Introdução
Os mecanismos iniciais de formação de um biofilme envolvem a adesão e fixação de espécies microbianas, as quais formam uma comunidade inicial, sendo posteriormente substituídas por outras espécies, chegando a comunidade clímax, que é dinâmica, diversificada e cooperativa entre a microbiota e o hospedeiro.1
Na cavidade bucal, alguns biofilmes clássicos são citados a exemplo do cariogênico, ou aquele associado a candidose oral. Este biofilme fúngico é composto primordialmente pela Candida albicans, a qual apresenta-se em equilíbrio com o hospedeiro. Fatores que promovam disbiose do meio permitem a instalação e progressão da infecção.2) Geralmente, esta patologia está associada a quadros de imunossupressão.3
Um outro biofilme, presente na cavidade oral, entretanto confinado ao limite dos sistemas de canais radiculares é o endodôntico, caracterizado por ser de natureza polimicrobiana. Quando a infecção causada pela Candida albicans e Enterococcus faecalis não consegue ser debelada pelo sistema imune do hospedeiro, é necessário realizar o tratamento endodôntico para a desinfecção do sistema de canais radiculares.4
O Enterococcus faecalis é uma espécie bacteriana Gram-positiva, anaeróbico facultativo, geralmente associado às infecções endodônticas persistentes onde ocorreram falhas durante o tratamento endodôntico.1,5) Além de sua capacidade de formar biofilme dentro dos túbulos dentinários, o E. faecalis é capaz de resistir à medicação intracanal, como o hidróxido de cálcio, depositado no interior dos canais radiculares, cujo um de seus objetivos é eliminar os microrganismos que sobreviveram ao preparo químico mecânico.6
O mecanismo de ação utilizado para resistir ao hidróxido de cálcio está relacionado com a bomba de prótons, onde os prótons são levados para a célula, acidificando o citoplasma, sendo este mecanismo fundamental para sua sobrevivência em ambientes altamente alcalinos.7
As infecções persistentes são a maior causa de insucesso do tratamento endodôntico. Além do E. faecalis, microrganismos como Aggregatibacter actinomycetemcomitans, Veillonella parvula e Candida albicans estão associados a necessidade de retratamento.8 A Candida albicans é um importante microrganismo responsável pela falha do tratamento endodôntico com lesão perirradicular, principalmente periodontite apical.9
A associação entre C. albicans e E. faecalis tem sido descrita na literatura, devido ao sinergismo existente entre estas espécies em casos de infecções resistentes e prolongadas, inclusive em infecções endodônticas.10 Fatores de virulência, como a formação de hifas pela Candida albicans, propiciam a interação entre biofilmes de diferentes espécies, estando a capacidade de defesa do hospedeiro diretamente relacionada a resposta imune e inflamatória às bactérias e seus produtos.
Para o tratamento das infecções endodônticas, são utilizados mecanismos que permitem a completa desinfecção do sistema de canais radiculares. Além do preparo mecânico com os instrumentos manuais e rotatórios, é lançado mão das substâncias químicas auxiliares com efeito antimicrobiano, dentre elas, as mais utilizadas são o hipoclorito de sódio e o digluconato de clorexidina, em diferentes concentrações, a depender da condição do elemento dental a ser tratado.11
Devido à resistência microbiana frente as substâncias químicas auxiliares e as medicações intracanais já existentes, atualmente estão sendo estudadas substâncias de origem natural com efeito antimicrobiano, que sirvam de auxílio às terapias atuais e que também possuam um menor efeito adverso ao organismo do hospedeiro.12 Dentre essas substâncias estão os fitoconstituintes, que são moléculas bioativas puras, como o cinamaldeído e o (-terpineol.13
O cinamaldeído está presente na casca da canela (Cinnamomum cassia) e atua inibindo a proliferação de microrganismos. Seu mecanismo de ação ocorre por meio da desorganização da permeabilidade da membrana citoplasmática.14 Além disso, Meades et al.15 sugere que o efeito antibacteriano do cinamaldeído está na sua capacidade de interagir com a enzima bacteriana acetil-CoA carboxilase, provocando a morte do microrganismo.
O (-terpineol está presente em plantas como o eucalipto (Eucalyptus cinérea), a salvia (Salvia libanotica) e a árvore do chá (Melaleuca alternifólia). Além de atuar inibindo a proliferação dos microrganismos de forma semelhante ao cinamaldeído, este fitoconstituinte possui atividade imunomoduladora,13 inibindo a expressão dos mediadores químicos inflamatórios IL-1β, IL-6 e TNF-α, enquanto aumenta a expressão da citocina anti-inflamatória IL-10 em macrófagos humanos.16 Sua atividade antimicrobiana também está relacionada com o grupo funcional álcool presente em sua composição e a sua solubilidade em membranas biológicas, ocasionando lise celular.17
Assim, o estudo com substâncias naturais, que possam ser utilizadas durante o processo de sanificação do sistema de canais radiculares, substituindo as substâncias já utilizadas, com o intuito de reduzir os eventos de resistência microbiana e os efeitos adversos ao paciente, tem sido promissor. Os fitoconstituintes são biomoléculas orgânicas obtidas a partir do extrato de plantas13 e seu uso no presente estudo objetiva inibir a proliferação microbiana no biofilme endodôntico.
