INTRODUÇÃO
A infecção pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV) é considerada um problema de saúde pública mundial. Segundo estimativas da Organização Mundial de Saúde (OMS),1 em 2014, 36,9 milhões de pessoas viviam com o HIV no mundo. Nesse mesmo ano, cerca de 2 milhões de pessoas foram infectadas e 1,2 milhões de pessoas morreram de causas relacionadas com a AIDS.
Estimativa realizada pelo Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais estima que existia aproximadamente 734 mil pessoas vivendo com HIV/aids no Brasil no ano de 2014. Até junho de 2014, foram notificados no Sistema de Informações de Agravos de Notificações 70,677 casos de infecção pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV) entre adultos. Do total de casos identificados de 1980 até junho de 2014, a região Nordeste apresenta 14,3 %.2
O HIV atua na infecção das células do sistema imunitário, destrói ou prejudica sua função. Em decorrência da deficiência do sistema imune surgem as infecções oportunistas e a síndrome da imunodeficiência adquirida (aids) que se caracteriza pelos estágios mais avançados da infecção pelo HIV.1
A transmissão do vírus ocorre por relações sexuais sem proteção, transfusão de sangue contaminado, compartilhamento instrumentos cortantes contaminados, além de transmissão vertical.1 A suscetibilidade à infecção pelo HIV vem crescendo entre adolescentes, por seu comportamento vulnerável;3 entre mulheres, notado pelo feminização da aids;4 entre idosos, pelo aumento da expectativa de vida5 e na população privada de liberdade, independente da faixa etária.
Nas últimas décadas surgiu a preocupação com estudos relacionados à Aids que avaliem a vulnerabilidade de grupos populacionais do cenário mundial.6 A operacionalização da vulnerabilidade possibilita avaliar objetiva, ética e politicamente as condições de vida que tornam indivíduos e grupos expostos e os elementos que favorecem a construção de alternativas reais para o seu enfrentamento. A população privada de liberdade tem se destacado pelas suas vulnerabilidades individuais e sociais.6,7
Pessoas privadas de liberdade no sistema prisional são aquelas com idade superior a 18 (dezoito) anos e que estejam sob a custódia do Estado, em caráter provisório ou sentenciados para cumprimento de pena privativa de liberdade ou medida de segurança, conforme previsto no Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941e na Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984.8
De acordo com o Departamento de Penitenciária Nacional (DEPEN), o Brasil apresentou um aumento de sua população carcerária de 143 % no período de 1995 a 2005, quando passou de 148.000 para 361.402 detentos com taxa anual de crescimento em torno de 12 % ao ano. Em 2009, os registros apontaramm a existência de 473.626 internos. No mesmo ano, o Piauí tinha 2.591 presos, com uma taxa da população carcerária de 82,38 por 100.000 mil habitantes.7
Ressalta-se que o ambiente prisional oferece maior exposição à transmissão de doenças infecciosas, riscos físicos e psicológicos, de forma que em qualquer parte do mundo as populações carcerárias apresentam uma necessidade de melhor assistência à saúde.9
Para assegurar ações de âmbito nacional para essa população, foi instituída a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP) no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), pela Portaria Interministerial nº 1, de 2 de janeiro de 2014. Apresenta seis princípios, dentre eles: integralidade da atenção à saúde da população privada de liberdade no conjunto de ações de promoção, proteção, prevenção, assistência, recuperação e vigilância em saúde, executadas nos diferentes níveis de atenção.8
Frente ao crescente número de detentos no Brasil e em particular no Piauí e diante do perfil de vulnerabilidade que essa população apresenta, esta pesquisa justifica-se pela produção de informações que possam vir subsidiar ou corroborar com a sistematização da atenção prestada à população privada de liberdade, no tocante a ações de promoção da saúde e prevenção de doenças e agravos, como proposto pela política nacional de atenção integral a saúde da pessoa privada de liberdade.
