incipiente e isolado. Somente na década seguinte houve a indomável necessidade de buscar práticas não biomédicas como meio para a efetivação dos princípios do SUS. A 12º Conferência Nacional de Saúde foi considerada o impulso para sua expansão, ao reafirmar o direito à saúde pública de qualidade como direito de cidadania.1,2,3
Em 2006, a PNPIC trouxe nova perspectiva de saúde para usuários e profissionais, ao impulsionar uma reordenação de prioridades no setor saúde, com ênfase nas ações preventivas e de promoção à saúde. A PNPIC apresenta como diretrizes a instituição e consolidação das PIC no SUS e o desenvolvimento de ações para qualificação das PIC entre os profissionais atuantes no SUS.6
No entanto, apesar dos avanços é notório que ainda existem desafios a serem superados para a completa efetivação das PIC na atenção primária. O insuficiente número de profissionais capacitados para atuar com PIC, a ausência de recursos financeiros e os reduzidos espaços para sua operacionalização constituem os principais entraves à implementação de novas práticas e serviços, além da diversidade científico-cultural.7
Na tentativa de superar tais adversidades, em 2011 foi elaborado o Relatório de Gestão 2006/2010 das PIC no SUS, que fundamenta critérios primordiais para a implementação da PNPIC. Foram apresentados seis critérios, a saber: formação e qualificação profissional em quantidade suficiente; monitoramento e avaliação dos serviços; fornecimento dos insumos; estruturação dos serviços no sistema público; criação de leis para os serviços no SUS; investimento em pesquisas e desenvolvimento capazes de integrar os saberes e conhecimentos.6
Face ao exposto, considera-se que as PIC avançaram ao longo dos anos, no entanto, urge a necessidade de adequação das ações desenvolvidas na atenção primaria ao preconizado pela PNPIC, para que de fato ocorra sua efetivação no âmbito do SUS.
A epistemologia do Sul e o transitar entre o saber popular e o saber científico no uso das plantas medicinais
Oriundas do saber popular, as PIC oportunizam o fortalecimento do SUS como política, além de conferir autonomia ao indivíduo no caminhar do seu processo de saúde e doença.3 Dentre as práticas populares, o uso das plantas como meio de prevenção ou cura de doenças destacou-se ao longo dos anos, fato que pode ser relacionado à grande diversidade da flora brasileira.
A enfermagem, devido à sua origem predominantemente feminina tem em seu histórico uma estreita aproximação com o uso das plantas medicinais, visto que nos primórdios, o cuidado dos doentes destinava-se às mulheres e essas o faziam a partir do conhecimento acerca das diferentes ervas regionais. Esse conhecimento era transmitido por gerações de mãe para filhas e, assim, foi disseminando-se até a atualidade.
Apesar da ciência conferir confiabilidade ao saber advindo da cultura popular, seu aprendizado entre a população ainda ocorre oralmente dentro do contexto familiar. Esse modo de transmitir o conhecimento, baseado em relações afetivas entre mães e filhos, reforça a valorização das PIC pela população, bem como sua vinculação com a enfermagem.8
Essa autonomia e liberdade de poder optar por ações de saúde fora da lógica biomédica rompem com o pensamento abissal, que enquadra de forma unilateral a visão de mundo e o contexto da transmissão do conhecimento, ocasionando uma dominação e imposição de saberes.9
Em contrapartida, o interesse capitalista impulsiona o desenvolvimento de pesquisas que corroborem com o saber popular, pautadas na ciência, tornam “válido” o conhecimento perpassado entre várias gerações. Vale salientar que as diferenças taxonômicas empregadas pelos povos das diferentes regiões do país dificultam o estudo e a utilização dessas plantas, o que respalda a necessidade de padronização e fundamentação do conhecimento.10
No entanto, essa ideia de produção do saber tem base na dominação epistemológica advinda da Epistemologia do Norte, que apresenta um caráter de dominação, caracterizando-se sob uma relação desigual entre os conhecimentos popular e científico, capaz de suprimir e tornar submisso um dos tipos de saber. Assim, a Epistemologia do Sul emerge com a finalidade de superar a visão do Norte, rompendo com o pensamento dominante e valorizando a diversidade epistemológica do mundo, que reconhece a pluralidade de saberes sob a forma de uma ecologia de saberes.4
Nesse panorama, observa-se um intercruzamento entre os saberes popular e científico, no que cerne às propriedades terapêuticas das plantas medicinais, visto que a ciência valendo-se de um método científico testa e comprova a eficácia de determinadas plantas no tratamento e prevenção de diversas afecções. Assim, é pertinente considerar o poder das plantas medicinais não somente na tradição popular, mas como uma área ampla de exploração da ciência que deve ser constantemente pesquisada e aperfeiçoada em prol de sua utilização nos serviços de saúde.8
O entrelaço das práticas integrativas e complementares com a enfermagem, frente à epistemologia do Sul
O fortalecimento de práticas médicas associadas ao pensamento cartesiano, enaltecido por Descartes em O Discurso do Método,11 foi influenciado pelo paradigma hegemônico positivista e teve preponderância para o desenvolvimento da farmacologia, a especialização em determinada parte do corpo, a teoria da unicausalidade e o combate direto às doenças (reducionismo biológico), desconsiderando todo o contexto social e culturalmente associado ao processo de saúde e de doença.
Ressalta-se ainda que a ideia de conhecimento científico como único conhecimento válido, deixou de lado as crenças, mitos, ervas e chás que eram relevantes para práticas de cuidado. No entanto, frente à mudança paradigmática vivenciada no âmbito da sociedade e das ciências da saúde, a concepção de ciência como verdade única torna-se ultrapassada.
