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Revista Cubana de Enfermería

versión On-line ISSN 1561-2961

Rev Cubana Enfermer vol.32 no.1 Ciudad de la Habana ene.-mar. 2016

 

REFLEXIÓN Y DEBATE

 

Ensaio reflexivo sobre o uso da rede de dormir como prevenção da Úlcera por Pressão

 

Reflexive essay on the use of hammocks for preventing pressure ulcers

 

Ensayo reflexivo sobre el uso de la hamaca para la prevención de Úlceras por Presión

 

 

Ricardo Luiz RamosI; Paulo Sérgio da SilvaI; Lijamar Souza BastosI; Nébia Maria Almeida de FigueiredoII

I Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro/UNIRIO. Rio de Janeiro, Brasil.
II Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ. Rio de Janeiro, Brasil.

 

 


RESUMO

Introdução: a rede de dormir é um utensílio de origem indígena utilizado para sentar, descansar e dormir. Em Roraima, região norte do Brasil, por questões culturais a rede de dormir também é utilizada como leito hospitalar. Nesse sentido é emergente transcender o pensamento etnográfico e refletir sobre os efeitos que a rede de dormir pode causar sobre o corpo físico daquele que repousa por longo período de tempo sobre ela.
Objetivo: realizar um ensaio reflexivo sobre o uso da Rede de dormir como prevenção da Úlcera por Pressão.
Métodos: discursivo reflexivo apoiado pelo método de análise de conteúdo clássica, a partir do texto literário de Câmara Cascudo.
Conclusão: o texto de Cascudo atendeu parcialmente os objetivos do estudo, ampliou o entendimento da importância da rede de dormir não somente como objeto de decoração, mas também para confortar e dormir, embora seu uso possa estar sob o julgo das preferências de um corpo indissociável a sua cultura.

Palavras chave: cuidados de enfermagem; úlcera por pressão; prevenção primária; rede de dormir.


ABSTRACT

Introduction: The hammock is an utensil of indigenous origin used to sit down, to rest and to sleep. In Roraima, north area of Brazil, for cultural subjects the hammock is also used as bed hospitalar. In that sense it is emergent to transcend the thought ethnographic and to contemplate on the effects that the hammock can cause on the physical body of that that rests for long period of time on it.
Objective: Make a reflective essay on sleeping on hammock by using Cascudo's literary text to provide constitutive elements to subsidize the theoretical framework of a doctoral thesis, which proposes the use of sleeping hammock to prevent pressure ulcers.
Method: Reflective discourse provided by classical content analysis method.
Conclusion: Cascudo's text answered the study’s objectives, expanded the understanding of the importance of hammock not only as a decoration object, but also to provide comfort and sleep, though its use may be under the judgment of the body which is inseparable from cultural preferences.

Keywords: Nursing care; pressure ulcer; primary preventior; hammock.


RESUMEN

Introducción: la hamaca es una herramienta de origen indígena utilizado para sentarse, descansar y dormir. En Roraima, norte de Brasil, por cuestiones culturales la hamaca también se utiliza como una cama de hospital. En consecuencia es emergente sobrepasar el pensamiento etnográfico y reflexionar sobre los efectos que puede causar la hamaca en el cuerpo físico de la persona que se encuentra durante un largo periodo de tiempo sobre ella.
Objetivo: realizar un ensayo reflexivo sobre el uso de la hamaca como la prevención de la Úlcera por Presión.
Método: discursivo reflexivo apoyado por el método de análisis de contenido clásico, a partir del texto literario de Cámara Cascudo.
Conclusión: el texto de Cascudo reunió parcialmente los objetivos del estudio, el aumento de la comprensión de la importancia de la hamaca no sólo como un objeto decorativo, sino también para la comodidad y el sueño, aunque su uso puede estar bajo el yugo de las preferencias de un cuerpo inseparable de su cultura.

Palabras clave: atención de enfermería; úlcera por presión; prevención primaria; hamaca.


 

 

INTRODUÇÃO

A busca por um ensaio reflexivo sobre o uso da Rede de dormir (Rd) traz para dentro do contexto dos cuidados de Enfermagem a experiência profissional na área hospitalar, sobretudo em aspectos que tocam o ensino na Região Norte do Brasil. Destacamos o Estado de Roraima onde existe a presença de doentes indígenas que se internam nos hospitais da capital e trazem consigo suas Rds.

