Introdução
A Atenção Primária a Saúde (APS) no Brasil vem passando por um processo amplo de informatização denominado “estratégia e-SUS Atenção Básica (e-SUS AB)”. No Brasil, os termos APS e Atenção Básica a Saúde (ABS) são sinônimos. Busca-se contribuir para a gestão da informação relacionada ao processo de trabalho das equipes de APS em todo o país.1,2,3 Além disso, a estratégia busca integrar os sistemas de informação utilizados na APS; reduzir a duplicidade de informações; ampliar o uso da informação para gestão na tomada de decisões e qualificar o cuidado.1
A estratégia e-SUS AB implica implantar dois sistemas de software: o Coleta de Dados Simplificado (CDS) e o Prontuário Eletrônico do Cidadão (PEC) que alimentam o Sistema de Informação em Saúde da Atenção Básica (SISAB). Também busca disponibilizar acesso à internet banda larga de alta performance, computadores e impressoras em todos os postos de trabalho, interconectados com outros pontos da rede assistencial.1
Dessa maneira, a estratégia e-SUS AB representa possibilidades de avanços e qualificação no uso da informação. Entretanto, sua legitimação depende de uma implantação efetiva e da aceitação entre seus potenciais adotantes. É preciso compreender como a implantação desta estratégia está ocorrendo no cenário nacional, quais as fragilidades e desafios que emergem neste contexto. Os estudos relacionados a estratégia e-SUS AB ainda são recentes e destacam muitos desafios para a implantação. Segundo Cavalcante,4 a infraestrutura insuficiente e a resistência dos profissionais, são apontados como fragilidades. Damásio,5 elucidam a baixa qualificação dos profissionais e capacitações deficientes. Há incompatibilidades entre os sistemas de software e o processo de trabalho, implantação de forma súbita, sobrecarga de trabalho e impactos negativos na assistência.2,3
Além dos estudos já desenvolvidos, também é necessário entender as controvérsias que emergem durante o processo de implantação da estratégia e-SUS AB. Informatizar todo o serviço de APS, de um país com extensa dimensão territorial e de diversidade econômica e sociocultural como o Brasil, exige ir além de uma abordagem meramente tecnicista, baseado no referencial ontológico de modelos de difusão6) ou naqueles onde geralmente as avaliações possuem seu enfoque na eficácia e eficiência das tecnologias de informação.7 Neste sentido a Teoria Ator-Rede (TAR) ganha destaque por proporcionar um olhar ampliado, para além dos modelos de difusão tecnológicos, mas que elucidam as tecnologias como decisões tecnopolíticas, desde sua formulação, passando pela implementação e avaliação.6
Cada vez mais, profissionais de saúde estão em contato com a incorporação tecnológica nos ambientes de trabalho, fazendo com que se relacionem, com mais frequência, com não-humanos.8,9 O impacto desse processo e a eficácia dessas tecnologias no atendimento ao paciente, tem sido um dos focos ao longo das últimas duas décadas, no entanto existem ainda lacunas consideráveis no entendimento geral de como profissionais de saúde e pacientes interagem com a tecnologia. Isso demonstra a necessidade de estudos que abordem a complexidade sociotécnica, onde não se separam as questões técnicas, políticas e sociais, como reconhecidas na TAR.6,8,10
Neste contexto, entende-se que a implantação de um artefato tecnológico engloba elementos heterogêneos, humanos e não humanos, também denominados de actantes, tecendo redes de mobilizações e interesses, aquecendo controvérsias.11) As mesmas, no contexto da implantação da estratégia e-SUS AB precisam ser elucidadas no intuito de viabilizar a informatização da APS. Para Venturini,12 as controvérsias são os fenômenos a serem observados na vida coletiva, onde emergem situações nas quais os atores discordam ou concordam em discordar. Neste sentido, onde quer que algo esteja surgindo como inovação ou polêmica é onde as controvérsias se instalam. Para Lemieux13 as controvérsias permitem acessar uma realidade sociohistórica considerada mais “profunda”, o que pode reverlar relações de poder e posicionamentos institucionais ou de redes sociais que seriam difíceis de observar de outra forma. As controvérsias teriam, neste sentido, uma estrutura triádica onde há uma disputa entre duas partes encenada diante de um público, um terceiro alocado na posição de juiz. As disputas seriam sempre um momento de prova, isto é, uma situação em que os indivíduos alteram e reformulam a ordem social que os enlaça. Estão relacionadas nas trajetórias dos atores envolvidos e do tipo de recursos que eles mobilizam.
Enfim, cartografar controvérsias relacionadas a implantação da estratégia e-SUS AB permite compreender o processo de sua produção, evidenciando lacunas do processo de informatização, suas incertezas e imprevisibilidades, reconhecendo-a como uma experimentação coletiva, partilhada por atores humanos e não humanos em rede. A partir dessas considerações, buscamos no presente estudo cartografar controvérsias relacionadas à rede de atores na implantação de uma estratégia de informatização da Atenção Básica a Saúde, em Minas Gerais, Brasil.
