Introdução
A síndrome de Gorlin-Goltz (SGG) foi relatada pela primeira vez por W Jarish e JC Whilte em 1884. Em 1960 RJ Gorlin e RW Goltz determinaram os referentes achados com uma verdadeira síndrome, estabelecendo como tríade clássica a presença de múltiplos carcinomas basocelulares (CBCs), múltiplos queratocistos odontogênicos (QO) e anomalias esqueléticas.1
Esta síndrome resulta de uma alteração genética herdada de forma autossômica dominante, proveniente de mutações no gene Patched (PTCH 1), que é um supressor tumoral localizado no cromossomo 9. Considerada uma entidade rara, com prevalência estimada de 1 caso em cada 60.000 indivíduos.2 A SGG atinge todos os grupos étnicos, embora na maioria dos casos seja identificada na raça branca, com frequência idêntica para o gênero feminino e masculino.1
Os CBCs da pele são os achados mais comuns, estando os QOs em grande parte dos casos, e as anomalias esqueléticas como costela bífida, calcificação da foice cerebral, entre outras, aparecem com uma prevalência menor. Além destas, outras manifestações clínicas, neurológicas, oftálmicas e cardiovasculares estão associadas à síndrome.3 O diagnóstico da SGG é destacado através do método proposto por Evans et al. (1993) e Kimonis et al. (1997) que listaram critérios maiores e menores. É definido na presença de dois critérios maiores associados a dois critérios menores. Os CBCs e QOs são apontados como componentes maiores da SGG, sendo as anomalias esqueléticas critérios menores.4
Os CBCs são os principais componentes da síndrome, geralmente aparecem entre a puberdade com apresentações como pápulas avermelhadas.5) A cirurgia e radioterapia são as condutas de tratamento mais utilizadas para o tratamento dos CBCs avançados, com exceção das lesões superficiais em que a terapêutica é através de terapia fotodinâmica, crioterapia ou produtos tópicos.6
Os QOs são constantes na SGG, apresentam-se como múltiplas lesões com bastante recidiva. Microscopicamente apresentam cistos satélites e grandes áreas de mitose.(²) Radiograficamente apresentam-se uni ou multilocular e pode estar associado a coroa de um dente incluso.7 O tratamento mais utilizado é a enucleação, mas pode variar com osteotomia, curetagem, enucleção com curetagem e aplicação de solução Carnoy.8,9
O objetivo do presente trabalho é relatar um caso clínico de síndrome de Gorlin-Goltz com proservação de oito anos, bem como destacar a importância do Cirurgião-Dentista no diagnóstico precoce e tratamento da síndrome.
Caso clínico
Paciente V.J.C., de 10 anos, sexo masculino, melanoderma compareceu em fevereiro de 2004 ao Serviço de Estomatologia e Cirurgia Bucomaxilofacial da Santa Casa de Misericórdia de São Felix - Bahia, acompanhado de sua avó, que relatava a seguinte queixa: “os dentes do meu neto estão tortos”.
Durante a anamnese e história médica pregressa, não relatou qualquer alteração sistêmica e nenhuma informação relevante da história familiar. Ao exame físico geral foi observado aumento de volume no lado direito da face, hipertelorismo, base nasal larga, bossa frontal (Fig. 1, A), leve prognatismo mandibular (Fig. 1, B) e dedos dos pés encurtados.
Ao exame físico intrabucal, paciente na fase de dentadura mista com presença de dentes deslocados de posição e desvio de linha média (Fig. 1, C). Foi realizada inicialmente a radiografia panorâmica (Fig. 1, D) e observaram-se áreas radiolúcidas bem definidas, uni e multilobulares com halo radiopaco na mandíbula e maxila. Na região posterior da maxila do lado esquerdo encontra-se uma área radiolúcida unilocular associada ao germe unidade 28, na região de mandíbula do lado esquerdo, observa-se uma área radiolúcida unilocular associada à unidade 38, outras áreas radiolúcidas são identificadas ipsilateral, uma área radiolúcida unilocular e multilobular associada ao germe da unidade 33 que se encontra impactado, estendendo-se para a região de pré-molares e outra mesial à unidade 37. No lado direito da mandíbula encontra-se uma área radiolúcida envolvendo o germe da unidade 44 (Fig. , 1D).
Em abril de 2004, o paciente foi submetido à intervenção cirúrgica para a remoção de alguns QOs, sob anestesia geral. Foi realizada a punção aspirativa em todas as lesões previamente à enucleação, sendo evidenciado um líquido cítrino e sangue (Fig. 2, A). Em seguida foram removidas três lesões, associadas as unidades 33, 34, 35, 37 e 44 por enucleação, incluindo também as extrações das unidades dentárias envolvidas, seguidas de curetagens vigorosa (Fig. 2, B e C). As lesões associadas as unidades 28 e 38 não foram removidas pois se apresentaram extensas e sua remoção comprometeria estruturas importantes, aumentando o risco de fratura de mandíbula e comunicação buco-sinusal.
As peças foram encaminhadas para o exame histopatológico, através do qual foi possível observar uma cápsula cística com infiltrado inflamatório, apresentando tecido epitelial, revelando um diagnóstico conclusivo de Queratocisto Odontogênico (Fig. 2, E, F, G). A hipótese diagnóstica de síndrome de Gorlin-Goltz foi então confirmada através das características clinicas, radiográficas e histopatológicas que estão presentes nesse paciente.