Nessa perspectiva, a Casa de Saúde do Índio, o Hospital da Criança e o Hospital Geral de Roraima adequaram suas enfermarias para que as redes de dormir pudessem ser armadas e usadas em substituição à cama hospitalar.

O fato é que os doentes indígenas rejeitam a cama com as justificativas de desconforto e aumento da temperatura corporal. É razoável afirmar que a rejeição do uso da cama hospitalar por parte dos indígenas também esteja circunscrita em uma perspectiva “cultural”1 e que sabiamente vem sendo respeitada e aceita nos hospitais de Roraima.

Embora a questão cultural possa ser determinante para justificar a recusa da cama hospitalar, o enfermeiro não pode se furtar da investigação minuciosa das queixas dos seus pacientes. Surge então a seguinte questão para esta reflexão: o calor excessivo na pele resultante da pouca aeração do colchão e a densidade do colchão são causas de desconforto porque faz o corpo apoiar a maior parte do seu peso nas proeminências ósseas, consequentemente predispondo o paciente à formação da Úlcera por Pressão (UPP). Nesse sentido, é possível que a Rd, conforme exigida pelos doentes indígenas, possa ser uma alternativa capaz de evitar estes fenômenos desencadeantes do processo de hospitalização?

A busca sistemática por material referenciável demonstrou o quão raros são os estudos científicos na área da saúde sobre o uso da Rd nos cenários de cuidar. Isso nos encaminhou junto ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem e Biociências – Doutorado, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) a estudar de forma mais aprofundada a obra de Câmara Cascudo,2 intitulada: “Rede de Dormir, uma Pesquisa Etnográfica”.

A justificativa pelo uso desse arcabouço teórico que tem arraigado em si elementos folclóricos da cultura indígena se mostra apropriada para o que queremos discutir sobre a Rd. Nesse sentido, nossos esforços foram encaminhados para encontrar elementos temáticos sobre a Rd no texto etnográfico e alimentá-lo com reflexões inerentes aos cuidados de Enfermagem que possam ser incorporadas aos interesses de prevenção de lesões cutâneas, conforme vem sendo discutido de forma mais específica na tese de Doutorado, intitulada: Um estudo experimental da Enfermagem sobre aeração e pressão no corpo quando em repouso na Rede de dormir e no colchão de uso hospitalar.

Ainda no contexto introdutório é importante elencar alguns registros sobre a origem da Rd e sua importância na trajetória histórica do Brasil. Sua utilização como cama é milenar e muito antes dos primeiros europeus chegarem à América, os índios Tupis Guaranis chamavam-na de Ini, em Português significa: “aquilo em que se dorme”.2 Os Caraíbas e Aruaques do Norte do Brasil que tinham relações comerciais com os povos da América Central chamavam-na de hamaca.2 Este tipo de cama passou a ser conhecida no mundo a partir de 1492, quando Cristovam Colombo mencionou pela primeira vez a singular cama dos ameríndios com o nome de hamaca.3

Em terras brasileiras o primeiro registro escrito foi em 1500 na carta de Pero Vaz de Caminha ao Rei Dom Manuel.4 Por esta razão, Cascudo 2 afirmou: “quem primeiro denominou a hamaca sul-americana de Rede foi Pero Vaz de Caminha [...] É o padrinho da Rede de Dormir”. Seus argumentos fundamentaram-se no seguinte trecho da carta ao Rei D. Manuel:

[...] em que averja ix ou x casas as quaaes deziã que erã tam compridas cada hua come esta naao capitana. E hera de madeira e das jlhargas de tavoas e cobertas de palha de rrazoada altura e todas em huua soo casa sem nhhu rrepartimento tinham de dentro muitos esteos e de esteo a esteeo huua rrede atadaa pelos cabos e cada esteo altas em que dormia e debaixo para se aquentarem faziam seus fogos e ttijnham cada casa duas portas pequenas huua e huu cabo e outra no outro.4


No processo de colonização do Brasil, as mulheres portuguesas começaram a confeccionar a Rd com inúmeras inovações. Os tradicionais moldes confeccionados de forma “tosca dos indígenas com malha de 2 a 3 centímetros”5 e de “fibras de palmeira tecida em malha larga”6 passaram a ser confeccionadas em tecido, tornando-se mais confortáveis e igualmente popularizadas em todos os lugares por onde os colonizadores do Brasil estabeleciam relações comerciais. Devido a sua praticidade, chegou a substituir a tradicional cama na Marinha Francesa2 e na Marinha Militar Brasileira permaneceu de 1826 a 1954,2 e ficou conhecida no velho mundo pelo pseudônimo de Brazilian bed.7

