Introdução
O Brasil vem passando pela implantação de uma inovação tecnológica na Atenção Primária a Saúde (APS) denominada Prontuário Eletrônico do Cidadão (PEC) no Sistema Único de Saúde (SUS), denominação que se refere ao sistema público de saúde brasileiro criado pela Constituição Federal de 1988, que estabeleceu a saúde como direito de todos e dever do Estado. O SUS proporciona o acesso universal ao sistema público de saúde oferecendo a atenção integral à saúde, visando a prevenção e a promoção da saúde, abrangendo a atenção primária, média e de alta complexidade, os serviços de urgência e emergência, a atenção hospitalar, as ações e serviços das vigilâncias epidemiológica, sanitária e ambiental e assistência farmacêutica. A gestão das ações e dos serviços de saúde é participativa entre os três entes da Federação: a União, os Estados e os Municípios.1
O PEC é um dispositivo eletrônico que armazena as informações de saúde e assistência prestada ao indivíduo em todo ciclo vital.1 O PEC é um dos sistemas de software da estratégia e-SUS Atenção Básica (e-SUS AB) que visa informatizar as Unidades Básicas de Saúde (UBS) e integrar as informações nestes serviços com os demais pontos da rede assistencial. Busca-se com o PEC ampliar a integração e gestão do cuidado pelos profissionais, bem como realizar planejamento e programação das ações, controle de agendas, procedimentos, estoque de materiais, equipamentos, monitoração, avaliação de processos e resultados.1
O PEC no contexto da APS brasileira, representa uma inovação tecnológica e ocorrerá por meio de canais de comunicação em um sistema social com vistas à sua aceitação. Desta feita, o sucesso do PEC como uma inovação, depende de sua difusão no cotidiano de trabalho da APS e da aceitação dos futuros adotantes e suas motivações.
Há elementos (canais de comunicação, tempo e sistema social) que estão atrelados a própria inovação e podem influenciar a sua difusão, potencializando a aceitação ou a rejeição entre os adotantes.2) Os canais de comunicação são veículos para a exposição dos indivíduos a novas ideias. Quanto mais expostos a informações sobre a inovação, maior será a taxa de adoção pelos indivíduos.3 O tempo no processo de difusão da inovação é de fundamental importância, por compreender todo o processo de decisão que levará à formação de uma atitude em prol da rejeição ou aceitação da inovação.4 Já o sistema social, composto por seus atores e suas relações, pode ou não potencializar o uso de uma inovação, isto dependerá da criação de significados relevantes para seu cotidiano de trabalho, onde a nova ideia não represente uma barreira, mas uma possibilidade para a soluções de problemas.2
Os elementos de uma inovação (canais de comunicação, tempo e sistema social) têm sido utilizados para elucidar os determinantes da aceitação ou do fracasso de inovações em experiências de incorporação de prontuários eletrônicos.5,6 Acerca dos elementos citados, as falhas na difusão de inovações estão relacionadas à incapacidade de os profissionais utilizarem as informações para o planejamento assistencial e a motivação de mudanças. Além disso, os altos custos durante a implementação das inovações, limitam a capacidade das organizações de lidar com esses e outros problemas.7,8 Nesse sentido, esta pesquisa é norteada pelo seguinte questionamento: como os elementos (canais de comunicação, tempo e sistema social) influenciam a difusão do Prontuário Eletrônico do Cidadão? O objetivo desse artigo é analisar as influências dos elementos (canais de comunicação, tempo e sistema social) sobre a difusão do Prontuário Eletrônico do Cidadão.
Métodos
Estudo de caso, de abordagem qualitativa, baseado na Teoria da Difusão da Inovação (TDI), onde os elementos (canais de comunicação, tempo e sistema social) foram norteadores do processo investigativo.2 Definiu-se como cenário da pesquisa as Equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF) de um Município localizado na Região Oeste de Minas Gerais. A escolha do Munícipio deu-se de maneira intencional, já que ele se encontra em fase inicial de implantação e utilização do PEC. O processo de difusão de inovações apresenta maior fragilidade em sua fase inicial em que a metade dos adotantes ainda não decidiu pela adoção da inovação.2) Neste município, existem 18 ESF assistindo 59 % da população. Para a seleção das ESF, definimos como critérios de inclusão: equipes que estivessem em fase inicial do processo de implantação do PEC; equipes onde os profissionais estivessem utilizando o PEC no cotidiano de trabalho. Após a definição destes critérios, das 18 ESF, 01 ESF foi excluída por não estar utilizando o PEC.