A literatura sobre o uso de fitoconstituintes em biofilme endodôntico ainda é escassa, por isso, o objetivo deste estudo foi avaliar, in vitro, o efeito inibitório dos fitoconstituintes cinamaldeído e (-terpineol frente biofilmes monoespécie e duoespécie de Candida albicans e Enterococcus faecalis.
Métodos
Delineamento Geral do Estudo
Trata-se de um estudo experimental, na área de microbiologia aplicada, in vitro, cego quanto às análises e randomizado (n = 8/grupo). As fases laboratoriais foram divididas em ensaios microbiológicos que contemplaram a avaliação da viabilidade celular pelo plaqueamento e análise da capacidade respiratória pelo teste da resazurina nos biofilmes monoespécie e duoespécie de Candida albicans e Enterococcus faecalis.
Desenvolvimento dos biofilmes monoespécies e duoespécie
Os microrganismos Enterococcus faecalis (ATCC 29212) e Candida albicans (ATCC 90028) foram reativados em Caldo Brain Heart Infusion (BHI) (Kasvi®) e RPMI 1640 (Inlab diagnóstica, Brasil), respectivamente, e incubados por 24 h a 37oC. Em seguida, as amostras foram centrifugadas a 1200 rpm por 5 minutos e o meio descartado (Centrifugador Excelsa 205N, FANEM LTDA, Brasil). Logo após, as células foram ressuspendidas em meio RPMI 1640 e homogeneizadas para confecção do inóculo.
A densidade celular utilizada para Enterococcus faecalis e Candida albicans foi de 1x108 UFC/mL e 1x106 UFC/mL, respectivamente. A absorbância foi determinada em 600 nm, considerando a densidade óptica de 0,1 (LGL Scientific 0741/16, Brasil). O volume final foi ajustado em função do número de amostras semeados, considerando o volume de 100 µL a ser inserido em cada poço da placa de 96 compartimentos (KASVI® 96 well Tissue Culture Plate). Foram semeados biofilmes monoespécie de C. albicans e E. faecalis, bem como duoespécie, considerando ambos microrganismos empregados. A placa foi incubada por 24 horas à 37ºC para adesão e proliferação do biofilme.
Exposição aos fitoconstituintes
O cinamaldeído (Sigma Aldrich, USA) e o (-terpineol (Sigma Aldrich, USA) foram preparados em meio RPMI 1640, com 0,1 % de Tween 80 (Dilecta, Brasil) para solubilização. Foram utilizadas as concentrações de 10; 5; 2,5 e 1 mg/mL, sendo já anteriormente ajustadas, devido a diluição em meio de cultura. A exposição dos biofilmes aos fitoconstituintes foi realizada adicionando-se 100 µL de cada concentração em cada compartimento da placa de 96 poços. Em seguida, as amostras foram novamente incubadas por 24 h a 37 oC. Utilizou-se clorexidina à 1 % e RPMI 1640 como controle positivo e negativo, respectivamente. Cada concentração foi avaliada para ambos os biofilmes.
Análise da viabilidade celular
Após 24 horas da exposição, alíquotas de 10 µl foram semeadas em ágar sabouraud dextrose (Kasvi®) e ágar BHI (Kasvi®), para os biofilmes monoespécie e duoespécie. Em seguida as placas foram incubadas por 24 h a 37 oC. A ausência de crescimento visível de Unidades Formadoras de Colônia (UFC/mL) foi considerada como inibição da viabilidade celular, sendo avaliada por dois examinadores, por meio de imagens fotográficas. A moda da frequência foi utilizada para análises dos dados.
Análise da capacidade respiratória
A atividade respiratória dos biofilmes foi determinada pelo uso da resazurina. Foram inseridos 50 µL de resazurina (Sigma-Aldrich®) a 0,3M em cada compartimento da placa de 96 poços seguida pela incubação por 24 horas, adicionais, à 37 ºC para avaliação da capacidade respiratória. A mudança de coloração do meio de cultura para a cor rosa determinou manutenção da atividade respiratória, sendo a cor roxa equivalente à inibição do biofilme.
Resultados
Com relação a viabilidade celular observou-se que nas amostras expostas ao cinamaldeído houve ausência de crescimento visível em todas as concentrações, tanto para os biofilmes monoespécie de E. faecalis quanto para o de C. albicans, assim como também houve ausência do crescimento em todas as concentrações para o biofilme duoespécie. Para os biofilmes monoespécie e duoespécie de E. faecalis e de C. albicans, expostos ao (-terpineol, foi observado crescimento visível apenas na concentração de 1 mg/mL do referido fitoconstituinte (Quadro 1).
