INTRODUÇÃO
Os cânceres de cabeça e pescoço são frequentemente tratados com radioterapia. Uma técnica que, por meio da radiação ionizante, provoca alterações no material genético das células malignas levando-as a morte celular. Pelo mesmo mecanismo, células lábeis de tecidos normais também são comprometidas e numerosos efeitos adversos surgem durante e após o tratamento radioterápico. Na cavidade oral pode-se citar: mucosite, xerostomia, disgeusia, cárie dentária, infecção, trismo e osteorradionecrose.1
Uma das primeiras consequências da radioterapia é o desenvolvimento de cárie. Pacientes irradiados possuem um maior risco para o desenvolvimento de um processo carioso rápido e desenfreado conhecido como cárie de radiação. Nesses casos, as lesões frequentemente tornam-se severas nas regiões cervicais e incisaisdos dentes e, se não tratadas, podem progredir rapidamente. Esta complicação acontece, principalmente, por disfunção das glândulas salivares e hipossalivação.2) No entanto, atualmente, discute-se um possível efeito direto da radioterapiasobre os tecidos duros dentários, aumentando sua susceptibilidade à desmineralizaçãoe à cárie.3,4,5
Cáries relacionadas à radiação podem aparecer nos primeiros 3 meses após tratamento radioterápico.2 Portanto, todos os esforços devem ser focados na prevenção, o que pode ser feito através de um bom tratamento odontológico pré-redioterapia, avaliação dental frequente e cuidados trans e pós radioterapia, que incluio uso de fluoreto auto-aplicável. O manejo restaurador de cáries por radiação pode ser um desafio e ocirurgião-dentista deve considerar o substrato dental alterado e o ambiente oral hostil ao selecionar a técnica e o material restaurador. Aconselhamento aos pacientes antes e depois da radioterapia pode ser realizado na tentativa de prevenção das complicações do tratamento radioterápico.2,4
O objetivo deste relato é apresentar um caso de cárie de radiação em um paciente diagnosticado com carcinoma epidermóide na língua e submetido a tratamento radioterápico. Além disso, pretende-se esclarecer, por meio de uma breve discussão,os possíveis efeitos diretos da radioterapia na estrutura dentária.
RELATO DE CASO
Paciente masculino, 60 anos de idade, melanoderma, vendedor, compareceu a um centro de referência em Estomatologiana cidade de Caruaru- Pernambuco - Brasil. Suasprincipais queixas foram “queimor e secura em toda a boca” e “fragilidade dentária”. Além disso relatou a necessidade de confecção de próteses dentárias. Na anamnese, o mesmo relatou ter realizado tratamentohá 18 meses para uma lesão maligna (carcinoma epidermóide) localizada na borda lateral da língua (lado esquerdo). O protocolo de tratamento aplicado foi quimioterapia (38 sessões), radioterapia (38 sessões) e cirurgia. O paciente relatou não apresentar problemas sistêmicos.
Ao exame físico foi observada mucosa oral bastante eritematosa, sinais clínicos de hipossalivação, lesões ulceradas nas comissuras labiais compatíveis com queilite angular, áreas esbranquiçadas que se destacavam a raspagem, compatíveiscom candidose pseudomembranosa, doença periodontal e regiões cervicais dentárias enegrecidas com coroas bastante fragilizadas em todos os dentes remanescentes, características de cárie de radiação (Fig. 1). O paciente relatou ainda que estas lesões cervicais não existiam antes do tratamento radioterápico.
Foram solicitados exames complementares: hemograma, coagulograma e glicemia em jejum. A solicitação destes exames faz parte do protocolo de atendimento aos pacientes encaminhados a este centro de referência. O único exame hematológico com resultado alterado foi o glicêmico: 157 mg/dL. Posteriormente, foi solicitada nova glicemia em jejum (com instruções fornecidas à dieta do paciente), bem como hemoglobina glicada, cujos resultados foram: 146 mg/dL e 7,5 %, respectivamente. Sendo assim o paciente foi encaminhado para tratamento e acompanhamento médico do diabetes.
Além dos exames hematológicos, solicitou-se uma radiografia panorâmica, na qual se observarama presença de cáries extensas e raiz residual nos dentes remanescentes inferiores (Fig. 2).