Métodos
Trata-se de um estudo de abordagem qualitativa à luz da Teoria Ator-Rede (TAR), onde se propõe seguir fatos e artefatos, descrevendo-os em seus processos de fabricação, onde atuam elementos que se conectam para produzir efeitos nem sempre previstos, ou seja, mapeando e delineando associações na rede, rastreando actantes no ato de sua agência e cartografando seus lastros.11
Como referencial metodológico, utilizou-se a Cartografia de Controvérsias, considerada como operacionalizadora da TAR, busca sistematizar o percurso de investigação acerca das idéias, coisas e simplificações que habitualmente são aceitas e passam a ser questionadas e discutidas.12,14 É possível apontar quatro movimentos12,14 que um pesquisador cartográfico deve seguir: 1) buscar uma porta de entrada na rede e começar a seguir os atores; 2) identificar os porta-vozes concordantes ou discordantes que falam pela rede; 3) acessar os dispositivos de inscrição que possibilitam a exposição da rede); 4) mapear as associações entre os actantes (conflitos, acordos, sinergismos e divergências).
A partir dos movimentos do pesquisador cartográfico, no primeiro movimento, a porta de entrada na rede foi a Secretaria de Saúde de um município de médio porte, localizado na região Ampliada de Saúde Oeste de Minas Gerais. O município possui cerca de 213 046 habitantes, assistidos em 10 setores sanitários de saúde cobertos por 43 Unidades Básicas de Saúde (UBS). A escolha pela referida porta de entrada foi intencional e se justificou pelo fato de a APS deste município estar passando pelo processo de implantação da estratégia e-SUS AB. Além disso, na referida Secretaria estava-se discutindo o planejamento e as etapas de execução da implantação da estratégia e-SUS AB. Este é o espaço institucional onde a controvérsia mapeada emerge, recomendado por Lemieux13) como sendo o lócus inicial para sua investigação.
Operacionalizando o segundo movimento do pesquisador cartográfico, inicialmente, foi realizada uma reunião com a direção da Atenção à Saúde, a gerência do Sistema de Informação e a coordenação da Atenção Primária para apresentar a pesquisa e solicitar o início do percurso na rede. O primeiro porta-voz identificado e seguido foi o profissional responsável pela implantação da estratégia e-SUS AB no município. A partir desse mediador, outros surgiram, assim o pesquisador iniciou sua caminhada pela rede, a partir da observação participante, mapeando as traduções e as controvérsias que emergiam. Observaram-se os atores humanos e suas relações com os não-humanos, o contexto, as condições e os meios envolvidos no processo de implantação da estratégia e-SUS AB. As observações foram feitas na Secretaria Municipal de Saúde (SMS), junto aos responsáveis pela implantação da estratégia, bem como nas Unidades Básicas de Saúde (UBS), acompanhando o cotidiano de trabalho dos atores envolvidos.
Para seguir os atores, utilizou-se a técnica “Bola de Neve”, também conhecida como snowballsampling, onde os informantes iniciais do estudo indicam novos informantes, que por sua vez indicam outros e assim sucessivamente, até que seja alcançado o objetivo proposto no estudo através da coleta do máximo de informações sobre os atores da rede.16 Assim, foram seguidos 38 atores no período de Janeiro de 2018 a Abril de 2019, sendo 16 considerados porta-vozes, aqueles que falam ou agem pela rede.12,14 As observações foram registradas em diário de campo e codificadas como notas de observações (NO).
Do total de 38 atores seguidos pela rede, 16 foram entrevistados, a medida que emergiam no campo, no mesmo período entre Janeiro de 2018 a Abril de 2019, a partir de um roteiro de entrevista não estruturado. Tratava-se de 05 enfermeiros, 02 médicos, 01 psicólogo, 07 gestores do município e 01 Técnico em Informática. As entrevistas foram audiogravadas e pautadas em questionamentos acerca da percepção dos atores humanos sobre o processo de implantação da estratégia e-SUS AB, e outros questionamentos que emergiam a partir da interação com os participantes no processo de segui-los. A entrevista aberta é uma importante fonte de evidência, pois pode proporcionar ao pesquisador uma maneira de certificar se suas percepções estão em consonância com os atores, admitindo ainda maior exposição das traduções interpessoais e as relações com os não-humanos.
Para preservar o sigilo dos participantes, tanto o nome do município porta de entrada, quanto a identidade dos porta-vozes foram omitidos. Os atores humanos foram codificados por meio de siglas e números conforme exemplificado: (ENF1) para enfermeiros; técnicos em informática (TI1); coordenadores da AB (CAB 1); médicos da AB (MED1); gerente do Sistema de Informação (GER SIS); Diretor da Atenção Primária (DIRETOR1); programador do SIS (PROG SIS); gerente de setor sanitário (GER SS1).
No terceiro movimento foram catalogados 43 dispositivos de inscrição, sendo estes compostos por portarias e legislações publicadas; guias e manuais técnicos; documentos de procedimentos operacionais padrão (POP); notas técnicas; publicações do site da Estratégia e-SUS AB; vídeos/tutoriais disponibilizados no site do Ministério da Saúde brasileiro; dentre outros documentos que emergiram no campo de pesquisa e estavam relacionados com o objeto em estudo.