O objetivo desse estudo foi analisar a vulnerabilidade para a infecção pelo vírus HIV na população privada de liberdade no município de Teresina-Piauí.
MÉTODOS
Estudo transversal desenvolvido por meio de inquérito epidemiológico. O estudo integra uma pesquisa intitulada “Prevalência de DST e fatores de risco relacionados ao álcool e outras drogas no sistema prisional do Piauí”. Foi realizada em três unidades prisionais de Teresina-PI, com o universo de internos sob regime fechado ou semiaberto (n=1.258). Adotou-se como critérios de exclusão: não estar em condições de responder as perguntas do estudo (n= 21); e aqueles que, no período da coleta de dados, encontravam-se em unidades com motins/rebeliões (n= 218). Além disso, 69 recusaram participação, redundando em 950 internos participantes, que representam 75,5 % da população que cumpre pena sob os referidos regimes nos presídios de Teresina.
Os dados foram coletados mediante o consentimento expresso da amostra estudada, no período de outubro a dezembro de 2014, pela própria autora, juntamente com alunos (Graduação e mestrado em enfermagem) e uma equipe de pesquisadores de campo da Secretaria de Estado da Saúde do Piauí, submetidos a treinamento prévio. Os participantes foram recrutados pelos agentes penitenciários e funcionários do sistema penal nos pavilhões. Realizou-se a entrevista estruturada, por meio da utilização de formulário adaptado do estudo de Araújo et al,3 contendo questões predominantemente fechadas relacionadas às variáveis: idade, sexo, cor, estado civil, escolaridade, profissão, renda individual e familiar, plano de saúde, religião, conhecimento sobre HIV, uso de álcool e/ou outras drogas, compartilhamento de material perfuro cortante, ter tatuagens ou piercings, presença de DST na vida e práticas sexuais. Tomou-se como variável dependente o conhecimento sobre o HIV e as demais como independentes.
Os dados foram digitados em banco e analisados com a utilização do aplicativo Statistical Package for the Social Science (SPSS), versão 19.0. Após a checagem e limpeza do banco de dados foram realizadas análises univariadas, por meio de estatísticas descritivas simples com distribuição de frequências absolutas, percentuais simples e medidas de tendência central. Ressalta-se que algumas variáveis foram recategorizadas para facilitar as análises.
Para determinar o conhecimento sobre o HIV e os fatores associados à mesma foram utilizadas estatísticas descritivas (proporções) e inferenciais. Na estatística inferencial foram aplicados testes de hipóteses bivariados de associação de Mann-Whitney, Qui-quadrado e Exato de Fisher,10 com nível de significância de 0,05 para rejeição da hipótese nula.
Na realização deste estudo foram respeitados os preceitos éticos legais baseados na Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) nº466/12, garantindo-se a confidencialidade, privacidade e a não utilização de informações em prejuízo dos participantes. O macroprojeto foi autorizado pela Secretaria de Justiça do Estado do Piauí e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Federal do Piauí sob o parecer nº 335.963.
RESULTADOS
Do total de entrevistados, a maior parte era residente de Teresina (63,16 %), do sexo masculino (83,79 %), com faixa etária de até 30 anos de idade (65,37 %), pele mista (59,37 %), situação conjugal solteiro/separado/viúvo (59,53 %), com até dois filhos (76,11 %) e renda pessoal de até um salário mínimo (76,42 %). A expressiva maioria não frequentou a escola (91,68 %), nem tem plano de saúde (88,74 %) e se declararam católicos (58,32 %) (tabela 1).
Quanto aos fatores de risco relacionados ao uso de álcool e outras drogas 79,16 % referiram beber. Em relação ao uso de drogas, 61,37 % referiram fazer uso de algum tipo. Observou-se que 66,21 % têm tatuagem e 15,58 % piercing. Foi evidenciado que 90,84 % têm relações sexuais com o sexo oposto e apenas 27,26 % fazem uso regular. Foi evidenciado que a população do estudo, em sua maioria, tem algum conhecimento sobre HIV (75,26 %) (Tabela 2).
