INTRODUÇÃO
A Leishmaniose Visceral (LV), conhecida popularmente como calazar, é uma doença infecciosa cujo agente etiológico é um protozoário do gênero Leishmania. Nas Américas, Leishmania (Leishmania) chagasi é a espécie responsável pelas formas clínicas desta doença. Amplamente distribuída no mundo, ocorrendo em 88 países das regiões tropicais e subtropicais da Ásia, Oriente Médio, África, América Central e América do Sul, a LV faz parte das doenças consideradas negligenciadas, atingindo principalmente as populações mais empobrecidas dos países menos desenvolvidos, com incidência anual global de 500 mil novos casos e 50 mil mortes.1
A LV se encontra em franca expansão geográfica no Brasil, atingindo as cinco regiões brasileiras, e a região Nordeste vem representando a maioria dos casos notificados, seguida pela região Norte, Sudeste, Centro-Oeste e a Sul.2) No período de 2001 a 2010 foram registrados 33.315 casos de LV no país, com uma média de 3.332 casos por ano. No mesmo período ocorreram 2.287 óbitos, com letalidade de 6,9 %, sendo que a maior letalidade do período foi registrada no ano de 2003 (8,5 %).3
A doença é primariamente uma zoonose, por ocorrer naturalmente entre animais. Porém, pode acometer de maneira acidental o homem, quando este entra em contato com o ciclo de transmissão do parasito, transformando-se então em uma antropozoonose.4) É uma enfermidade sistêmica que, se não tratada, pode evoluir para óbito em mais de 90 % dos casos, sendo considerada pela OMS como uma das prioridades dentre as enfermidades tropicais.5
No país, os vetores transmissores são insetos denominados flebotomíneos, sendo que a principal espécie responsável pela transmissão da doença no Brasil é a Lutzomyia longipalpis.2
Em região rural e de mata, os roedores e raposas são os principais reservatórios do protozoário e fonte de infecção para os vetores. O cão é apontado como o principal reservatório doméstico da LV nas regiões periurbanas e urbanas devido à sua convivência estreita com o homem, à elevada ocorrência de infecções inaparentes e ao intenso parasitismo cutâneo. Independente da forma clínica da doença no cão, ele tem se mostrado infectivo para o vetor.6) A enzootia canina tem precedido a ocorrência de casos humanos e a infecção em cães tem sido mais prevalente do que no homem.2
No Brasil, até a década de 1980, a LV foi considerada uma enfermidade de transmissão silvestre, com características de ambientes rurais. Atualmente, além da preocupação com as áreas antes livres da doença e com a reemergência dos velhos focos endêmicos, a atenção em relação à sua ocorrência recai sobre as mudanças no seu padrão de transmissão, cuja expansão tem atingido cidades de médio e grande porte.7
As estratégias de controle da LV no país, preconizadas pelo Programa de Controle da Leishmaniose Visceral (PCLV), estão centradas no diagnóstico precoce e tratamento adequado dos casos humanos, vigilância e monitoramento canino com eutanásia de cães com diagnóstico sorológico ou parasitológico positivos, vigilância entomológica, saneamento ambiental e controle químico com inseticida de efeito residual e medidas preventivas direcionadas ao homem, ao vetor e ao cão.4
Conforme o Ministério da Saúde (MS), a LV em área urbana tem sido um desafio para os gestores de saúde, principalmente pelo número de pessoas expostas ao risco de se infectar, adoecer e morrer, como também pelas dificuldades operacionais em abranger toda extensão da área de transmissão e, consequentemente, o alto custo que as ações de controle acarretam.2
Considerando que a cidade de Montes Claros, Minas Gerais, é uma região que apresenta intensa transmissão de LV em que as principais vítimas são as crianças, torna-se importante o conhecimento sobre epidemiologia da doença na população infantil do município.8
Neste contexto, este estudo teve como objetivo identificar o perfil epidemiológico dos casos de LV em crianças residentes em Montes Claros, no período de 2009 a 2011.
MÉTODOS
Trata-se de um estudo descritivo, com abordagem quantitativa, realizada por meio de uma investigação retrospectiva dos casos confirmados de LV em crianças, no município de Montes Claros, MG, no período de janeiro de 2009 a dezembro de 2011.
A população estudada foi composta por 37 casos confirmados de LV na faixa etária de 0 a 12 anos. Segundo o MS, são casos da doença os pacientes notificados como suspeitos por apresentarem febre e esplenomegalia, associado ou não à hepatomegalia e confirmados através de critério laboratorial ou clínico-epidemiológico.