Realizamos um sorteio aleatório para a definição da sequência de coleta dos dados nas 17 ESF elegíveis. Para constituir o quadro de participantes do estudo, foi definido como critério de inclusão: profissionais que utilizam o PEC; presentes na UBS, no momento da coleta dos dados e que aceitassem participar do estudo. Além disso, utilizou-se a técnica de saturação dos dados para amostragem de participantes. 9 A saturação ocorreu com 17 participantes (6 enfermeiros, 3 técnicos de enfermagem, 4 médicos, 4 dentistas), em 7 ESF visitadas.
Os dados foram coletados no período de novembro de 2018 a março de 2019 a partir de entrevistas semiestruturadas áudio gravadas e observação direta não participante do cotidiano de trabalho dos profissionais. Ambas as fontes de evidências foram construídas a partir dos “elementos” da inovação. Os profissionais foram questionados, em geral, quanto ao meio utilizado para a troca de informações sobre o PEC; quanto ao primeiro contato com o PEC até a sua utilização e sobre elementos materiais ou pessoas que influenciaram sua utilização. Observamos as relações entre os profissionais frente a utilização do PEC, como o PEC era utilizado no cotidiano de trabalho e os meios que eles buscavam para esclarecer as suas dúvidas e informações sobre a inovação.
Os profissionais foram observados no momento que estavam utilizando o PEC, em 3 dias típicos (sem feriados ou outra interrupção) de uma semana de trabalho em cada ESF. As observações foram registradas em um diário de campo e geraram “Notas de Observação” (NO). Para preservar o anonimato dos participantes foi atribuída a seguinte codificação: A categoria profissional e sua respectiva numeração, seguido da codificação da equipe de saúde da família pertencente, conforme exemplificado: “ENF2-ESFB” (Enfermeiro dois, pertencente a equipe de saúde da família B).
Os dados coletados foram submetidos à Análise de Conteúdo, na modalidade Temático-Categorial.9) Na primeira fase, a pré - análise, iniciou-se uma leitura “flutuante”, ou seja, o primeiro contato com as entrevistas e observações submetidos à análise, posteriormente, realizou-se a preparação do material. Na segunda fase, ou fase de exploração do material, as unidades de registro foram codificadas, gerando os núcleos de sentido (interpretações do pesquisador a luz do referencial teórico). Ainda, nesta segunda fase, os núcleos de sentido foram alocados em categorias pré-definidas a partir dos elementos da inovação definidos na TDI: canais de comunicação; tempo e sistema social. A categorização prévia também é uma possibilidade na Análise de Conteúdo. 10) Na terceira fase do processo de análise do conteúdo, realizou-se a interpretação dos resultados de forma a torná-los significativos e válidos, respeitando a inferência das entrevistas e observações e à interpretação de conceitos e proposições. O software Atlas Ti auxiliou na organização e sistematização da análise. O estudo obedeceu a Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde e foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São João Del Rei, sob parecer de nº 3.297.521, CAAE: 53159316.5.0000.5545.
Resultados
Os canais de comunicação envolvidos na difusão da inovação
Os canais de massa de mídia (YouTube e WhatsApp) emergiram como importantes mediadores da troca de informações buscando sanar dúvidas relacionadas ao PEC. Nestes canais, os vídeos explicativos do YouTube relacionados ao PEC contribuíram para a compreensão do uso da inovação:
“[...] a enfermeira sugeriu que eu assistisse os vídeos explicativos do YouTube [...]” (ENF1-ESFA).
Os canais de massa de mídia (YouTube e WhatsApp) e os canais interpessoais (a comunicação entre as pessoas) desatacaram-se como os principais canais de comunicação no processo de difusão da inovação em estudo. No que tange aos canais de comunicação de massa de mídia, tais como YouTube e WhatsApp, são reconhecidos como ideais para proporcionar a consciência da existência de novas ideias, tecnologias, processos e outras inovações. Além disso, tem proporcionado mudanças no conhecimento, atitudes e crenças em relação à adoção da tecnologia difundida, influenciando a sua aceitação, o processo de implantação e utilização.9
Os vídeos explicativos, vinculados ao Ministério da Saúde, também foram referidos como canais de comunicação sobre o PEC:
“[...]onde que entra, como que faz, o que que é SOAP, o que que ele quer no objetivo, no subjetivo. Ai a gente ficava assistindo na internet, tem muita palestra, do ministério da saúde [...]” (ENF4-ESFD).