Realizamos também o quarto movimento da cartografia de controvérsias, o mapeamento das associações, entendido por Pedro14 como o delineamento das relações que se estabelecem entre os diversos atores e nós que compõem a rede. Envolve as múltiplas traduções produzidas pelos atores, ressaltando-se suas articulações, em especial: os efeitos de sinergia ou de cooperação na rede; os efeitos de encadeamento ou de repercussão da rede; as cristalizações ou limitações da rede. Sem a pretensão de esgotar a totalidade dos atores a seguir, deve o pesquisador descrever (narrar minuciosamente) como eles se articulam e, só então, encontrar um certo sentido de ordem nos dados coletados.14 A partir do mapeamento dessas associações entre os atores da rede, o pesquisador será capaz de produzir sua descrição. Para Lemieux13 uma controvérsia é apreendida em seu próprio percurso e deve ser descrita a partir do ponto de vista da ação coletiva, na interação entre os diversos actantes que a compõe e nas disputas que a envolve.
Além disso, Law15) destaca a necessidade de se explorar o processo de tradução, o qual gera efeitos de ordenamento tais como dispositivos, agentes, instituições ou organizações. Desta forma, a tradução é considerada um verbo que implica em transformação e em possibilidade de equivalência. Possibilidade que uma coisa (por exemplo, um ator) possa representar outra (por exemplo, uma rede). Ainda segundo Law, (15 a tradução é o núcleo da abordagem ator-rede, ou seja, consiste no interesse por como atores e organizações mobilizam, justapõem e mantêm unidos os elementos que os constituem, bem como estes algumas vezes conseguem evitar que tais elementos sigam suas próprias inclinações e saiam da rede. Para Albuquerque et al.6) a descrição das traduções e mediações é necessária, buscando-se compreender o que ocorre por detrás do que é aparentemente estável. Ademais, segundo Albuquerque et al.,6) uma estabilização é apenas o início.
Nesse ínterim, realizamos a descrição da rede de relações entre os atores humanos e não-humanos envolvidos no processo de implantação da estratégia e-SUS AB, e especificamente, descrevemos as situações observadas, os fatos e relatos, evidenciando as traduções que emergiam do campo.
O estudo obedeceu a Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde e foi aprovado sob parecer de nº: 1.384.632 no Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, da Universidade Federal de São João Del Rei - Campus Centro-Oeste Dona Lindu. Os participantes eram abordados no momento em que emergiam no campo (reuniões, capacitações, situações de uso da tecnologia), sendo lhes explicado sobre a pesquisa, sua finalidade, riscos e estratégias de coleta de dados. Aos potenciais participantes era lhes feito o convite para participação. Em seguida, era lhes apresentado o Termo de Consentimetno Livre e Esclarecido (TCLE) para sua leitura e apreciação, bem como solicitada a assinatura, caso concordasse em participar. Também era lhes informado a possibilidade de desistência em participar da pesquisa a qualquer momento que julgar necessário. Para aqueles que concordavam em participar da pesquisa era lhes fornecido o TCLE assinado pelo pesquisador responsável. Somente após a assinatura do TCLE é que os participantes eram entrevistados ou observados.
Resultados
A implantação da estratégia e-SUS AB a partir da Secretaria Municipal de Saúde
Ao seguir a rede de atores, em janeiro de 2018, inicialmente, constatamos a primeira controvérsia: a presença de um Sistema de Informação em Saúde (SIS) desenvolvido pela equipe de tecnologia da informação da secretaria municipal de saúde (SIS próprio municipal), um não-humano (dispositivo de inscrição) considerado inquestionável com relação a sua funcionalidade, dinâmica e oferta de possibilidades de armazenamento de dados:
[...] Nosso sistema é muito bom, já temos atualmente uma enorme quantidade de dados que produzimos durante anos. Defendo a causa de melhorar a estrutura dele e acompanhar a realidade do município e das novas exigências do Ministério [...] (GER SI).
Porém, a tecnologia era de domínio de um ator humano, um profissional, que de certa forma o tornava a sua caixa preta:
[...] Nosso maior medo com relação ao SIS é por ele ter sido criado por um técnico da prefeitura. Apenas ele sabe fazer a programação. Se um dia acontecer qualquer coisa com este técnico, ninguém mais consegue manusear [...] (GER SI).
Outro entrevistado destacou:
[...] Não se pode ter um sistema, utilizado por mais de 1 300 profissionais, com informações de quase toda a população e sendo viabilizado por um técnico[...] (DIRETOR 2).
Ainda, relacionado ao mesmo ator humano (técnico de TI), em uma reunião em fevereiro de 2018, observamos questionamentos que, de certa fora, aqueceram o debate entorno da caixa-preta “SIS próprio municipal”. Os profissionais debatiam o fato de que o técnico estava
[...]desmotivado por terem cortado suas gratificações e por, certa vez, um secretário de saúde ter lhe oferecido um cargo de chefia, e esta promessa nunca ter sido cumprida [...] o servidor atualmente anda em passos lentos, ao mesmo tempo que possui em seu poder todo o Sistema de Informação de um município de mais de 220 mil habitantes [...] (NO).