A popularidade da Rd ganhou espaço no cenário brasileiro, foi citada em música, em inúmeras obras de história, contos, sonetos, poemas, canções de ninar, dizeres populares e superstições. A Rd também é lembrada com destaque nos trechos das obras de Gilka Machado, Casimiro de Abreu, Olegário Mariano, Carlos Drummond de Andrade.2

Criaram-se raízes culturais tão profundas que a Rd passou a ser utilizada como caixão e, em alguns casos, também de mortalha, por fim, conquistou lugar no folclore brasileiro. Nos lugares em que a produção da Rd foi incorporada à cultura regional, os artesões foram utilizando diferentes tecidos, adornos, tamanho do pano, cores, estampas, fios, etc. Estes detalhes personalizaram estilos próprios de confeccionar as redes de dormir.

Os estilos foram tão marcantes e cuidadosamente reproduzidos ao longo dos anos, que na atualidade é possível identificar em que região, ou estado brasileiro a Rd foi confeccionada, até mesmo se é de fabricação estrangeira. Por exemplo: na região de Yucatán no México, os artesões confeccionavam a Rd com a fibra de uma planta autóctona, o henequén,8 utilizando uma técnica exclusiva para que a malha que compõe o pano da Rd fosse capaz de se distender naturalmente conforme o peso da pessoa que repousa sobre ela.9

A hegemonia do uso da Rd no Brasil começou a perder seu status de cama no século XIX. Acredita-se que os principais motivos foram: a influente moda francesa que, em meados de 1830, ditava que a cama era para civilizados e outra forma de dormir era de bárbaros.2

Também alguns médicos nesta época apoiavam a ideia de que a Rd era feia e detestável, responsável por algumas doenças infantis.10 Outro motivo foi a disparidade do longo tempo gasto na fabricação artesanal da rede frente ao crescimento da carpintaria e marcenaria na fabricação rápida de camas de madeira. Nas regiões frias, ao longo da história, a Rd sempre foi pouco requisitada.2

Mesmo com o desprestígio no século XIX a Rd continuou sendo produzida e se manteve como importante produto econômico nas regiões Norte e Nordeste do Brasil. Na década de 80 o estudo de Rocha5 sobre a manufatura de Rd na Paraíba revelou que a sua fabricação e comercialização representavam um importante recurso econômico nos municípios do interior da Paraíba e também do Ceará.

Na Região Centro Oeste, em 2011 a exposição de Redes Cuiabanas por mulheres de Limpo Grande, estado do Mato Grosso, demonstrou que o comércio da Rd ainda é importante na economia local.11 Os benefícios financeiros na produção e comércio das Rds não foi privilégio exclusivo dos brasileiros. Em Yucatán, no México, a antropóloga Álice Littlefield9 demonstrou que nesta região o principal fator econômico era a produção e comercialização da Rd e que, de alguma forma, ainda se mantém.

Na atualidade, o município de São Bento na Paraíba-BR se autodenomina “a capital mundial das Redes”.3 Ostenta uma produção anual de aproximadamente 12 milhões de Rds e seu Produto Interno Bruto – PIB de US$ 137 milhões, dando-lhes o 28º maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Estado da Paraíba.12

Muito embora o contexto introdutório tenha demonstrado que historicamente a Rd é parte indissociável do folclore e da cultura brasileira, o objetivo deste ensaio é refletir sobre a Rd como leito hospitalar na perspectiva dos cuidados de Enfermagem para prevenção da formação da úlcera por pressão.

 

MÉTODOS

Trata-se de um estudo descritivo que utilizou a obra literária de Câmara Cascudo como elemento integrador às reflexões sobre os cuidados de Enfermagem. O livro intitulado: “Rede de dormir: uma pesquisa etnográfica”, foi assumido como referencial teórico central.