Os grupos de WhatsApp, também foram apontados como um meio para a troca de informações entre os profissionais:
“[...] quando surge alguma dúvida sobre o PEC, eu busco os colegas no WhatsApp para tirar essas dúvidas [...] nós temos um grupo, no caso dos médicos, e eventualmente, se precisar de alguma coisa, a gente está conversando [...]” (M4-ESFG).
As “reuniões”, a “enfermeira”, os “colegas de trabalho” e o “técnico de informática”, foram os principais meios de comunicação, que compuseram os canais interpessoais. Em relação às reuniões, segundo os relatos dos profissionais, configurou-se como um espaço para “tirar dúvidas” (M2-ESFB), “troca de ideias” (ENF4-ESFD) e “troca de informações” (D4-ESFF) sobre o PEC.
Um dos profissionais enfatizou a importância da reunião de equipe como espaço para a comunicação de informações sobre o PEC, capacitação dos profissionais e padronizações:
“[...] Por exemplo, eu vou capacitar a minha equipe, tanto a técnica quanto a recepcionista, para mexer no PEC [..] a gente reuni os enfermeiros, e a gente discuti como que a gente faz, para todo mundo, falar a mesma língua e fazer igual [...]” (ENF5-ESFE).
A enfermeira também foi apontada como um canal interpessoal importante para comunicar informações sobre o PEC:
“[...] aprendo com a enfermeira chefe, que está mexendo mais no PEC [...]” (TENF2-ESFA).
O profissional descreve, a maneira como a enfermeira transmite as informações para os profissionais:
“[...]ela sentou e mostrou, olha o seu é assim, primeiro você vai fazer isso, depois você vai registrar isso[...]” (TENF3-ESFD).
Além disso, os entrevistados também destacaram outros colegas de trabalho, como canal interpessoal:
“[...]como todos já estão usando, e todos já têm uma certa familiaridade com o programa, a gente discute entre a gente as dúvidas, até ter uma resposta[...]” (ENF6-ESFF)
“[...]eu tive assim, as meninas que já trabalham aqui, é que me ensinaram, o colega também me passou[...]” (TENF1-ESFA).
Corroborando os relatos anteriores, observamos:
“[...] em vários momentos percebo situações onde alguns profissionais das equipes, ao usar o PEC, têm dúvidas em como registrar determinados procedimentos/atendimentos. A partir destas dúvidas recorrem predominantemente a outros profissionais da mesma categoria. A solução é repassada para os demais colegas” (NO).
O técnico em informática também foi reconhecido como um canal de comunicação interpessoal, porém acionado apenas se os outros meios de comunicação não solucionarem as dúvidas. Ao acompanhar uma enfermeira observamos:
“[...] durante o registro das informações no PEC, ela não estava conseguindo inserir determinada informação no software. Dessa forma, solicitou ajuda aos outros profissionais de saúde que estavam na unidade básica, porem ninguém conseguiu solucionar sua dúvida. Assim, relatou que iria ligar para o técnico de informática, para ajudá-la. Ela ligou para ele, e por telefone, o técnico conseguiu ajudá-la no registro da informação” (NO).
Além dos canais de massa de mídia, as pessoas foram reconhecidas como os principais canais de comunicações para a troca de informações sobre o PEC, conformando os canais interpessoais. Esses canais envolvem trocas e compartilhamentos de informações entre dois ou mais indivíduos e impregnam de significado a inovação difundida.2
Influências do sistema social na difusão da inovação
Verificamos que a adoção do PEC, inicialmente, ocorreu a partir das imposições das esferas de gestão superiores (Secretaria Estadual de Saúde e Ministério da Saúde). Foi comum o discurso da imposição de prazos e obrigação da adoção do PEC:
“[...] o que influenciou, foi a cobrança do ministério da saúde. Obrigou, datou, senão...iria ter penalidade para o munícipio [...]” (M4-ESFG).
Um Programa Governamental, também foi percebido pelo entrevistado, como um componente de influência sobre a decisão de adoção do PEC, nas unidades de saúde:
“[...]foi em 2014, quando institui o PMAQ [Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica], juntamente com esse programa, a gente começou a receber informações que teríamos, computadores nas unidades, e nos consultórios, com acesso à internet e que era obrigatório usar o prontuário eletrônico [...]” (D3-ESFE).