Outra controvérsia foi o fato de se manter ou não o SIS próprio em detrimento da disponibilidade de dois outros não-humanos, os sistemas de software PEC e CDS, disponibilizados gratuitamente pelo MS. Neste sentido, o gerente do setor de SI defendeu a permanência do SIS próprio:
[...] podemos retroceder em diversos aspectos se fizermos essa escolha. Como por exemplo, os cadastros já realizados, não conseguimos exportar para o e-SUS. Seriam perdidos anos de trabalho e de sensibilização que fizemos com os profissionais [...] (GER SI).
Em uma publicação retrospectiva, encontrada em site do governo federal, verficou-se a inscrição de que em 20 de outubro de 2016, quando no VII Fórum Nacional de Gestão da APS, o então ministro da Saúde, reforçou o prazo dado ás UBS que ainda não haviam adotado o PEC, para que o fizessem em até 10 de dezembro de 2016 “[...] nós demos um prazo até 10 de dezembro para que todos os sistemas estejam integrados ao Ministério da Saúde. [...] Mais da metade da população brasileira é atendida em municípios que utilizam prontuário eletrônico, portanto, basta fazer a integração [...]”.
O dispositivo de inscrição verificado na rede em estudo, contribuiu para aquecer ainda mais o debate no município, no início da implantação da tecnologia, em meados de fevereiro de 2018, pois observamos que:
[...] os gestores da secretaria municipal despertaram para a possibilidade de corte de verbas caso o município não cumprisse com a obrigatoriedade definida pelo MS. Foi então agendada uma reunião com atores considerados importantes para a tomada de decisão (o secretário municipal de saúde, o gerente do setor de SI, o diretor e o técnico do Centro de Processamento de Dados da prefeitura). Foi um momento no qual emergiram conflitos e negociações em torno da continuidade do uso ou mudança do sistema de informação do município. Um momento que gerou instabilidade em uma realidade que antes era considerada como certa e homogênea [...] (NO).
Neste momento, as controvérsias em torno do SIS próprio municipal e a implantação da estratégia e-SUS AB estavam aquecidas. Percebemos a efervescência dos seguintes questionamentos:
[...] a necessidade de retirar o poder do SIS das mãos de um técnico da prefeitura; a necessidade de atender às exigências impostas pelo MS, principalmente no que diz respeito à implantação do Prontuário Eletrônico do Cidadão (PEC); a necessidade de investir em melhorias nas redes, antenas de internet, e em um local de armazenamento dos dados inseridos no sistema; a proposta de aderir ao sistema de informação utilizado pelo município de Maringá, no estado do Paraná. É importante ressaltar que o SIS utilizado em Maringá, e que possivelmente poderia ser adquirido pelo município em estudo, era privado. Seria cedido ao setor público, porém com um custeio de R$ 50 mil reais mensais para a manutenção do software [...] (NO).
O debate se tornou intenso entre os atores emergindo também questionamentos e sentimentos que remetiam ao histórico de todo o trabalho desenvolvido para implantação do SIS atual:
[...] como será a reação dos profissionais em aceitar um novo sistema? Vamos ter que capacitar todos de novo? E vamos ter que cadastrar toda a população novamente? Quanto retrabalho! [...] (COAB 1). Outro ator endossou: [...]iniciamos esse processo de aceitação do SIS em 2009, demoramos quase 7 anos para capacitar e mobilizar profissionais e população em aceitar o sistema, agora começar do zero! vamos demorar mais 7 anos [...] (GER SIS).
Após várias reuniões ocorridas entre os meses de fevereiro, março, abril e maio de 2018, entre a equipe de gestores, decidiu-se pela:
[...] manutenção do atual SIS próprio municipal, mas com a ressalva de que deveria estar integrado ao PEC do MS. Assim, o gerente do SI adotou a metodologia de primeiramente levantar as principais questões que envolvem a utilização do PEC, juntamente com as possíveis soluções [...] (NO).
Esse foi um momento com poucos atores convidados a participar, a fim de “não ter muitas influências”, ao mesmo tempo que foi uma tradução (uma estratégia) de se
[...] manter a ordem que envolve a utilização de uma inovação tecnológica[...] (GER SIS).
O intuito era entregar para os gestores um layout do PEC já pronto, apenas para ser testado e avaliado. Uma tradução que revelou pouca participação coletiva no desenvolvimento da inovação proposta. Além disso, verificamos:
[...] a concentração dos trabalhos na figura de um ator, o programador, como um ponto de passagem obrigatório, devido à sua especificidade e domínio técnico. Foi acordado que o programador iria transportar todos os campos de preenchimento do PEC, no modelo do Ministério da Saúde para o SIS próprio municipal, e no momento que o layout estivesse pronto, faria a apresentação para avaliação e aprovação. Após quase três meses de atraso o layout foi apresentado, em agosto de 2018. Tal atraso justificou-se pelo fato de que outras demandas emergiram, atreladas ao programador, e reconhecidas como mais urgentes [...] (NO).