Ao cruzamento do conhecimento sobre HIV com a média dos dados sociais e demográficos, verificou-se que apenas as variáveis, anos de estudo e renda familiar apresentaram associação estatisticamente significativa (p<0,05) (Tabela 3).
Legenda: *O p valor foi obtido Teste de Mann-Whitney. O nível de significância estatística foi fixado em p≤0,05.
Quanto ao conhecimento sobre HIV relacionados ao uso de álcool e outras drogas, foi evidenciado que dos participantes que referiram ter informações, 75,13 % faziam uso de bebida alcoólica, 73,07 % usavam alguma outra droga, 80,00 % compartilhavam material perfuro cortante, 75,56 % não tinham tatuagem, 85,81 % tem piercing e 80,00 % já fizeram uso de seringa de vidro. Foram estatisticamente associadas ao conhecimento sobre HIV, as variáveis: utiliza algum tipo de droga (p=0,01), compartilha material perfuro cortante (p<0,01) e uso de piercing (p=0,01.) (Tabela 4).
Legenda: *O p valor foi obtido pelo teste exato de Fisher e Teste de Qui-quadrado. O nível de significância estatística
foi fixado em p≤0,05.
Conforme a tabela 5 ao relacionar-se o conhecimento sobre HIV na população do estudo com as práticas sexuais, verificou-se associação estatisticamente significativa com a parceria sexual (p<0,01) e uso de camisinha (p<0,01).
DISCUSSÃO
O conceito de vulnerabilidade envolve duas dimensões, sendo estas, individual e coletiva, este último desdobrado nos aspectos programático e social. Dimensão individual avaliam-se aspectos cognitivos, comportamentais e sociais. A programática diz respeito ao acesso aos recursos sociais necessários para evitar a exposição aos agravos, além de acessar os meios de proteção. A dimensão social abrange aspectos estruturais relacionados à educação, aos meios de comunicação, às políticas sociais, econômicas e de saúde, à cidadania, gênero, cultura, religião, fatores que exercem influência nas outras dimensões.11 Nesse estudo, foi
possível destacar diversos fatores que abrangem as duas dimensões da vulnerabilidade na população carcerária.
Na presente pesquisa, observou-se uma expressiva maioria de detentos do sexo masculino em idade muito jovem, até 30 anos. Estudo realizado em Pernambuco encontrou média de 28,6 anos.12 Ambos estão de acordo com a média nacional, na qual 55 % dos detentos apresentam idade menor que 29 anos.7
De acordo com o levantamento realizado no sistema penitenciário brasileiro 5,4 % dos detentos são analfabetos.7 Nesse estudo o percentual dos que não frequentaram a escola foi superior ao percentual nacional de não frequentantes e dentre aqueles que a frequentaram 98,74 % foi por no máximo cinco anos. A falta de educação é considerada um dos fatores que favorecem a entrada de indivíduos na criminalidade.13
É pertinente a associação da carência educacional com a criminalidade. Além da preocupação da inserção de adultos nas escolas, há uma também preocupação com a educação no sistema prisional, que ainda apresenta baixos índices. Ressalta-se que grande parte das unidades prisionais do país, não possuem sala de aula, o que contraria o disposto na Lei 12.245 de 2010, que obriga o oferecimento de educação básica e profissionalizante aos internos.14
Dentre os fatores que podem tornar a população do estudo vulnerável ao HIV, identificou-se o uso de fumo e álcool diariamente, uso de algum tipo de droga ilícita, presença de tatuagem e piercing, corroborando com a literatura.12,13,15,16,17
Ao analisar os conceitos de risco e vulnerabilidade, tem-se que risco indica probabilidade, enquanto a vulnerabilidade se constrói como indicador da iniquidade e da desigualdade social,11 nesse sentido, coloca-se a população privada de liberdade em ambos os conceitos, iniciando-se pela vulnerabilidade ligada à desigualdade social, bem como, no conceito de risco onde a probabilidade aumenta no sistema prisional.