Apesar da implantação do PEC ser uma decisão imposta, conforme descrito anteriormente, os profissionais, ao experimentarem o PEC e perceberem seus resultados favoráveis, sentiram-se motivados a utilizá-lo:
“[...]eu acho que o PEC acrescentou muito para gente no dia a dia, mais fácil de lidar, eu acho que todo mundo aceitou bem. O que antes era uma imposição, depois foi bem aceito por todos aqui[...]” (ENF3-ESFC).
O enfermeiro foi reconhecido como um líder de opinião, influenciando as atitudes e o comportamento dos demais profissionais, contribuindo para a utilização do PEC. Em uma cena observamos:
“Estava na sala com a enfermeira, quando a médica bateu na porta, solicitando conversar com a enfermeira sobre o PEC. Aparentemente estava nervosa e aflita, pois estava tendo dificuldades para encontrar algumas informações no prontuário eletrônico. Em uma de suas falas, mostrou descontentamento com o sistema e disse que não queria utilizá-lo. A enfermeira tentou acalmá-la, e disse que iria sentar-se com ela para ajudá-la. Além disso, a enfermeira apresentou algumas vantagens do PEC. Ela também relatava para a profissional, a facilidade de encontrar informações dos pacientes pelo PEC. Percebi que a médica foi acalmando. Elas saíram da sala, seguiu para a sala da médica, dizendo que iria se sentar com ela para ajudá-la (NO)”.
A iniciativa de outra enfermeira, em auxiliar uma médica, no seu primeiro atendimento, via PEC, fortaleceu o processo de adoção da inovação, sendo reconhecida por uma entrevistada:
“[...] ela [enfermeira] falou assim, vamos testar... Então a gente pegou um paciente, digitamos o cartão SUS dele. A gente entrou, colocamos o nosso nome e o nome dele no prontuário, nós duas fizemos o atendimento, aí a partir disso, fui sozinha, aí foi deslanchando [...]” (M1-ESFA).
Outra participante reconheceu a liderança da enfermeira em influenciar a implantação e utilização do PEC:
“[...] a enfermeira chegou da secretaria e falou...oh, a partir de hoje a gente vai usar o PEC. Ela falou, eu vou passar para cada um [...] ela sentou e mostrou, olha o seu é assim, primeiro você vai fazer isso, depois você vai registrar isso [...]” (TENF3-ESFD).
Se externamente havia influências para uma adoção autoritária sustentada por normativas parametrizando e pressionando a aceitação da inovação, internamente, no cotidiano de trabalho da APS, os enfermeiros destacaram-se como incentivadores da adoção, compondo parte do sistema social que envolve a difusão do PEC. Os enfermeiros, no sistema social, exerceram sua expertise orientando ou se comunicando com colegas de trabalho sobre o uso do PEC, contribuindo significativamente para a difusão da inovação.
Verificamos a resistência de alguns profissionais, contribuindo para gerar adotantes tardios e retardatários. Percebeu-se que os médicos foram os profissionais mais resistentes, sendo apontados como os últimos a iniciarem a utilização do PEC (adotantes tardios):
“[...] os médicos não estavam querendo, porque eles tinham certa dificuldade, porque tinha que anotar tudo no PEC e isso tornava a consulta mais demorada [...]” (ENF6-ESFF)
A instabilidade na conectividade do PEC, também foi apontada como causadora desta resistência:
“[...] resistentes, principalmente da parte médica. Por causa da internet lenta. Tem vezes que a internet é lenta, tem vezes, que o programa é muito lento, então isso atrasa o atendimento [...]” (ENF5-ESFE).
Os profissionais com mais tempo de trabalho, também foram apontados como resistentes. A ausência de habilidade desses profissionais, em utilizar o computador cooperou para esta resistência:
“[...] os mais velhos têm mais resistência com o PEC, eles têm medo, de não saber mexer[...]” (D4-ESFF).
Outro profissional, na tentativa de explicar a resistência e por que se considera um adotante retardatário, alegou:
“[...] será que a forma que o PEC foi colocado pra gente, não seria só questões de desejos políticos? qual a finalidade? porque é muito jogado, está aí, começa a usar... fico sentindo algo como se fosse um vazio [...]” (M2-ESFB).