A busca por outras referências de interesse na área da saúde sobre o uso da Rd foi sistematizada a partir da consulta na Biblioteca Virtual de Saúde (BVS) e no Google acadêmico. Para ambos utilizaram-se os descritores: nursing care; pressure ulcer. E as palavras-chave foram: Rede de dormir (português), hamaca (espanhol), hammock (inglês), hängematte (alemão) e ini (Tupi Guarani). Além disso, houve uma fase de consulta a materiais impressos nas bibliotecas das universidades do Estado de Roraima e na Biblioteca Nacional-RJ. Convém ressaltar que nas buscas do material virtual não foram acionados filtros que excluíssem o ano e o tipo de publicação.

Diante dos poucos estudos encontrados sobre o uso da Rd, não houve critérios de exclusão. Todo o material referenciável encontrado, capaz de contribuir neste ensaio reflexivo, foi utilizado.

Para obtenção de elementos referente à Rd contidos no livro de Cascudo, foram utilizadas as fases de análise de conteúdo. Este método foi desenvolvido pelas “ciências sociais”,13 e tem por objetivo “reduzir a complexidade de uma coleção de textos escritos que já foram usados para algum outro propósito. Todos esses textos, contudo, podem ser manipulados para fornecer respostas às perguntas ao pesquisador”.13

As etapas metodológicas elencadas foram: I - seleção da unidade de amostragem: Livro de Câmara Cascudo; II - código e categorização: o código são os adjetivos da Rd e a categorização é: boas, más e outras; III - procedimento de dimensão sintática: seleção e contagem das frequências dos adjetivos da Rd no texto e IV - procedimento de dimensão semântica: agrupamento dos adjetivos por unidades de significância segundo o sentido denotativo atribuído à Rd. Excluíram-se os adjetivos conotativos.


DESENVOLVIMENTO

O desafio em identificar no texto literário de Câmara Cascudo2 subsídios, nos pareceu natural pela dificuldade de trabalhar um texto etnográfico a fim de produzir um conhecimento específico na área da saúde, mais especificamente para Enfermagem.

Cabe lembrar que o cerne da reflexão envolve o desenvolvimento de úlceras por pressão, sustentada na hipótese: a Rd pode ser melhor que a cama hospitalar na prevenção do desenvolvimento dessas lesões. Nessa perspectiva, a análise sintática pavimentou um caminho promissor, pois apontou em diferentes contextos a preferência pela Rd por ser confortável e melhor aerada que o colchão.

Para rastrear o texto de Cascudo utilizou-se como código as palavras: conforto, aeração e saúde. As categorizações foram: boa, má e indiferente. O código conforto teve 14 ocorrências na categoria boa com variações de confortável, macia e cômoda. O código aeração teve 22 ocorrências, na categoria boa com variações de fresca, para refrescar, inadequada para o frio e preferível nas regiões quentes.

O código saúde teve 5 ocorrências na categoria boa com variações de acalmar, combate à insônia e reduz dor reumática; na categoria má teve 3 ocorrências com variações de risco de queda, causa escoliose infantil e retardo físico na criança; na categoria indiferente 10 ocorrências com variações de substituir o cavalo nas viagens e passeios, serve de caixão e ou mortalha.

Os escores por contagem de aparição das palavras, apesar de inequívocos quanto ao status denotativo, daquilo que expressam, não são suficientemente óbvios quando apresentados fora do seu contexto.

Portanto, a decodificação semântica aqui representada pelas unidades de registro possibilitou pontuar os contextos nos quais os indicadores de sentido, códigos e variações estavam inseridos. As unidades semânticas foram 8, são elas: 1- Uso da Rd, com 07 ocorrências, 2- evolução da Rd, com 5 ocorrências, 3- confecção da Rd, com 10 ocorrências, 4- modos de fabricação, com 6 ocorrências, 5- tecnologia, com 6 ocorrências, 7- cultura, com 6 ocorrências, 8- economia, com 3 ocorrências

As unidades semânticas 4, 5 e 8, nas 15 ocorrências, não tiveram aparição de nenhum dos indicadores de sentidos. Nas demais unidades semânticas, em todas as ocorrências, pelo menos um dos indicadores foi mencionado.

As unidades semânticas, neste caso, ancoraram os indicadores de sentido nos contextos categóricos quanto ao uso da Rd. Esta correlação evitou claudicações de análise, como por exemplo: se a variável ‘risco de queda’ tivesse aparição na unidade semântica 8, ela poderia estar contextualizando o risco de queda nas vendas e/ou risco de queda do valor financeiro.

