Introdução
Os cistos dentígeros (CD) são considerados os cistos odontogênicos do desenvolvimento mais comuns e responsáveis por aproximadamente 20 % de todos os cistos que ocorrem em mandíbula.1 É originado pela separação do folículo que se encontra ao redor da coroa de um dente não irrompido2 e a sua etiopatogenia ainda não é totalmente conhecida. Entretanto, acredita-se que esta patologia pode estar relacionada ao epitélio reduzido do órgão do esmalte, iniciando seu desenvolvimento, logo após a formação da coroa do dente. O seu crescimento, então, está relacionado ao acúmulo de líquido entre o epitélio reduzido do órgão do esmalte e a coroa do dente não irrompido.3,4
Este tipo de lesão apresenta-se de forma assintomática e com crescimento lento. Entretanto, não são auto limitantes, sendo assim, podem crescer consideravelmente causando assimetria facial, expansão da cortical óssea, deslocamento de dentes ou de suas estruturas adjacentes, parestesia e incômodo.3
O CD possui características radiográficas como radiolucidez com limites bem definidos, margem esclerótica e halo radiopaco e costuma ser associado às coroas de dentes retidos e se fixam na junção amelocementária.4 Apresenta-se como uma área radiolúcida unilocular, embora aspectos multiloculares também possam ocorrer nas grandes lesões.5,6 Podem exibir três variantes radiográficas (central, lateral e circunferencial), de acordo com o envolvimento da coroa.3
Histologicamente, as características do cisto dentígero são variáveis, portanto, não podem ser utilizadas com segurança para distingui-las de outros tipos de cistos odontogênicos.2 Caso não esteja inflamado, possui uma cápsula de tecido conjuntivo frouxo e delgado, revestido por células epiteliais não ceratinizadas, composto por duas ou três camadas de células planas ou cuboidais. Todavia, quando há uma infecção secundária presente, o tecido conjuntivo é mais denso, com variável infiltração de células inflamatórias crônicas. O epitélio de revestimento pode apresentar níveis variáveis de hiperplasia, com desenvolvimento de cristas epiteliais com características escamosas mais marcantes.1,2,5)
Algumas lesões, como o queratocisto e o ameloblastoma unicístico, podem apresentar características clinico-radiográficas semelhantes.4) Apesar de raro, já foi descrito sobre a possibilidade de o revestimento de um cisto dentígero sofrer transformação neoplásica para um ameloblastoma.6,7
Relato de caso
Paciente de 14 anos, gênero feminino, melanoderma compareceu ao ambulatório II da disciplina de Cirurgia I no Departamento de Odontologia da Universidade Federal de Sergipe, localizado na cidade de Aracaju, no Brasil, após ter sido encaminhada pelo ortodontista, que foi procurado para dar início ao tratamento ortodôntico. Ao exame clínico, não apresentava alterações nem aumento de volume na mucosa.
Ao exame radiográfico de rotina da ortodontia (panorâmica) foi constatado lesão radiolúcida unilocular possuindo margem bem definida e esclerótica que envolvia a coroa das unidades 4.8 e 4.7 (Fig. 1).
Foi realizado em ambulatório sob anestesia local a enucleação e curetagem da lesão juntamente, remoção das unidades 4.8 e 4.7 e aplicação de crioterapia na loja óssea. O conteúdo da membrana da lesão foi encaminhado para exame histopatológico.
A macroscopia revelou em um fragmento da lesão com apresentação de consistência borrachóide, formato irregular, e superfícies lisas, exibindo coloração ora pardacenta ora acastanhada. Aos cortes, foram observadas secções de coloração ora esbranquecida ora enegrecida e consistência já descrita.
O exame microscópico corados em Hematoxilina-Eosina (HE) revelou fragmento de cápsula cística intensamente infiltrada por linfócitos, plásmocitos, e grande quantidade de neutrófilos exibindo proeminente neoformação vascular (Fig. 2A e 2B).
Em outras áreas do espécime o tecido conjuntivo encontrava-se menos inflamado, denso e com ilhotas inativas de epitélio odontogênico (Fig. 2C e 2D). A cápsula cística se apresentava parcialmente revestida por epitélio escamoso não queratinizado exibindo hiperplasia arciforme prenunciada, exocitose, espongiose e degeneração hidrópica que, em áreas focais, assume uma aparência mais delgada e uniforme, porém descontinuo, constituído por células cuboidais pequenas (Fig. 2A).
Em uma das secções foi possível notar a presença de proliferação de células epiteliais cuboidais pequenas e uniformes sob a forma de cordões anostomosados, que se insinuavam no tecido conjuntivo fibroso lembrando a lâmina dentária (Figura 2E). A presença de exsudato serofibrinoso completa o quadro histopatológico de cisto dentígero inflamado com área focal de proliferação epitelial compatível com ameloblastoma plexiforme (Fig. 2F).