Alguns membros do sistema social imprimiram reinvenções sobre a forma de utilizar o PEC, com o propósito de facilitar sua aceitação:
“[...] vou criando...vamos dizer assim, alguns atalhos. Então por exemplo, você acaba deixando...igual eu deixo, algo as vezes pré-pronto, que eu alimento o sistema de forma mais rápida[...]” (ENF2-ESFB).
A falta de computadores disponíveis nos postos de trabalho também mobilizou a criação de estratégias para suprir tal fragilidade, como os revezamentos e as escalas de digitação:
“[...]a gente tem o nosso computador, os técnicos podem estar usando tanto da pré-consulta quanto da vacina, e os agentes a gente faz escala, pois eles precisam para lançar dados em outro sistema. Cada dia da semana um fica para digitar visitas e fazer os cadastros[...] (M1-ESFA). Outro participante endossou: [...] os técnicos e os agentes usam os nossos computadores quando possível, revezam entre eles [...]” (M2-ESFB).
Também observamos outras estratégias criadas a partir de situações circunstanciais próprias da realidade de trabalho dos profissionais: nem todos os profissionais utilizam o PEC; manutenção do uso do papel em detrimento do PEC; entendimento de que o PEC se destina apenas a profissionais de nível superior; uso do PEC a partir de tentativas, erros e acertos. A cena observada descreve os achados:
“Observo que os indivíduos que utilizam o PEC, distinguem-se de equipe para equipe, nem todas as categorias profissionais que utilizam o PEC em uma equipe de saúde, são as mesmas que utilizam em outra. Em algumas equipes de saúde, o técnico de enfermagem, não utiliza o PEC. Eles ainda registram as informações no papel. Quando questionados o motivo de não utilizarem, eles alegam que não possuem um login, para acessar o sistema, e outros afirmam que o PEC é destinado apenas aos profissionais com ensino superior. Percebo que o uso do PEC se dá de forma intuitiva, a partir de tentativas, erros e acertos” (NO).
A cena anterior é confirmada pelo relato do profissional:
“[...]a secretaria definiu que a gente ia iniciar com o prontuário eletrônico. Que era para abolir mesmo os papéis [...] até que tentaram, mas não tinha ninguém qualificado para estar ensinando para gente. Até então, está assim, está sempre empurrando as informações, mais não tem ninguém qualificado. Eles mesmo falam que não tem nem na regional, alguém qualificado, para vir e ensinar para eles, para eles passarem para gente. Então é desse jeito que a gente está tentando, errando, acertando[...]” (M2-ESFB).
Foi possível perceber que as condições para implantação da tecnologia não são as mais adequadas, assim os profissionais acabam por criar estratégias/(re)invenções sobre a própria forma de utilizar a tecnologias, a saber, escalas de digitação por não ter computadores suficientes; coexistência entre tecnologia e papel; adaptações no mobiliário, dentre outras.
Influências do tempo na difusão da inovação
Os entrevistados, em seus relatos, destacaram o tempo de experimentação como um elemento favorável à compreensão do PEC e suas possíveis contribuições ao cotidiano de trabalho:
“[...] no primeiro contato eu achei muito para o trabalho do dia a dia... Mais aí depois, com algumas semanas, foi tranquilo. Eu fui mexendo e vendo que era bem fácil e prático[...]” (ENF3-ESFC).
Já outro entrevistado destacou a necessidade de alguns meses para reconhecer a importância do PEC:
“[...]para eu acostumar registrar no PEC, para ver que era importante, e era mesmo o prontuário [...] demorou mais o menos uns quatro, cinco meses, depois que implantou[...]” (D1-ESFA).
Verificou-se que o tempo também foi importante para minimizar as dificuldades em utilizar o PEC no dia-a-dia de trabalho:
[...]evoluí muito. No início era mais demorado, a gente ficava, como que faz isso, como faz aquilo, aí fazia errado, aí não sabia como que voltava e apagava. Acho que de uns 15 dias a coisa já engrenou bem. Hoje está bem mais fácil[...] (ENF4- ESFD).
O elemento tempo, foi importante para minimizar as dificuldades de compreensão e utilização do PEC. Apesar da decisão pela adoção ser imposta, o tempo de experimentação contribuiu para amenizar resistências e aproximar os profissionais das funcionalidades disponibilizadas pela inovação.