Quadro 1 - Análise da viabilidade celular dos biofilmes monoespécie e duoespécie de Candida albicans e Enterococcus faecalis para o fitoconstituinte (-terpineol e cinamaldeído
Para a avaliação da respiração celular por meio do teste da resazurina, para o (-terpineol foi observada atividade metabólica nas concentrações de 2,5 e 1 mg/mL para ambos biofilmes monoespécie e duoespécie de E. faecalis e de C. albicans (Fig. 1). O tratamento com cinamaldeído determinou atividade respiratória celular na concentração de 2,5 mg/mL apenas para o biofilme duoespécie de E. faecalis e de C. albicans. Na concentração de 1 mg/mL, também houve respiração celular para os biofilmes monoespécies, assim como no duoespécie (Fig. 2).
Discussão
Devido à natureza polimicrobiana da infecção endodôntica, eventos de resistência, tanto as medicações intracanais quanto as substâncias químicas auxiliares, podem ocorrer.18 O hipoclorito de sódio é a substância de escolha padrão devido ao seu efeito antimicrobiano e sua capacidade de dissolução de matéria orgânica.9,19 Já a clorexidina pode atuar como bactericida ou bacteriostática, dependendo da concentração utilizada. Comparada ao hipoclorito de sódio, a clorexidina possui menos efeito tóxico, porém não é solvente de tecidos.20
Estas soluções irrigadoras têm sua atividade antimicrobiana diretamente proporcional à sua concentração. Entretanto, o risco de toxicidade e de reações alérgicas aumentam.21 Deste modo, o efeito antimicrobiano do cinamaldeído e o (-terpineol, têm ganhado importância nos estudos com Candida albicans e Enterococcus faecalis.22,23
Como método de análise da capacidade respiratória, utilizamos a resazurina (7-hidroxi-3H-fenoxazina-3-ona-10-óxido), que é um corante não fluorescente, de coloração arroxeada intensa. Ela é um indicador de oxirredução, a qual evidencia a presença de crescimento microbiano, através da mudança de coloração.24) As medidas podem ser mensuradas qualitativamente, por meio do olho nu.
O cinamaldeído foi descrito como supressor da divisão celular bacteriana, promovendo o rompimento da integridade celular ao atingir a permeabilidade da membrana citoplasmática.14 Estudos sugerem que a ação fungistática do cinamaldeído seria por meio da produção de farnesol, álcool responsável pela inibição da transformação da levedura em hifa, principal fator de virulência da Candida albicans.14) No presente estudo, verificou-se que o cinamaldeído apresentou efeito inibitório frente a proliferação celular de C. albicans e E. faecalis nas concentrações de 10 e 5 mg/mL, corroborando com seu mecanismo de ação.
Segundo estudos de Ferro et al.,25 o cinamaldeído nas concentrações de 62,5-2000 µg/mL, possuiu atividade antimicrobiana frente culturas de Enterococcus faecalis (ATCC 19443), assim como o S. aureus (ATCC 25923) e estes microrganismos não desenvolveram fenótipo adaptativo para resistência ao cinamaldeído in vitro. Com relação à viabilidade celular, o presente estudo corrobora com o estudo de Ferro et al.,25 onde o cinamaldeído, em concentrações mais elevadas (10; 5; 2,5 e 1 mg/mL), obteve efeito inibitório frente aos biofilmes monoespécie e duoespécie de Candida albicans e Enterococcus faecalis. Já com relação à respiração celular pelo teste da resazurina, o cinamaldeído não foi tão eficaz em concentrações inferiores, 2,5 e 1 mg/mL, de modo que os biofilmes monoespécie e duoespécie de Enterococcus faecalis e Candida albicans, apresentaram atividade respiratória, mesmo após a exposição aos fitoconstituintes.
Do mesmo modo que o cinamaldeído, o α-terpineol apresentou atividade inibitória frente aos biofilmes nas concentrações de 10 e 5 mg/mL. Desta forma pode-se sugerir que esta substância atua por meio da desestabilização da membrana celular, ocorrendo um desequilíbrio osmótico, além de apresentar propriedades anti-inflamatórias. 16,17 Além disso, foi observado que o terpinen-4-ol, um isômero do terpineol, frente patógenos orais, como o Streptococcus mutans e Lactobacillus acidophilus, foi capaz de inibir a adesão do biofilme em superfícies de esmalte e dentina.26
Os resultados do presente estudo indicaram que o cinamaldeído e o α-terpineol em concentrações elevadas de 10mg/ml e 5mg/ml são potencialmente capazes de inibir o biofilme de Enterococcus faecalis e de Candida albicans in vitro. Estudos avaliando a atividade dos fitoconstituintes em biofilme endodôntico ainda são muito escassos. Com isso, considerando a atividade antimicrobiana do cinamaldeído e do α-terpineol e os resultados obtidos no presente estudo, sugere-se novos estudos de modo a avaliar os possíveis efeitos citotóxicos que os fitoconstituintes possam desencadear nos tecidos, que devem ser considerados para o seu uso na prática clínica, para que assim, possam ser utilizados como substância química auxiliar durante a sanificação do sistema de canais radiculares, substituindo o uso do hipoclorito de sódio e do digluconato de clorexidina.
Os fitoconstituintes cinamaldeído e o α-terpineol apresentaram atividade antimicrobiana frente biofilmes monoespécie e duoespécie de Enterococcus faecalis e Candida albicans nas concentrações de 10mg/mL e 5mg/mL.