A concentração das atividades no programador, observada anteriormente, também é apontada por um dos gestores:
[...] este é o problema de termos só ele de programador do SIS, tudo sobra pra ele e sozinho ele não consegue, a demanda é gigante [...] (GER SIS).
No continuum de acompanhar a tessitura da rede envolvida na integração do SIS próprio ao PEC, ainda na SMS, iniciou-se, ainda em 2018 a discussão sobre
[...] quais profissionais teriam as permissões de acessos aos dados registrados no prontuário dos pacientes? e quais seriam os limites de cada profissional? [...] (GER SIS).
A preocupação estava atrelada à
[...] necessidade de preservação do sigilo sobre as informações contidas no prontuário do paciente[...] (COAB 2).
Tinha-se o receio da quebra do sigilo diante da nova realidade relacionada ao acesso, proporcionado pelo PEC, para todos os profissionais das unidades e em todos os pontos da rede assistencial. Foi levantado o questionamento principalmente sobre:
[...] as anotações em prontuários dos usuários atendidos por psicólogos, pois o Código de Ética desta classe profissional é bem legislada[...] (DIRETOR 2).
O Conselho Regional de Psicologia (CRP) foi um dos mais citados durante essa passagem na rede, o que fez com que a pesquisadora fosse remetida a tal instância a fim de saber o seu posicionamento em relação ao uso do prontuário eletrônico no atendimento dos pacientes. O posicionamento do CRP foi
[...] favorável ao uso do PEC, porém ressaltou sobre a segurança do armazenamento dos dados, no sentindo de perda, violação e permissões de acesso [...] (NO).
Ao levar o posicionamento do CRP aos responsáveis pelo sistema, emergiu a preocupação sobre essas questões:
[...] Um dos grandes gargalos de instaurar um prontuário eletrônico é que a prefeitura não tem estrutura de um servidor que comporte o armazenamento dos dados. E isso ficará bem oneroso para instalar [...] (PROG SIS).
O debate em torno da quebra de sigilo desencadeou outros encontros em reuniões, de agosto a dezembro de 2018, com os gestores para debater possíveis oposições ao uso do PEC pelos demais conselhos profissionais: medicina, enfermagem, assistência social, dentre outros. Sem antes consultar cada um desses conselhos, como foi feito com o CRP, o gerente de SI decidiu levar a atual discussão ao secretário de saúde, o qual tomou a seguinte decisão:
[...] solicitou o gerente de SI que implantasse o PEC e não ficasse preocupado com os conselhos profissionais, pois cada um daria uma opinião diferente, o que poderia atrapalhar nessa fase tão importante. A questão que necessitava ser urgentemente resolvida era a preocupação com o possível corte de verbas diante da obrigatoriedade de implantar imposta pelo Ministério [...] (NO).
Não obstante, emerge em meio às discussões, em uma das reuniões, outro dispositivo de inscrição que se conformou como um disparador de conflitos, um ofício enviado pelo Conselho Federal de Enfermagem (COFEN) se posicionando em relação à estratégia e-SUS AB, após consulta feita pelo Conselho Regional de Enfermagem de Minas Gerais (COREN-MG). No dispositivo de inscrição, o COREN reconhece a celeridade dos fluxos de trabalho proporcionados pela informatização, no entanto identificou que “[...] o PEC não possui espaços reservados às etapas do Processo de Enfermagem [...]” e recomenda ao COFEN que entre em contato com o Ministério da Saúde para propor a inclusão das etapas do Processo de Enfermagem no sistema eletrônico e-SUS AB.
Após o posicionamento do COFEN e CRP, o gerente do SIS e o secretário municipal decidiram ao final do ano de 2018
[...] pela continuidade da implantação, sem discutir tal controvérsia, mesmo remetendo a questões éticas e deontológicas latentes envolvendo demais atores [...] (NO).
O posicionamento dos gestores municipais, responsáveis pela implantação do PEC, foi de tentar manter a controvérsia menos conflitante (esfriá-la), no entanto sua complexidade a manteve aquecida.
A implantação da estratégia e-SUS AB nas Unidade Básicas de Saúde
Deixando-se guiar pelos caminhos traçados pelos actantes na trajetória da implantação da estratégia e-SUS AB, a pesquisadora se deparou com a relação entre o SIS próprio municipal e os profissionais que atuavam na linha de frente da APS, ou seja, nas Unidades Básicas de Saúde (UBS). O momento crucial para acompanhar esta conexão aconteceu em janeiro de 2019 quando a pesquisadora foi convidada a participar da capacitação de gerentes, enfermeiros, dentistas e médicos para iniciarem a utilização da ficha de atendimento individual e atividades coletivas, outros dois dispositivos de inscrição, que mediavam a utilização do SIS próprio municipal. É importante destacar que nesse momento as fichas referidas eram as mobilizadoras do uso do SIS, mas geravam muitos questionamentos, dúvidas e conflitos, principalmente pelo re-trabalho gerado em preencher os dados nas fichas em papel e posteriormente alimentar o sitema de informação.