Discusâo
Ante o exposto, foi possível compreender que os profissionais ao se depararem com a necessidade de adoção da tecnologia, buscaram nos canais de comunicação, tais quais Whatsapp e YouTube, conteúdos, vídeos e explicações sobre a melhor forma de utilização da inovação em implantação. Isto enfatiza a importância das redes sociais virtuais e o uso da internet como canais de comunicação utilizados para buscar informações visando sanar dúvidas sobre artefatos tecnológicos.9,10,11
Assim, os canais de comunicação de massa de mídia precisam ser estimulados no que tange a implantação e a utilização do PEC, pois já fazem parte do cotidiano dos profissionais. É preciso socializar tais canais com todos os possíveis adotantes da inovação, fortalecendo a aceitação entre os profissionais. Ressaltamos que o PEC vêm sendo implantado na Atenção Primária a Saúde em todo o território nacional e destina-se à gestão das informações das ações individuais e coletivas realizadas por todos os profissionais que compõem as equipes de saúde, cada um com suas especificidades.12,13 Desta feita, a socialização dos canais de comunicação acerca da utilização do PEC deve ser incentivada entre todos os profissionais. A exclusão de potenciais adotantes ou a morosidade em envolvê-los pode desencadear adotantes tardios, retardatários e resistentes a inovação. Isto torna a difusão da inovação demorada e com tendências ao insucesso.2
Além disso, é imprescindível qualificar o conteúdo disponibilizado visando a instrumentalização assertiva do uso da tecnologia. Os canais de massa de mídia devem ter informações qualificadas, confiáveis, e serem de fontes confiáveis. Órgãos públicos responsáveis pelo PEC (Ministério da Saúde) devem manter a disseminação de conteúdo para os municípios de forma acessível, clara e buscando instrumentalizar os profissionais na utilização da tecnologia.
Pôde-se perceber que as relações interpessoais influenciam a maneira como as pessoas adotam novas ideias e podem melhorar a mudança comportamental, a eficiência organizacional, bem como a difusão e disseminação de inovações.14,15 Além disso, os canais de comunicação interpessoais são mais eficazes do que os canais de massa de mídia, na formação e sustentação de atitudes em relação a uma inovação, uma vez que a difusão de inovações é essencialmente um processo social que implica a troca de ideias aceitas ou minimamente consensuadas entre as pessoas.16,17,18
Outra questão que emergiu no caso em estudo, é o fato da adoção do PEC ser dificultada pela maneira como vem sendo decidida a sua adoção, inicialmente a partir de pressões, obrigatoriedades e normatizações do Ministério da Saúde, programas governamentais e da gestão municipal, caracterizando um sistema social impregnado por decisões autoritárias.
As decisões autoritárias são escolhas para adotar ou rejeitar uma inovação, que são feitas por um número relativamente pequeno de indivíduos em um sistema que possui poder, status ou conhecimento técnico.2) Entretanto, esta forma de implantação de tecnologias da informação no contexto da saúde pública brasileira, pode induzir os estados e municípios a cumprirem tais exigências, com pouco interesse em participar de um processo coletivo onde se discute a implantação planejada e sistemática de inovações tecnológicas.12,13,19 Como consequência, dessa obrigatoriedade, os profissionais de saúde podem não reconhecer as inovações como aliadas, dificultando a possibilidade de criação de significado sobre as tecnologias.12,20
Em relação ao tempo de experimentação da inovação, é possível compreender que esse favorece a criação de significados, possibilita a correção de equívocos e amplia a possibilidade de participação das pessoas em suas modificações, contribuindo para a sua aceitação.13 Assim, a continuidade da implantação do PEC em território nacional deve acompanhar um movimento coletivo, minimamente consensuado e com tempo de experimentação. Parte dos problemas com as inovações tecnológicas em saúde poderiam ser evitados se os profissionais de saúde estivessem envolvidos no planejamento, desenvolvimento, aquisição ou adaptações das tecnologias e se fosse destinado um tempo de experimentação adequado para sua utilização. É neste período que ocorrerão discussões, adequações e aprimoramentos.21,22,23,24