O paciente foi orientado a fazer uso de saliva artificial, o que melhorou os sintomas de xerostomia e queimor. Foi prescrito antifúngico tópico paraas áreas de queilite angular (daktarin® gel,4 vezes ao dia) e candidose pseudomembranosa (nistatina suspensão oral 100.000UI, 4 vezes ao dia),o que resultou na cura das lesões bucais;para a cárie de radiação foi realizado um tratamento restaurador atraumático provisório com cimento de ionômero de vidro (Vidrion R - SS White®), que está em acompanhamento até que o paciente possa realizar o tratamento definitivo, que será devidamente discutido e planejado pela equipe interdisciplinar responsável pelo caso; o paciente foi encaminhado para a periodontia e reabilitação oral, onde tratou a doença periodontal e realizou a confecção das próteses.
DISCUSSÃO
As neoplasias malignas da região de cabeça e pescoço compreendem lesões que requerem um tratamento complexo, cujo protocolo terapêutico inclui procedimentoscirúrgicos, radioterápicos, quimioterápicos isolados ou associados. A radioterapia é a principal modalidade de tratamento, para estes tumores malignos, cujo princípio básico é a radiação ionizante, que promove ionização no meio em que incide, tornando-o eletricamente instável, o que culmina com a morte celular ou perda da sua capacidade reprodutiva. As células com alta grau de atividade mitótica são mais radio sensíveis e, neste contexto, tanto as células neoplásicas quanto as células lábeis sofrem os efeitos da radiação.6
A maioria dos pacientes submetida à radioterapia no tratamento dos tumores de cabeça e pescoço recebe uma dose total de 50-70 Gy como dose curativa. Essas doses são fracionadas em um período de 5-7 semanas, uma vez por dia, 5 dias por semana, com dose diária de aproximadamente 2 Gy. Reações adversas da radioterapia irão depender do volume, do local irradiado, da dose total, do fracionamento, da idade, condições clínicas do paciente e dos tratamentos associados.6 As complicações da radioterapia no câncer oral resultam emprejuízos para a glândula salivar, mucosa oral, musculatura oral e osso alveolar. Essas lesões, direta ou indiretamente, criam um aglomerado de consequências clínicas, incluindo: xerostomia, cárie de radiação, mucosite, perda de paladar, osteorradionecrose, infecção, trismo eestomatite.1,6
A cárie por radiação se desenvolve rapidamente e é uma forma altamente destrutiva de cárie dentária, tendo como consequência a amputação de coroas e a perda completa da dentição.(7 É reconhecido que o seu desenvolvimento está associado a uma alteração pós radioterápica que ocorre nas glândulas salivares maiores, alterando o seu produto qualitativa e quantitativamente.2,7 De fato, a hipossalivaão e alteração nos constituintes salivares são os principais fatores etiológicos para o desenvolvimento deste tipo de cárie.7 No entanto, tem sido aceito que danos diretos causados pela radiação à estrutura dentária podem acelerar a progressão da cárie. E estudos têm demonstrado alterações morfológicas e físicas em dentes humanos após radioterapia.3,5,8,9
A irradiação no esmalte e na dentina pode influenciar nas suas estruturas nano-mecânicas, diminuindo a resistência da estrutura dentária à tração final e à fratura.5 Já para os dentes restaurados, a irradiação afeta a ligação de compósitos à base de resina.(10 Estas alterações, por sua vez, podem acelerar o processo de evolução da cárie.
O efeito da terapia de irradiação gama sobre a resistência à tração do esmalte e dentina em relação à orientação dos prismas de esmalte, orientação dos túbulos dentinários e localização ainda é desconhecido. Tem sido hipotetizado que a irradiação, orientação e localização dos prismas e túbulos provocam um efeito na resistência a tração de estruturas dentárias.5,8
O esmalte é composto de 1-2 % de material orgânico, 3-4 % de água em peso e 92-96 % de matéria inorgânica organizada em prismas, cuja orientação determina o comportamento anisotrópico do esmalte e influencia suas propriedades. A dentina é composta de 70 % de material inorgânico, 18 % de matriz orgânica e 12 % de água, com várias propriedades e componentes estruturais, que conferem propriedades direcionais (anisotropia) ao tecido e têm efeitos profundos na sua resistência à tração.11
Um estudo realizado Soares et al. (5 utilizou 40 molares humanos, dos quais 20 foram submetidos a 60 Gy de irradiação gama, em incrementos diários de 2 Gy. Os espécimes foram avaliados e os resultados mostraram que o tratamento com irradiação diminuiu a resistência à tração da dentina coronária e radicular e do esmalte, independentemente da orientação dos túbulos ou prismas. Dentina coronária e radicular de espécimes não irradiados apresentaram resistência à tração significativamente maior quando testados perpendicularmente à orientação dos túbulos. Contudo, quando os dentes foram irradiados, a influência dos túbulos desapareceu, demonstrando que a irradiação é mais prejudicial aos componentes orgânicos.