Durante as capacitações, emergiram falas que apontavam para outra controvérsia: as fragilidades relacionadas à estrutura das UBS e que contribuíam para a subutilização do sistema em detrimento das fichas em papel. Neste contexto, os porta-vozes, a maioria deles discordantes, apontaram preocupações:
[...] Com essa estrutura que nós temos, eu ainda acho que o papel dá mais segurança para a gente, não podemos excluí-lo de tudo [...] (ENF 1).
Outro participante endossou:
[...] O sistema cai toda hora e o computador que é usado é bem ruim, nós não conseguimos trabalhar com a agenda eletrônica, e acho impossível trabalharmos com essa ficha [...] (DENTISTA1).
Apesar das pontuações, verificamos a continuidade da implantação, mesmo em condições adversas, uma tradução utilizada com vistas à informatização:
[...] a prefeitura não está disposta a gastar mais dinheiro com a estrutura de rede de internet. Não podemos deixar de fazer por esse motivo, nós temos o recurso, não é o melhor do mundo, mas dá para fazer [...] (GER SIS).
A pesquisadora continuou seguindo os itinerários da rede a partir de solicitações provenientes das UBS com vistas às capacitações in loco, em fevereiro de 2019, para o uso dos sistemas de software da estratégia e-SUS AB. Apesar do reconhecimento do sistema como um instrumento de trabalho importante para o planejamento, constatamos o ato de não planejar, não decidir a partir dos dados armazenados no SIS:
[...] não fazemos a análise dos dados [...] (ENF 2);
[...] Não tem planejamento [...] (ENF 3);
[...] eu sempre programo que vou tirar os relatórios e planejar, mas quando eu vejo o mês já acabou, e eu não fiz nada [...] (GER SS 2).
Outra tradução foi a decisão de não fazer as análises dos dados, pois a omissão em fazê-la conforma-se como uma autoproteção diante de tamanha sobrecarga de trabalho:
[...] mesmo que a gente consiga fazer as análises desses relatórios, vai aparecer tanta coisa, que pergunto: teremos pernas para aguentar? então nem analiso [...] (GER SS 1).
Não fazer a análise dos dados, também se conformou como outra tradução, motivada por uma visão equivocada do que vem a ser a APS e suas atribuições:
[...] se eu identifico que minha área de abrangência precisa de cuidados com a gravidez na adolescência, por exemplo. Eu não tenho ginecologista, não tenho psicólogo, como fica? [...] (GER SS 1).
Por fim, a análise dos dados pode revelar situações que tendem a gerar conflitos, o que desencadeia a decisão de não a fazer:
[...] eu vejo pelos relatórios que um dentista trabalha mais que o outro. Se eu questiono, eles colocam um monte de argumento, aí não sei o que fazer [...] (GER SS 2).
Ainda, nas UBS, no período de fevereiro a abril de 2019, emergiram traduções de atores-humanos (profissionais) em relação à digitação de dados nos sistemas de software. Tais traduções alimentavam a seguinte controvérsia: quem deve alimentar os sistemas de software da estratégia e-SUS AB? Um dos porta-vozes reconheceu tal situação, mas também já apontou os possíveis efeitos sobre a rede tecida neste contexto:
[...] Quem digita as minhas produções são as meninas da equipe [ACS ou Enfermeira], eu nunca me preocupei com isso. Agora com essa exigência, meus atendimentos ficarão mais demorados, então vou precisar reduzir o número de pacientes da minha agenda [...] (MED2).
A emissão de efeitos também pode ser observada em outras situações. Um dos atores, ao verificar a resistência do profissional médico em utilizar o computador, assume a digitação da produção diante da possibilidade de perda de verbas:
[...] eu preciso digitar a produção do médico, ele detesta, senão a equipe perde verba [...] (ENF4).
Em outra situação, a emissão de efeitos é ainda mais preocupante: a relação médico-paciente poderia ser prejudicada diante da necessidade de utilização dos sistemas de software da estratégia e-SUS AB:
[...] o médico já não olha e nem coloca a mão no paciente, agora com essa ficha é que vai piorar [...] (MED2).
Em uma das cenas observadas, constatamos:
[...] ao ver a ficha de atendimento do PEC do SIS, um médico já começou a reclamar do tempo que gastaria no atendimento com paciente por ter esta nova demanda. O profissional expôs que tenderia em diminuir o volume de consultas ou o tempo do atendimento com o paciente [...] (NO).
Durante a integração entre os dados do SIS próprio e PEC, emergiram inconsistências:
[...] estamos com problemas na hora de exportar os dados, o programador já está tentando resolver isso mais rápido para não termos uma avaliação ruim do PMAQ [...] (GER SIS).
Essas inconsistências estavam trazendo conflitos por irem de encontro às exigências do Programa de Melhoria do Acesso da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ AB), um novo ator não-humano que emergia na rede:
[...] quando pegamos os relatórios do e-SUS para o cálculo das metas do PMAQ, está dando um valor bem menor, não estão compatíveis com os dados do SIS [...] (GER SS 4).