Os enfermeiros foram reconhecidos como atores capazes de influenciar as atitudes dos outros ou o comportamento, por meio de interações informais, com relativa frequência.2 Alguns estudos vêm apontando os enfermeiros com melhores avaliações na utilização de inovações tecnológicas, e, portanto, com maior adesão ao uso de tais inovações.25,26 É pertinente que o enfermeiro, enquanto líder de equipe, incentive a adesão de recurso informatizado e esteja inserido na implantação e gestão de recursos tecnológicos, para o máximo aproveitamento de todos os benefícios que a tecnologia promova visando a gestão qualificada das informações e a segurança dos pacientes.27,28
Por outro lado, alguns potenciais adotantes, componentes do sistema social, resistiram a adoção da inovação no cotidiano de trabalho, justificando-se a partir de algumas situações: a percepção de complexidade do PEC; a instabilidade na conectividade; o fato de serem profissionais com mais tempo de trabalho e não ambientados com tecnologias; a ausência de habilidades para utilizar o PEC; deficiências estruturais do próprio ambiente de trabalho. Sabe-se que a resistência à adoção de inovações posterga a sua aceitação, gerando os adotantes tardios ou pode até mesmo desencadear o seu insucesso.2,25,26,29 Apesar de as (re)invenções se conformarem como adaptações para o uso da tecnologia, visando o desenvolvimento das atividades laborais, como demonstrado nos depoimentos, algumas podem produzir repercussões negativas sobre o processo saúde/doença/cuidado.12 O uso de um prontuário eletrônico concomitante com outros instrumentos de coleta em papel destinados a registrar as informações clínicas de um indivíduo ou de sua família, podem produzir duplicidades, incompletudes e dificuldades para recuperação da informação.30 A indisponibilidade de computadores e de acesso a conectividade lentifica o processo de registro das informações, impactando diretamente sobre a assistência prestada.31 Tais situações desqualificam a gestão da informação em saúde.
Neste sentido, é preciso suplantar a gênese das resistências verbalizadas pelos profissionais, anulando possibilidades de justificativas para a não adoção de uma inovação. De forma predominante, são necessários maiores investimentos na estrutura de informática na Atenção Primária a Saúde do Brasil. A maioria das unidades de saúde, não possuem computadores suficientes para todos os profissionais, além de a conectividade e disponibilidade de internet serem limitadas.32 Em paralelo, a capacitação dos profissionais, de forma sistemática, é fundamental par o desenvolvimento de habilidades, competências e significados sobre o uso da tecnologia, contribuindo para sua adoção.
Os estudos revelam que um programa de educação estruturado e treinamento específico contribuem para melhorar o desempenho dos profissionais quanto ao uso das inovações tecnológicas, diminuindo sua percepção de complexidade e favorecendo a aceitação da tecnologia.33
Neste estudo foi possível analisar as influências dos elementos (canais de comunicação, tempo e sistema social) sobre a difusão do Prontuário Eletrônico do Cidadão. Os canais de massa de mídia (YouTube e WhatsApp) e as pessoas (canais interpessoais) emergiram como influenciadores do processo de difusão da inovação, potencializando a aceitação da tecnologia. Pressões externas pela adoção do PEC (normativas governamentais) e influências de mobilizadores pela adoção (enfermeiros líderes) conformaram a dinâmica do sistema social, contribuindo para a aceitação coletiva da inovação. O elemento tempo foi fundamental para que os profissionais pudessem compreender melhor o PEC, o seu uso, suas possibilidades e até necessidades de aprimoramento.
A difusão do PEC também foi influenciada por resistências de potenciais adotantes, componentes do sistema social, que mobilizaram estratégias/(re)invenções da utilização do PEC mediante situações circunstanciais (deficiências estruturais, tecnológicas e de capacitação). Sobre tais situações são necessárias intervenções com vistas a maximizar as possibilidades de adoção da tecnologia.
O estudo apresenta como limitação a sua capacidade de generalização por se tratar de um estudo de caso. Além disso, há a limitação do recorte temporal, pois o processo de difusão de uma inovação é dinâmico e contínuo. Entretanto, os resultados apresentados podem subsidiar a continuidade de outras investigações que aprofundem a compreensão sobre a difusão do PEC e suas repercussões sobre as relações entre os profissionais e pacientes. Faz-se necessário avançar no desenvolvimento de pesquisas que tenham como ênfase a compreensão dos fatores determinantes da utilização da tecnologia com foco no cuidado e organização do cotidiano de trabalho. Além disso, é preciso que em estudos futuros se compreenda a percepção dos usuários dos serviços de saúde acerca do processo de incorporação do PEC, bem como as repercussões éticas que emergem neste contexto.