O diagnóstico laboratorial é realizado através da coleta de sangue para exames sorológicos (imunofluorescência indireta/RIFI ou enzyme linked immmunosorbent assay/ELISA), ou através da intradermorreação de Montenegro reativa. O aspirado de medula óssea e do baço geralmente mostra presença do parasita. A RIFI e os ensaios imunoenzimáticos são os mais utilizados no Brasil, sendo positivas diluições a partir de 1:80. Na presença de dados clínicos e laboratoriais, um teste sorológico reagente, reforça o diagnóstico de LV. A intradermorreação de Montenegro torna-se positiva apenas após a cura clínica na maioria dos pacientes em um período de seis meses a três anos após o término do tratamento.4
Foram coletadas no Sistema Nacional de Agravos de Notificação (SINAN) as seguintes variáveis constantes na ficha de notificação compulsória da LV: tipo de entrada, sexo, idade, zona de residência, sinais e sintomas e evolução dos casos.
Foi utilizada estatística descritiva (frequência simples), com auxílio dos softwares Excel (versão Windows Vista) e Epi-Info (versão 3.5.1).
Os dados do estudo foram disponibilizados pelo Setor de Epidemiologia da Secretaria Municipal de Saúde de Montes Claros. Parecer de comitê de ética em pesquisa não foi recomendado em razão de o estudo utilizar dados secundários, apresentando os resultados de forma agregada, garantindo o sigilo das informações individuais.
RESULTADOS
Segundo dados do SINAN, foram confirmados 67 casos de LV em humanos no município de Montes Claros, durante o período de 2009 a 2011. O número de crianças correspondeu a 37 (55,22 %) desse total, sendo 36 (97,29 %) casos novos e 01 (2,71 %) recidiva, conforme mostra a tabela 1.
Fonte: Sistema de Informação de Agravos e Notificações/SINAN. Setor de Vigilância Epidemiológica/VE. Secretaria Municipal de Saúde de Montes Claros/SMS-Moc. 2012.
Das crianças acometidas pela doença, 35 (94,59 %) eram originárias da zona urbana e duas (5,41 %) da zona rural, reforçando que Montes Claros, a exemplo de outras localidades brasileiras, é um dos municípios onde a LV passou a ser uma endemia urbana.
Verificou-se maior frequência de notificações no sexo feminino (51,36 %) e a faixa etária entre 1 a 4 anos (54,05 %) foi a mais acometida pela doença. Dentre os sinais e sintomas clínicos apresentados pelas crianças, os mais frequentes foram aumento do baço (100 %), febre (100 %), hepatomegalia (92 %) e palidez cutânea (92 %). Os casos estudados manifestaram ainda, quadro infeccioso, emagrecimento, fraqueza, tosse e diarreia, edema, icterícia e fenômenos hemorrágicos (Figura 1).
No que se referem à evolução dos casos, 35 crianças (94,59 %) tiveram cura e duas (5,41 %) evoluíram para óbito.
DISCUSSÃO
É considerada recidiva quando houver recrudescimento da sintomatologia, em até 12 meses após término do tratamento.9 Uma possível explicação para este fato pode estar relacionada à ineficácia do tratamento, à diminuição da capacidade de resposta do sistema imunológico da pessoa doente, além da presença de comorbidades associadas a LV.10
Montes Claros vivenciou, em passado recente, uma grave epidemia de LV, quando foram registrados 157 casos humanos no período de 2002 a 2004, caracterizando o município como área de transmissão intensa com média anual de 52,3 casos.11) Em 2005, foi elaborado o primeiro projeto de intensificação das ações de controle da LV na cidade, com o intuito de viabilizar as ações preconizadas pelo MS. Porém, apesar de todos os esforços para a implantação da metodologia recomendada, o controle desta endemia tem sido um desafio permanente à vigilância em saúde local, visto que a doença continua apresentando elevada incidência no município. No período de 2007 a 2009, foram notificados 95 casos da doença na cidade, sendo que o grupo etário entre zero e nove anos foi o mais acometido, representando 48,4 % dos casos registrados.8
Diversos fatores podem ter contribuído para a disseminação da doença em Montes Claros. Clima e topografia favoráveis à proliferação do vetor, a alta taxa de prevalência canina, além da existência de muitas habitações extremamente pobres, com deficiência de saneamento básico, e algumas áreas com acúmulo de matéria orgânica são fatores favoráveis para a ocorrência da LV na cidade.12
Avaliaram-se as atividades desenvolvidas pelo Programa de Controle da Leishmaniose Visceral em Montes Claros, no período de 2007 a 2009, e verificaram que as medidas foram direcionadas para o controle do reservatório canino, controle do vetor, visitas de manejo ambiental e a atividades educativas em saúde.8) Entretanto, os autores observaram inúmeras dificuldades para a implementação das medidas, tendo em vista que os recursos humanos, materiais e financeiros não são suficientes para a execução das atividades de forma integrada e que possam atingir toda a área de risco de transmissão da doença da cidade.