Outro exemplo: se a variável ‘acalmar’ tivesse aparição na unidade semântica 4, ela poderia estar contextualizando o estado de espírito do artesão durante a confecção da Rd no tear manual, entre outros.

Superada a relevância justificada da aplicabilidade do método, infere-se a pertinência do texto de Cascudo neste ensaio reflexivo. Após ter escrito mais da metade do seu estudo etnográfico e não satisfeito com os relatos por saber que na ausência da perícia científica não seria possível afirmar com razoabilidade possíveis indicações e contraindicações no uso da Rd, 2 então escreveu ao médico Silva Mello solicitando sua opinião “acerca do valor da rede para o sono, o repouso e a mecânica do corpo, desejando saber se é ou não conveniente como leito, se é recomendável ou prejudicial”.14

E com veemência acrescenta:

[...] milhões e milhões de brasileiros nasceram, viveram, amaram, morreram e foram levados para o cemitério em redes. Acusam-na de contra-indicada para o repouso por ser curva e dar posição artificial ao corpo dormente, esquecidos dos sertanejos fortes que envelhecem sadios e dentro das redes. Sertanejos e caraíbas e tupis, os mais valentes indígenas do continente. E os jagunços de conselho?” [...] nada existe sobre ela, apesar de quatro séculos históricos do seu uso e dos milhares delas fabricados anualmente.14


As contribuições do Dr. Mello foram pouco profícuas, haja vista que seus estudos estavam pautados nos efeitos do balanço da Rd, do berço e da cadeira. Suas afirmativas foram meramente opinativas, resultantes de uma vivência empírica com o assunto.

De certo é que as considerações de Mello não tenham surpreendido Cascudo, porque pouco antes de iniciar suas pesquisas sobre a Rd, escreveu seu ensaio dizendo:

Certos temas dão prestígio ao pesquisador e outros exigem uma prodigiosa retórica para valorizá-los. Um livro sobre educação, finanças, economia, assistência social, higiene, nutricionismo, empresta aos “altos problemas”. Quem se vai convencer da necessidade de uma pesquisa etnográfica sobre a rede de dormir, a rede que nunca mereceu as honras de atenção maior e é olhada de raspão pelos mestres de todas as línguas sábias?2


Portanto, não é de se surpreender que passados mais de 50 anos, os estudos sobre a Rd na área da saúde são insipientes e alguns, muito antigos. E de alguma sorte serão incorporados neste discurso reflexivo para tentar responder com alguma propriedade científica, ainda que incipiente, os questionamentos de Cascudo ao Dr. Mello. E também embalado pelo tempo, o artigo de Odlum,15 publicado no jornal médico Inglês na década de 50, questionando: “Balançar é ainda usado em várias partes da América. Por que privamos a nós mesmos e nossas crianças desse relaxamento?”

As opiniões sobre o balançar a criança na área especializada em Pediatria é controverso. Bezerra16 realizou um estudo para comparar o desenvolvimento neuromotor entre um grupo de crianças que ficavam na Rd com outro grupo que ficava na cama. Seus resultados não apresentaram diferenças conclusivas.

No entanto, um relato de experiências sobre intervenções educativas em unidade neonatal, quando foi perguntado sobre o uso da Rd para o bebê dormir, Brasil17 respondeu: “tendo sido esclarecidos os riscos que esse tipo de dormida poderia trazer, bem como as consequências de balançar o bebê após a mamada na rede para fazê-lo dormir”.

Acredita-se que Brasil17 estivesse preocupada com os riscos de queda do bebê, que certamente, dependendo da altura da Rd do chão, as fraturas são iminentes. Quanto ao balanço, é possível que seja devido ao risco de vômitos, tal qual os neófitos marinheiros no balanço do mar.

Ainda no uso da Rd na infância, uma intervenção educativa para redução de aeroalérgenos no ambiente de convívio das crianças asmáticas, Coriolano,18 constatou que “o controle ambiental adequado do quarto, que apresentou um aumento de 23,8 %, foi atribuído à substituição do colchão pela rede”.

Na vida adulta, um grupo de pessoas que sofriam de insônia foi submetido ao repouso na Rd, monitorados por exame de ondas elétricas cerebrais. Os resultados demonstraram que o balanço da Rd induz ao sono, reduzindo a insônia em relação à cama.19

Certamente os estudos até aqui parafraseados não dão conta da robustez científica necessária para responder com razoabilidade os questionamentos deixados há mais de meio século por Cascudo.