Concluiu-se em um laudo diagnóstico de cisto dentígero inflamado com área focal de proliferação epitelial compatível com ameloblastoma plexiforme. Até o presente momento a paciente encontra-se em acompanhamento clínico e radiográfico pós-operatório de 2 anos e 11 meses com neoformação óssea na região (Fig. 3).
Discussão
O cisto dentígero costuma ocorrer predominantemente nas três primeiras décadas de vida, tem como predileção o sexo masculino e acomete mais indivíduos leocodermas8 e dentes mais frequentemente acometidos pelo CD são os terceiros molares inferiores, já que estes possuem maior chance de se encontrarem inclusos.9 Por outro lado, a ocorrência de ameloblastomas em crianças e adolescentes com idade inferior a 18 anos é incomum como relata um trabalho que observou apenas 14,6% em 206 casos de ameloblastoma eram em crianças.10
A paciente supracitada apesar de possuir idade equivalente à que predomina em relação a esse tipo de cisto, não possui idade equivalente a que predomina o ameloblastoma, assim como também não se enquadra nos critérios de incidência quanto ao sexo e raça. Apesar da sua maior frequência ser em dentes inclusos, o cisto dentígero pode ocorrer em qualquer dente impactado inclusive em segundos molares inferiores como visto no caso relatado.
Cistos e tumores odontogênicos são entidades distintas com uma ocorrência bastante comum na mandíbula. O revestimento de cistos odontogênicos mostra um potencial de transformação neoplásica para neoplasias malignas não odontogênicas como carcinomas de células escamosas ou carcinomas mucoepidermóides, bem como tumores odontogênicos como o adenomatoide e o ameloblastoma. No entanto, poucos casos foram relatados de tumores decorrentes de cistos odontogênicos.11
É possível que estes dados relativos as transformações neoplásicas sejam mascarados pelo tempo de evolução em que se encontram as lesões. Cistos e tumores odontogênicos são diagnosticados em sua maioria através de achados radiográficos,4 o que pode comprometer a hipótese de sua origem. No presente relato o diagnóstico foi feito quando a lesão ainda tinha pequenas dimensões e a paciente aos 14 anos, o que pode ter favorecido encontrar essa fase mista de características histológicas da cápsula cística.
O ameloblastoma é um tumor de origem odontogênica que, embora seja benigno, apresenta um comportamento infiltrativo local. Esse tipo de tumor acomete geralmente, a região posterior da mandíbula. São descritos histologicamente em cinco tipos: folicular, plexiforme, acantomatoso, de células basais e granulosas, sendo que os dois primeiros são as variantes mais encontradas.2 Eles são caracterizados por uma alta taxa de recorrência devido à natureza invasiva local, sendo assim, requerem um diagnóstico exato e tratamento cirúrgico. No entanto, as modalidades de tratamento não foram claramente definidas.12 No laudo histopatológico da paciente, foi observado área focal de proliferação epitelial compatível com ameloblastoma plexiforme.
O tratamento do cisto dentígero deve levar em consideração a idade do paciente, e o envolvimento de dentes e outras estruturas anatômicas. A modalidade de tratamento a ser escolhida irá depender das características clínico-radiográficas. Em acordo com a literatura foram realizadas a curetagem e a enucleação que consiste na remoção da lesão cística por inteiro, sem rupturas juntamente com a remoção do dente não-erupcionado.13 A remoção completa do cisto dentígero é importante devido à possibilidade de recorrência da lesão, e de a camada epitelial poder se transformar em tumores como carcinoma espinocelular e ameloblastoma. 2 A mutação ou supraexpressão do gene p53, um regulador oncogênico, situado no braço curto do cromossomo 17 pode estar relacionada a um aumento na proliferação celular, principalmente na progressão de cistos e tumores. Além disso, o cisto dentígero foi descrito como um dos cistos com a mais alta taxa de expressão do gene p53.14
Por outro lado, o tratamento conservador (marsupialização, enucleação e curetagem) em ameloblastomas, embora, preserve a integridade do osso, está associado a altas taxas de recidiva12 enquanto o tratamento radical pode deixar um grande defeito funcional e estético.15 A crioterapia foi associada ao tratamento, já que o nitrogênio líquido possui a capacidade de desvitalizar o osso in situ e manter a estrutura inorgânica intacta. Além de reduzir a frequência de recidivas proporciona menor morbidade, preservando a função e melhorando o resultado estético se comparado a tratamentos mais radicais como uma ressecção.16
Devido à chance de recorrências faz-se necessário acompanhamento do paciente, neste caso, ela vem sendo assistida há 3 anos.
Conclusões
O cisto dentígero é uma entidade patológica que exige do cirurgião dentista uma minuciosa investigação diagnóstica e um plano de tratamento adequado, a fim de erradicar a lesão, mas sempre buscando minimizar os danos as estruturas adjacentes. Para o cisto dentígero com transformação ameloblástica, a associação enucleação/crioterapia parece promover resultados satisfatórios, tanto funcional e esteticamente quanto no controle da doença.