A característica de preferência da LV pela população infantil já foi mostrado em vários estudos10,13,14,15,16,17,18 e estimada em outra pesquisa, na qual, as crianças menores de 10 anos apresentaram o risco de contrair LV em 109,77 vezes ao serem comparadas com indivíduos acima desta idade.19) Para os autores, a susceptibilidade desta faixa etária se deve, possivelmente, ao contato mais frequente das crianças com animais, em comparação com adultos, além disso, os escolares contam com as maiores taxas de carência nutricional e têm seu estado imunológico ainda em formação.
Foi observado também frequências mais elevadas em crianças menores de 5 anos.17,18,20) Em Belo Horizonte,14 no Mato Grosso21) e no Mato Grosso do Sul,15 as maiores incidências da LV foram em crianças menores de 1 ano. Destaca-se, neste estudo, a concentração de casos nessa faixa etária que, epidemiologicamente, sugere a proximidade precoce do ser humano com o vetor da doença em nosso meio, corroborando o estudo realizado em Montes Claros (MG), na qual, consistiu em um levantamento entomológico no município, de forma a observar que L. longipalpis foi a espécie predominante, tanto no intradomicílio como no peridomicílio, reforçando a adaptabilidade do vetor a ambientes domésticos.12
Em relação ao gênero, constatou-se neste trabalho que a LV acometeu, discretamente, mais o sexo feminino de forma a similarizar com outro trabalho encontrado(20. Outros achados de literatura evidenciaram uma maior incidência da LV na população masculina.(10),(15),(17),(19 Esta diferença entre gêneros não se dá em função de maior susceptibilidade, mas provavelmente em função de maior exposição aos vetores flebotomíneos, permanecendo sem explicação científica.(16
As manifestações clínicas apresentadas pelas crianças estudadas estão em consonância com os achados encontrados na literatura.14,17,20,22 Segundo o MS, as complicações mais frequentes da LV são de natureza infecciosa bacteriana, destacando-se: otite média aguda, piodermites, infecções dos tratos urinário e respiratório. As hemorragias são geralmente secundárias à plaquetopenia, sendo a epistaxe e a gengivorragia as mais comumente encontradas.4
Ao descrever as características clínicas, epidemiológicas e evolutivas das crianças hospitalizadas por LV em centro de referência de Belo Horizonte, afirma-se que os fatores edema, sangramento ou icterícia à admissão foram associados à maior letalidade da LV.(14
A identificação precoce das características clínicas no primeiro atendimento ao paciente é de fundamental importância para se reduzir a mortalidade por meio da instituição de medidas terapêuticas e profiláticas eficazes. Os autores ressaltam a necessidade de profissionais capacitados para o reconhecimento precoce da doença, bem como, o monitoramento clínico e laboratorial dos pacientes durante o tratamento da LV, a fim de identificar precocemente possíveis complicações.22
O desfecho mais comum das crianças acometidas pela doença nesta pesquisa foi a evolução para a cura (94,6 %). Duas crianças evoluíram para o óbito, sendo um caso em 2009 e outro em 2011. Em Campo Grande (MS), a letalidade em crianças variou de 1 % a 3 %, na faixa etária de zero a nove anos.15) Em outros estudos realizados em Belo Horizonte (MG)14 e em Montes Claros (MG)20 a frequência desse desfecho foi de 3,6 % e 3,9 %, respectivamente.
Conforme o MS, nos últimos dez anos, apesar dos recursos de tratamento intensivo e das rotinas estabelecidas para o tratamento específico da LV, constatou-se aumento na letalidade da doença em diversas regiões do país, sendo que nos anos de 2001 a 2008, a letalidade atingiu, principalmente, os pacientes com faixa etária menor de 1 ano. Um dos principais fatores que contribuem para o aumento dessa letalidade é o diagnóstico tardio, portanto a identificação precoce dos pacientes que poderão evoluir com gravidade é de fundamental importância para reduzir a letalidade por meio da instituição de medidas profiláticas e terapêuticas oportunas.9
Em conclusão, este estudo foi baseado em um banco de dados secundários que é alimentado por notificação de casos confirmados. As informações coletadas foram úteis para se conhecer melhor as características da LV na população infantil de Montes Claros, que parece enfrentar um processo de endemização urbana da doença, constituindo-se em um desafio da saúde pública local.
Portanto, quanto menor a faixa etária, mais vulnerável é o indivíduo em se tratando da formação do sistema imune da criança. O período de maior fragilidade e susceptibilidade quanto à formação de anticorpos é no primeiro ano de vida da criança. O mosquito transmissor da LV reside em habitat específico na natureza. Quando este é destruído, o vetor migra para as áreas adjacentes com o clima e as condições favoráveis para o seu desenvolvimento atingindo as zonas urbanas, bem como a população alvo. Estes pressupostos convergem com os dados observados neste estudo.
Há que se produzir ainda mais conhecimento sobre o papel das diversas variáveis que compõem o cenário para a produção e manutenção da doença na cidade. Espera-se que essa pesquisa possa fornecer subsídios aos profissio nais de saúde, visando ao reconhecimento precoce da doença e a redução da mortalidade por este agravo.