Contudo, para todos aqueles questionamentos que ainda não têm respostas, fica a provocativa para respondê-los no percurso da trilha deixada pela Rd que perpassa por inúmeros cenários das interfaces históricas do Brasil. Aliás, o valor que a Rd agregou ao longo da história social, política, econômica e cultural brasileira está tão fortemente consolidado que Pacobahyba20 ao fundamentar seus argumentos, reclama com grande propriedade o direito de a Rd ser reconhecida como patrimônio cultural brasileiro.

Por ora, enquanto são aguardados os primeiros resultados dos experimentos de aeração e níveis de pressão causada pelo pano da Rd no corpo dos seus usuários, a opinião de Cascudo, comparando a Rd com a cama:

O leito obriga-nos a tomar seu costume, ajeitando-nos nele, procurando o repouso numa sucessão de posições. A rede toma nosso feitio, contamina-se com os nossos hábitos, repete, dócil e macia, a forma do nosso corpo. A cama é hirta, parada, definitiva. A rede é acolhedora, compreensiva, coleante, acompanhando, tépida e brandamente, todos os caprichos da nossa fadiga e as novidades imprevistas do nosso sossego. Desloca-se, incessantemente renovada, à solicitação física do cansaço. Entre ela e a cama há a distância da solidariedade à resignação.2

Fica validada, ainda que no campo opinativo, como verdade referenciável, ao menos provisoriamente.

A leitura do texto nos encaminhou para um pensar ampliado e novo sobre a Rd fortalecendo o referencial teórico que vem sendo ampliado na tese de Doutorado. Também mostrou empiricamente que a Rd apresenta potencialidades para ser incorporada nos cuidados de Enfermagem como alternativa de conforto em relação ao leito hospitalar, durante os longos períodos de repouso. Quanto à formação da úlcera por pressão, não foi possível estabelecer uma relação entre o conforto com melhor aeração e menor pressão nas proeminências, capaz de reduzir a vulnerabilidade na formação da úlcera por pressão em relação ao leito hospitalar.


CONCLUSÃO

A obra de Cascudo atendeu parcialmente o objetivo proposto, haja vista que não foram encontrados elementos capazes de inferirmos que a Rd traz mais benefícios em detrimento do uso do leito hospitalar na prevenção da úlcera por pressão. Por outro lado, este ensaio reflexivo ampliou nosso entendimento sobre a Rd, nos levando a vislumbrar novos estudos.

Quando pensamos que a Rd, por força de uma cultura local, pudesse ser usada em hospitais substituindo a cama, surgem novos questionamentos sobre quais seriam, na prática, as vantagens de um leito que não tem pés, deixando o chão completamente livre para ser higienizado? Que resultados trará ao controle de infecção hospitalar a possibilidade de substituir diariamente um leito por outro inteiramente lavado, que pode ser dobrado e armazenado em armários? Qual será o real valor na relação custo/benefício para o hospital ter um leito que em média custa três vezes menos que um colchão hospitalar e ainda dispensa a cama de ferro, colchão piramidal e ocupa menos espaço físico que uma cama?

Estes são alguns dos questionamentos que encaminhamos como sugestões aos futuros estudos, por enquanto nossos esforços estão direcionados em conhecer mais sobre a Rd, acreditando na potencialidade de reduzir a formação da úlcera por pressão e ser usada nos domicílios por pessoas que perderam a condição do movimento físico, mas que não podem perder o direito de escolha.

Por fim, acreditamos que propiciar reflexões, ainda que incipientes sobre a Rd é um primeiro passo científico para novas perspectivas sobre o seu uso no contexto do cuidado para aqueles que dela se utilizam em suas atividades de vida cotidiana, além de divulgar e valorizar um pouco da cultura do povo indígena brasileiro.

Conflicto de intereses

Los autores declaran no tener conflicto de intereses.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Recibido: 12 de mayo de 2015.
Aprobado: 22 de septiembre de 2015.

 

 

Ricardo Luiz Ramos. Enfermeiro, Doutorando, Pós Graduação em Enfermagem e Biociências. Universidade Estadual de Roraima/UERR. Área de Ciências Biológicas e da Saúde/Coordenação de Enfermagem. Rua Sete de Setembro 231, Bairro Canarinho. CEP: 69306-530 – BoaVista (RR), Brasil. Fone (95) 2121-0938.
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