Ao considerar o paradigma como um conjunto de conhecimentos e elementos culturais compartilhados por uma dada comunidade científica, Khun afirma que a evolução paradigmática ocorre mediante o processo de revoluções, caracterizada pela passagem de uma fase de normalidade para fase de crise e, daí, para as novas teorias.12) Nesse contexto, reflete-se sobre a abertura à novos paradigmas na saúde, frente à limitação do paradigma dominante.
Embora sejam reconhecidos os avanços científicos da medicina moderna, vem-se observando um momento de crise por não atender à integralidade da assistência na saúde, bem como um aumento no uso de práticas terapêuticas alternativas.3 Diferentemente do que é teorizado no paradigma hegemônico, a Epistemologia do Sul, pautada no pensamento pós-abissal, considera a diversidade epistemológica do mundo com valorização da diversidade dos saberes, tornando as práticas sociais mais amplas e democráticas.4
Nessa perspectiva, a ecologia dos saberes abre espaço a uma proposta ativa de promoção da saúde, ao valorizar um conjunto de cuidados e terapêuticas tendentes ao naturismo e incorporadas pela PNPIC no âmbito do SUS, como a homeopatia, acupuntura, fitoterapia, terapia comunitária e uso de florais, por exemplo. São novas vias de diálogo entre o conhecimento popular e o científico, com valorização da diversidade dos saberes.
Ressalta-se que as ações voltadas para promoção ultrapassam a fragmentação da atenção em saúde, promovendo um cuidado integral e arraigado na concepção holística, a qual é elemento preponente da compreensão ampliada de saúde, com valorização da complexidade que envolver o processo de saúde e doença ao considerar o ser humano e seu meio como elementos capazes de influenciar o bem estar físico, mental, social e espiritual.2
Coadunando com a proposta da Epistemologia do Sul, as PIC incorporam elementos da cultura e saberes locais diversificando as modalidades terapêuticas propostas à população, com ampliação de espaços integralizador da assistência ao mesmo tempo em que favorece um atendimento mais humanizado, por proporcionar participação ativa do usuário frente ao seu cuidado.
A abertura à diversidade de saberes tem resultado em diferentes lógicas e formas de pensar, que exigem a possibilidade de diálogo e comunicação entre culturas, quer numa interação com a ciência moderna, quer para além desta, no sentido de recuperar saberes e práticas de grupos sociais que, por via do capitalismo e colonialismo, foram subalternizados, marginalizados e desacreditados.
Ao considerar o enfermeiro como elemento essencial à execução de políticas de saúde no SUS, este profissional possui respaldo para a execução de práticas alternativas em saúde aumentando a possibilidade da resolutividade das ações em saúde. Para tanto, faz-se necessário que tais profissionais sejam capacitados para exercer a prática das medicinas complementares de forma segura e eficaz.3
Ressalta-se ainda, a importância da compreensão do ser humano em sua complexidade biológica, social, cultural e, ao mesmo tempo, singularidade, com valorização das tecnologias leves no processo de trabalho em saúde e a assistência na atenção primária, favorecendo a manutenção e restabelecimento da saúde do paciente mediante a implementação de práticas alternativas e complementares às práticas médicas tradicionais.13
Nessa perspectiva, compete ao enfermeiro se manter atento à pluralidade de conhecimentos que sua clientela pode lhe ofertar, sem, contudo, eximir-se da missão de aprimorar esse conhecimento com os saberes próprios de sua formação e cultura, construindo um cuidado integral e de qualidade, elevando os centros de saúde a espaço de empoderamento dos sujeitos no processo do cuidado.
CONCLUSÕES
A concepção de Sul, para além da divisão do globo terrestre pela Linha do Equador, remete às regiões do mundo ocupadas durante a expansão marítima e colonialismo europeu. Nesse espaço é retomado um processo de valorização epistêmica de culturas impactadas pela expansão do capitalismo iniciada com o colonialismo.
Como alternativa à epistemologia dominante, a Epistemologia do Sul valoriza a diversidade epistemológica do mundo, com suas diferentes lógicas e formas de pensar. A harmonia de tal pluralidade depende de um diálogo entre os saberes das diversas culturas com a ciência moderna, valorizando práticas sociais antes desacreditadas.
Ao transportar esse pensamento para o campo da saúde, propõe-se revisitar diferentes saberes e práticas de cuidado, indo além do reducionismo biologicista, ampliando horizontes mediante a interação entre a diversidade existente nas práticas do cuidar e que integram uma diversidade cultural em saúde. Tal pluralidade tende a se complementar e se potencializar.
Nessa perspectiva, lança-se mão das PIC como forma de valorizar os diversos sistemas de cuidado em saúde, caminhando no sentido da humanização das práticas clínicas, integralidade do atendimento e na inclusão de métodos terapêuticos alternativos. Ao considerar o âmbito do SUS, a ênfase da PNPIC se dá na atenção primária em saúde e favorece a prevenção de agravos, a promoção e recuperação da saúde.
Assim, inserir a prática do enfermeiro no campo das PIC sob o olhar da Epistemologia do Sul, instaura-se uma ferramenta capaz de valorizar o conhecimento e as práticas de cuidado adotadas pelos usuários dos serviços de saúde, preservando sua autonomia por propiciar um ambiente de entrelaço entre o saber científico e o manuseio de saberes locais, uma vez que a ecologia dos saberes reconhece e dialoga com a pluralidade cultural.