No controle periódico de outubro de 2005 (Fig. 3, A), março de 2006 (Fig. 3, B) e abril de 2007 (Fig. 3, C) foi realizado radiografia panorâmica de rotina e identificado recidivas de lesões em mandíbula. O paciente foi submetido a intervenção cirúrgica em abril de 2007 para remoção das lesões. Em setembro de 2008 através da radiografia panorâmica de rotina (Fig. 3, E e F) foi observado que as lesões associadas as unidades 28 e 38, ambas se encontravam em uma posição favorável para remoção. Foi realizado intervenção cirúrgica e encaminhado para o histopatológico, confirmando novamente o diagnóstico de queratocisto odontogênico.
O paciente foi avaliado em agosto de 2010 e demonstrou um desenvolvimento músculo esquelético compatível com a idade. Durante acompanhamento em dezembro de 2011, ao realizar exame físico, foi possível observar o surgimento de depressões palmares e, durante a análise radiográfica (Fig. 3, D) verificou-se presença de duas lesões recidivantes localizadas no lado esquerdo de mandíbula.
Em janeiro de 2012 o paciente foi submetido a uma nova intervenção cirúrgica para remoção dessas lesões e encaminhadas para o histopatológico, que novamente evidenciou queratocisto odontogênico. Atualmente o paciente encontra-se em proservação na Universidade Estadual de Feira de Santana na Bahia.
Discussão
A síndrome de Gorlin-Goltz é uma doença de característica genética, herdada de forma autossômica dominante através de mutações no gene PTCH. Seu diagnóstico se dá por meio de apresentações de características, desde achados clínicos e radiográficos.2,4
De acordo com os autores o quadro sindrômico estudado pode estar presente em todos os grupos étnicos. Embora alguns autores afirmem que a raça branca seja a mais acometida.1,9,10 Achados na literatura demonstraram frequência idêntica no gênero feminino e masculino10,11,12 e que as características clínicas se tornam evidentes durante a segunda e terceira década de vida.1,8
O caso clínico descrito neste artigo contradiz parcialmente a literatura por se tratar de um paciente da raça negra, sobretudo corrobora com a literatura no que se refere ao início das manifestações clínicas (múltiplos QOs), que se tornaram evidentes ao final da primeira década de vida, possibilitando o diagnóstico precoce.
Como critério maior da síndrome de Gorlin-Goltz, o paciente apresentou calcificação da foice cerebral, múltiplos QOs histologicamente comprovados em diferentes áreas dos ossos gnáticos, que de acordo com a literatura podem estar associados a quadros sindrômicos,2,4,9,12 além das depressões palmares puntiformes.
Como critério menor, o paciente exibe a presença de hipertelorismo leve, prognatismo mandibular, bossa frontal, base nasal larga, cifose e defeitos na modelagem dos dedos do pé.2,4,9,12 Para o diagnóstico da síndrome, a presença de dois critérios maiores ou de um critério maior agregado a dois critérios menores são determinantes.2,4,9,12 No caso clinico em questão, observa-se a presença de três critério maiores associados a seis critérios menores.
Apesar do CBC ser o principal componente da síndrome, podendo estar presente em 38 % dos pacientes da raça negra e 80 % em pacientes da raça branca,13 em oito anos de acompanhamento do caso relatado o paciente não apresentou lesões de pele com características clinicas de CBCs. Não houve dúvidas quanto ao diagnóstico da SGG no presente caso clínico, embora o paciente não tenha apresentado determinada lesão.
Histologicamente a variante paraceratinizada do QO é a mais prevalente nos casos da SGG, tem um crescimento agressivo e maior tendência de recidiva após tratamento cirúrgico. É comum a presença de cistos satélites e ilhas sólidas de proliferação epitelial.7,14 No presente caso clínico, o achado histopatológico condiz com a literatura pelo destaque da variante paraceratinizada, além de apresentar cistos satélites e ninhos epiteliais.
O tratamento da referente síndrome é baseado em terapêuticas para as possíveis manifestações clínicas.4,12 No caso, a técnica empregada para todas as lesões foi a enucleação com curetagem vigorosa das lojas cirúrgicas, já que a complementação com qualquer técnica coadjuvante como osteotomia periférica ou cauterização química em caso de múltiplas lesões poderia levar o paciente a sequelas e complicações como fratura patológica de mandíbula, lesões irreversíveis de nervos ou comunicações buco-sinusais.
É essencial o acompanhamento dos pacientes acometidos pela síndrome de Gorlin-Goltz, considerando sempre além dos QOs a avaliação clínica com inspeção visual para diagnóstico precoce dos CBCs.11,15 A solicitação de uma radiografia panorâmica anual em pacientes sindrômicos deve fazer parte do protocolo de acompanhamento. O paciente do caso em questão por não exibir alterações de caráter maligno apresenta um prognóstico favorável.
Considerações finais
O caso clínico, sujeito de estudo deste artigo é um exemplo elucidativo da SGG, visto que reúne múltiplas manifestações que definem tal condição. Refere-se à avaliação longitudinal de um paciente com a SGG, entidade patológica que pode causar alterações no sistema estomatognático. É essencial o acompanhamento multidisciplinar e de longo prazo dos casos dessa síndrome, no intuito de diagnosticar, acompanhar e tratar o comprometimento de todos os sistemas afetados, oferecendo melhor qualidade de vida a esses pacientes. Por se tratar de uma entidade herdada geneticamente se faz necessário o aconselhamento genético.