Para cumprir às exigências do PMAQ AB, os dados precisam ser retirados apenas dos sistemas de software que compõem a estratégia e-SUS AB. Neste sentido, os não-humanos (sistemas de software) inscreviam nas fichas avaliativas do PMAQ AB e que também se conformava como outro dispositivo de inscrição, pois acabavam por representar a avaliação da qualidade, em dados, do processo de trabalho e da assistência prestada, não-humanos interligados a outro não-humano. Um dos gestores demonstra a preocupação em não receber a verba federal devido às inconsistências de dados entre PEC e SIS próprio municipal, bem como a inscrição de seus dados nas fichas avaliativas do PMAQ AB:
[...] para receber a verba, após a avaliação final, é considerado apenas os indicadores calculados de acordo com o consolidado do SISAB, alimentado pelo CDS e PEC, não é considerado nenhum dado do nosso SIS. Todos os dados das fichas avaliativas do PMAQ AB são extraídos do SISAB, por isso tudo precisa etar bem registrado no SISAB. O nosso sistema precisa estar bem alinhado com o SISAB, do contrário perdemos verba [...] (GER SS 4).
Discussão
Os resultados demonstraram que as incertezas sobre a adoção da estratégia de informatização na APS do município em estudo já estavam colocadas anteriormente, isto é, as disputas já estavam em curso antes da pesquisa. Apesar do reconhecimento do SIS próprio municipal, artefato de domínio técnico e sobre o comando de alguém, mas que começa a ser questionado, tendendo a traduções (transformações) á guisa das intencionalidades dos vários atores (municipais, estaduais e federais), constatando uma controvérsia já aquecida. Para Pedro,14 a solidez de uma caixa preta, seu processo de endurecimento, sempre depende daqueles atores que se tornam aliados em torno da manutenção desse movimento. Porém, de forma contrária, e pressionados por outras esferas e intencionalidades, há atores que iniciam resistências e questionam a caixa preta, seu status quo, aquecendo discussões e propondo transformações.17 Neste sentido, a controvérsia em destaque demonstra que a implantação de um novo sistema de informação no contexto do setor público de saúde, suscita o reconhecimento da existência de pressões externas, internas e intencionalidades emanadas dos diversos atores que tecem a rede em conformação. Algo também verificado e defendido no estudo de Albuquerque et al.6 ao afirmar que a adoção de tecnologias resulta de uma transferência-tradução estabelecida por extensas negociações.
Assim, é possível dizer que a implantação efetiva da estratégia e-SUS AB depende do reconhecimento da diversidade de atores, de suas conexões (inter-relações) na rede e de seus possíveis efeitos. É preciso reconhecer a implantação de uma inovação tecnológica, como a estratégia e-SUS AB, como um fenômeno social, coletivo, onde humanos e não humanos se relacionam viabilizando a informatização ou obstaculizando tal processo.3 A viabilidade da implantação de tecnologias da informação, principalmente no contexto da saúde, depende do reconhecimento do processo de trabalho, suas especificidades, da estruturação adequada e do envolvimento das pessoas.9,10,18
Também é preciso reconhecer a tessitura de uma rede hibrida, onde as traduções dos actantes acabam por modificar processos, estabelecendo invenções e novos desafios.6,19 Endossando tal afirmativa, os estudos de Cavalcante,3,20 revelam a importância de um sistema informacional ser tratado e analisado dentro de uma perspectiva participativa e democrática. Quando uma inovação tecnológica é conduzida por apenas um grupo restrito de atores, é possível emergir resistências e tender ao fracasso. Outrossim, como a implantação de tecnologias envolve o aquecimento de controvérsias, é preciso envolver os diversos atores que participam da rede desde o início, linearizando a história da controvérsia, permitindo a sua exploração de forma a promover o engajamento.3,18,21
A decisão referente ao sistema (público ou privado) mais apropriado para a implantação e utilização conformou-se como outro desdobramento. O argumento central é que diante de impasses e limitações encontrados no processo de implantação dos sistemas de software da estratégia e-SUS AB, o setor privado emerge como uma possível solução para os problemas tecnológicos. Entretanto, o espaço público deve ser capaz de confrontar este tipo de argumento que alimenta interesses do mercado privado de tecnologias e transformá-los em benefícios para a população, gestores e profissionais. Ressalta-se que o Estado brasileiro é capaz de se organizar com vistas a assumir a hegemonia do desenvolvimento de tecnologias da informação para a saúde pública ao invés de sucumbir aos interesses de mercado.20) Outros autores reforçam que há disputas de poderes nas esferas política, social e econômica na relação público-privada no sistema de saúde brasileiro, criando assimetrias geradoras de subfinanciamento da saúde e empoderamento do mercado privado.22
Desdobramentos éticos relacionados ao uso do PEC também emergiram. O fato de que as informações dos pacientes poderão ser acessadas nos vários pontos da rede assistencial, diferentemente do armazenamento restrito nas UBS, geraram o debate sobre a confidencialidade e sigilo das informações dos pacientes em seus prontuários. Além disso, está no bojo destas discussões as possíveis formas de registro e compartilhamento entre os profissionais, respeitando as normativas de seus conselhos de classe. Conforme citado por Griffith23 é comum em qualquer implantação, reestruturação ou desenvolvimento de sistemas de informações deparar-se com questões éticas relacionadas ao armazenamento e tratamento dos dados. Sendo assim, o tratamento dessas informações necessita de particular proteção e garantias de privacidade. O sigilo, a segurança das informações, o acesso do paciente aos seus dados e o compartilhamento destas informações entre os profissionais na rede assistencial precisam ser legislados.23,24,25,26 Tal controvérsia não pode ser abafada, está aquecida, é preciso tecer a rede e as traduções que a perpassam, além disso, dar voz aos profissionais e seus conselhos, gestores e a população assistida neste debate.