Esse estudo relevou uma associação estatisticamente significativa entre as informações sobre HIV, com o uso de preservativo e parceria sexual. A maioria usa preservativo às vezes ou não usam e declaram o não uso por “não gostar”, situação também encontrada em outras pesquisas.18,19,20
Estudo realizado no sistema prisional do Ceará evidenciou que apenas 22,6 % tinham conhecimento acerca do uso do preservativo masculino, demonstrando uma superficialidade dos conhecimentos.9 Outra associação pertinente foi evidenciada por Cardoso et al,16 o qual verificou que o fato de o detento estar alcoolizado ou drogado também influencia bastante no caso do não uso do preservativo com parceiro eventual, porém não gostar do dispositivo é o fator mais relevante.
Frente as associações quanto a fatores de risco, que dizem respeito à uso de drogas, álcool, tatuagens, piercing e uso de preservativos, questiona-se o conhecimento dos detentos sobre os mesmos e a eficácia de políticas públicas voltadas à essa população, visto que há uma contradição entre as informações que relataram e as suas práticas.
A disseminação do HIV nos presídios, se relaciona às relações sexuais que ocorrem, não somente nas visitas íntimas, mas, também, no cotidiano da vida prisional por meio do homossexualismo.9,21
A Organização Pan Americana de Saúde (OPAS) relaciona a vulnerabilidade da população privada de liberdade ao HIV/aids ao contexto do próprio sistema, inter-relacionando situações de superpopulação, violência, iluminação e ventilação naturais insuficientes, às inadequações nos meios de higiene pessoal e de nutrição, falta de acesso a água potável e a serviços de saúde.21
Ações educativas, como oficinas de educação em saúde e formação de multiplicadores, são consideradas estratégias a se trabalhar no ambiente prisional, mesmo que este apresente baixos índices de escolaridade.19 Essas estratégias governamentais de promoção da saúde são necessárias, uma vez que proporcionam aumento do conhecimento sobre fatores de risco contra a transmissão de DST/aids.22
Pode ser redundante falar da vulnerabilidade de presidiários, quando se avalia o comportamento de detentos e as condições do sistema prisional como um todo. No entanto, é pertinente enfatizar que a falta de acesso às informações, a escassez de preservativos, descontinuidade no tratamento, falta de programas de diagnóstico precoce, tratamento e prevenção, bem como, fragilidade de políticas públicas de atenção à essa população, se configuram como fatores potenciais de vulnerabilidade.19
Em conclusão, os resultados deste estudo evidenciaram que as pessoas privadas de liberdade compõem um grupo vulnerável à infecção pelo HIV, não apenas pela sua condição de detento, mas principalmente pela baixa escolaridade e baixa renda, pela multiplicidade de parceiros associado ao uso inadequado de preservativos. Observa-se que ainda são muitas as fragilidades encontradas nessa população, pois, está propícia à falta de informações e acesso à promoção e prevenção da saúde.
As pesquisas realizadas em ambiente prisional, pelas suas especificidades apresentam dificuldades que de certo modo, limitam a sua operacionalização. No que diz respeito às respostas auto-declaradas, estão sujeitas a viéses de informação, especialmente no tocante às variáveis relacionadas culturalmente ao preconceito e estigma, tais como parcerias sexuais, tipo de sexo que pratica e uso de preservativo.
É notória a necessidade de ações públicas de saúde, incluindo estratégias de promoção de saúde que englobem a complexidade dos fatores envolvidos na vulnerabilidade ao HIV/aids, bem como outras infecções, que contemplem a demanda de saúde dos internos do sistema prisional do Estado.