Em um estudo realizado por Liang et al.,3 foram observados os efeitos da alta energia da radiação sobre as propriedades nano-mecânicas (módulo de elasticidade, nano-dureza e coeficiente de atrito) de esmalte e dentina. A investigação foi feita em diferentes doses. Testou-se a hipótese de que a irradiação de raios X de alta energia em diferentes doses afeta negativamente as propriedades nano-mecânicas do tecido duro dentário. Amostras de esmalte e dentina de 50 terceiros molares humanos foram aleatoriamente distribuídos em 4 grupos de teste e um grupo controle. Os grupos teste foram expostos a radiação de 2 Gy/dia, 5 dias por semana: 1) grupo de 10 Gy - exposição durante uma semana (5 dias); 2) grupo de 30 Gy - durante 3 semanas (15 dias); 3) grupo de 50 Gy - expostos durante 5 semans (25 dias); 4) grupo de 70 Gy - durante 7 semans (35 dias); e o controle não foi exposto. As propriedades nano-mecânicas tanto do esmalte como da dentina mostraram relação dose-resposta significativa. Após a exposição à radiação, a resistência à fratura dos dentes foi claramente diminuída. Essas mudanças nano-mecânicas no tecido dentário duro podem aumentar a susceptibilidade à cárie. A radioterapia causou alterações nano-mecânicas na dentina e no esmalte que estavam relacionados à dose. As doses-chave foram 30-50 Gy e os pontos-chave de tempo ocorreram durante o 15º-25º dia de tratamento, que é quando a aplicação de medidas para prevenir a cárie deve ser considerada.
Um estudo in vitro realizado em dentes decíduos avaliou o conteúdo orgânico e inorgânico do esmalte após exposição a 54 Gy (2Gy/dia, durante 27 dias). Pode-se observar que, após a irradiação, houve uma diminuição do conteúdo orgânico e alterações morfológicas na superfície do esmalte.9
Soares et al.,12) investigararm a influência da terapia de irradiação gama e material restaurador sobre as propriedades mecânicas da estrutura dentária. Sessenta dentes extraídos para fins ortodônticos (pré-molares) foram aleatoriamente divididos em grupos: dentes hígidos, restaurados com resina e restaurados com amálgama. Os resultados demonstraram que a radiação gama reduziu, significativamente, a resistência à fratura de dentes hígidos. Os resultados mais negativos foram encontrados em dentes restaurados com amálgama. Já os dentes restaurados com resina composta apresentaram valores de deformação semelhantes aos dentes hígidos.
Alguns estudos têm comparado se o uso da radioterapia de instensidade modulada (IMRT) proporciona menos efeitos às estruturas duras dentárias que o tratamento radioterápico conformacional 3D (3DRT), já que a primeira oferece uma emissão de feixes mais direcionada. No entanto, apesar dos resultados mostrarem que A IMRT proporciona doses de radiação mais baixas às estruturas dentárias do que 3DRT, mais estudos são necessário para afirmar que cáries de radiação são menos frequentes em pacientes submetidos a IMRT.13
Diante do exposto, percebe-se que a radioterapia atua diretamente e indiretamente no desenvolvimento da cárie de radiação. Os efeitos diretos parecem estar associados a uma diminuição da resistência da estrutura dentária,por alterações que compromentem, principalmente, o componente orgânico do dente. Estas alterações microscópicas, por sua vez,exigem cautela na escolha do material restaurador e técnica restauradora pré e pós radioterapia.
A discussão sobre os efeitos diretos da radioterapia sobre a estrutura dentária ainda é bastante polêmica na literatura odontológica. Os autores relatam que os estudos in vitro possuem limitações no que diz respeito às conclusões clínicas. Os resultados dos estudos geram controvérsias devido à influência de fatores como o meio de armazenamento do dente utilizado na pesquisa e, principalmente, a diferença entre os tipos de métodos e dispositivos utilizados. Desta forma, mais estudos devem ser realizados de forma sistemática e de maneira mais completa e padronizada.