Há uma preocupação internacional com os aspectos éticos que envolvem a adoção de prontuários eletrônicos. Defende-se a criação de legislações garantidoras da preservação da confidencialidade, do sigilo, da privacidade e a segurança das informações armazenadas.23,25,26,27,28 Neste sentido, o Ministério da Saúde brasileiro necessita iniciar um debate coletivo com vistas à definição de normativas compatíveis com o cotidiano de trabalho que se realiza na APS. Tal iniciativa é um desafio devido à diversidade geográfica, cultural e dos processos de trabalho desenvolvidos em cada região do país. Entretanto, diante da implantação do PEC no cenário nacional, é imperativa a definição de legislações e estratégias que resguardem os aspectos éticos envolvendo as informações da população.
Desdobramentos nas UBS durante a implantação da estratégia e-SUS AB também emergiram. Estiveram relacionadas às fragilidades estruturais das UBS, capacitações insuficientes e sobrecarga de trabalho dos profissionais, gerando traduções (efeitos na rede) relacionadas ao ato de não planejar e não decidir a partir dos dados armazenados nos sistemas, além de resistências e incertezas sobre a responsabilização em alimentar os sistemas de software da estratégia e-SUS AB. Além disso, fizeram emergir compreensões equivocadas sobre a Estratégia Saúde da Família, atribuições da equipe e sobre o processo de trabalho, ressaltando o modelo médico-centrado, dentre outras. Tais situações são comuns em processos de implantação de tecnologias da informação no Brasil, apontam para a necessidade de rever o planejamento do processo de informatização.2,3,27
A tecnologia não deve ser reconhecida como um instrumento que impacta negativamente o cotidiano de trabalho, pelo contrário, deve ser entendida como uma solução. É preciso torná-la significativa, utilizável no planejamento local, nas decisões assistenciais e na organização do trabalho.2,10,22,28) Apesar de os sistemas de informação serem reconhecidos como essenciais, pois dão suporte ao gerenciamento, monitoramento e avaliação dos serviços de saúde, ainda é necessária á sua institucionalização.28,29 Isso passa, prioritariamente, pelo seu reconhecimento político, a partir de um debate coletivo entre os vários atores da rede em tessitura, endossando uma implantação planejada, consensuada e sistematizada, com vistas ao suporte efetivo na organização do trabalho da APS e a gestão do cuidado.30
Conclusão
Reconhecemos a implantação da estratégia e-SUS AB no cenário estudado como uma única controvérsia que, dada a complexidade típica destes momentos de instabilidade do social, agrega e se desdobra em várias frentes, aquecendo e fomentando outras controvérsias e que necessitam serem amenizadas, visando a qualificação da informatização pretendida. Conforme já elucidado, a implantação de tecnologias gera traduções que se conformam como tramas de conflitos, articulações e interesses que podem travar ou até mesmo prejudicar o processo. É preciso amenizá-las a partir de um debate coletivo com todos os atores envolvidos no processo de implantação e utilização da tecnologia. É preciso envolver profissionais, gestores, usuários da APS, conselho local e demais representantes de instâncias dos níveis municipal, estadual e federal. Neste debate coletivo, a capacitação para uso da tecnologia precisa ser proposta, consensuada e sistematizada; a própria tecnologia precisa ser discutida visando sua adaptação ao processo de trabalho da APS; o fluxo de informações precisa ser normatizado, mas valorizando e enfatizando a criação de significados nos profissionais que coletam os dados e necessitam utilizá-los para o planejamento e tomada de decisões locais. Neste sentido, o processo de informatização deve ser fortalecido, sem a pretensão de esgotar outras possíveis controvérsias que devem surgir, levando em consideração que a implantação e utilização de uma tecnologia é um caminho em constante evolução. Norteados pela Teoria Ator-Rede e pela Cartografia de Controvérsias foi possível acompanhar os processos que envolvem a estratégia e-SUS AB de uma forma mais realista, onde variados pontos de vistas são incluídos, através de suas interações, invenções e ressignificações.
Entendemos que a rede em tessitura é dinâmica, a implantação da estratégia e-SUS AB é contínua, o que nos leva ao apontamento do limite deste estudo em cartografar controvérsias de um momento histórico, a partir do caminhar pela rede. Assim sendo, o continuum da cartografia de controvérsias é necessário, buscando revelar novos actantes, traduções e, portanto, novas influências sobre o processo de informatização. Além disso, pesquisas futuras devem investigar as influências dos sistemas de software da estratégia e-SUS AB, e de seus dispositivos móveis sobre a organização do trabalho, a gestão do cuidado e a tomada de decisões gerenciais.