INTRODUÇÃO
A lesão medular (LM) é considerada hoje um problema de saúde pública no país. No Brasil, existem mais de 130 mil pessoas com LM, seja ela parcial ou total, e esse número deve-se ao fato de que, anualmente, há um aumento na incidência de acidentes automobilísticos, violência urbana, que são fatores associadas à ocorrência da LM.1,2
Esta lesão neurológica causa déficits motores e sensitivos abaixo da lesão, modificações físicas e socioculturais, além de desestruturação psicológica. Isto resulta em incapacidades psicológicas e funcionaise ocasiona consequências que afetarão a vida do doente e de seus familiares.3,4
Nesse sentido, essas incapacidades afetarão a qualidade de vida (QV) do doente, fazendo-se importante o processo de reabilitação. Já que, possivelmente, esses indivíduos apresentarão déficits na capacidade de desenvolvimento das ações de autocuidado. E, em muitos casos, necessitarão de ajuda para realização das atividades da vida diária (AVD), principalmente no primeiro ano de LM.5
Estudos evidenciam que as atividades de higiene estão entre as mais afetadas depois que o paciente sofre a LM. São atividades que envolvem a limpeza do próprio corpo e da cavidade oral, bem como a própria limpeza do ambiente em si. Isso ressalta a importância de estudos na temática.6
Um indivíduo que possivelmente apresente déficits de autocuidado, será exigido dele o desenvolvimento de um conjunto de habilidades para a realização das atividades, tornando-se ele um alvo para os cuidados da enfermagem, que estará atuando na prestação da assistência de forma holística a esse indivíduo.7) Então, torna-se pertinente à enfermagem proporcionar uma assistência adequada almejando a melhora na capacidade de autocuidado desse indivíduo.
Deste modo, cabe ao enfermeiro, como líder da equipe e prestador da assistência ao doente, o papel de promotor desse autocuidado, especialmente no que diz respeito à verificação da capacidade do doente quanto ao autocuidado no domicílio bem como estimular ele a desenvolver uma boa capacidade de realização desse autocuidado.8,9
Dessa forma questionou-se: Qual a capacidade de autocuidado das pessoas com lesão medular para a higiene?
Utiliza-se como referencial teórico norteador deste estudo, a teoria do autocuidado, teoria do déficit de autocuidado e a teoria dos sistemas de enfermagem. De acordo com Orem, o autocuidado foi definido como "a prática de atividades executadas pelo indivíduo a fim de manter sua saúde e seu bem-estar".10) Diferentemente da capacidade de autocuidado, pois é definida como a capacidade que o indivíduo tem de realizar suas ações de autocuidado, avaliada no estudo, através de sua dependência para realizar as atividades.11
Objetiva-se com o estudo analisar a capacidade de autocuidado de pessoas com lesão medular quanto à higiene.
MÉTODOS
Trata-se de um estudo descritivo, transversal, com abordagem quantitativa, realizado no município de Natal, Rio Grande do Norte (RN), Brasil, no período de dezembro de 2013 a junho de 2014, em 16 serviços de saúde incluindo Unidades Básicas de Saúde (UBS) e Unidades de Saúde da Família (USF) cadastradas pela Secretaria Municipal de Saúde.
A população do estudo, composta por 73 indivíduos com LM que residiam nas áreas adscritas das Unidades de Saúde de Natal, foi identificada em estudo desenvolvido previamente em 2012. Após alguns desses indivíduos terem sido perdidos por mudança, falecimento e não localização, e devido residirem em áreas não cobertas pela Estratégia de Saúde da Família (ESF), a amostra utilizada no estudo compôs-se de 22 indivíduos com LM.
A amostra constitui 30 % da população e faz parte de um estudo maior que avalia um instrumento para identificar a capacidade de ações de autocuidado e classificar o nível de dependência do individuo nessas atividades. Os 22 indivíduos foram localizados como acessíveis, atenderam aos critérios de eligibilidade e foram convidados a participarem do estudo.
Os critérios de inclusão foram: ter 18 anos ou mais, possuir LM total ou parcial, residir na cidade de Natal/RN e estar adscrito em alguma Unidade de ESF. Foram excluídos os indivíduos em processo de hospitalização.
Utilizou-se o Instrumento para Consulta de Enfermagem na Visita Domiciliar ás pessoas com LM (INCEVDOP-LM) como instrumento de coleta de dados, validado quanto ao seu conteúdo.12 Este instrumento é composto por cinco partes: acolhimento, identificação, requisitos de autocuidado de desenvolvimento, requisitos de autocuidado universais, e, por fim, requisitos de autocuidado nos desvios da saúde. Salienta-se que está sendo realizado um estudo quanto à validação desse instrumento na prática clínica, analisando a sua viabilidade de ser aplicado e utilizado por enfermeiros da Atenção Primária à Saúde (APS) durante a visita domiciliar ao paciente com LM.
O instrumento foi aplicado pelos enfermeiros das Unidades de Saúde com o indivíduo com LM durante uma consulta de enfermagem realizada em uma visita domiciliar ou na própria Unidade. Estas consultas foram previamente agendadas em datas e locais mais adequados para ambos. Salienta-se que para a aplicação do instrumento, os enfermeiros receberam um treinamento prévio, com duração de quatro horas aproximadamente, com a apresentação da fisiopatologia da LM, função do enfermeiro como promotores do autocuidado na reabilitação desses indivíduos e forma de utilização do INCEVDOP-LM.
Dentre os dados coletados, as informações sobre o domínio higiene foram: capacidade para tomar banho; capacidade para lavar-se; capacidade para arrumar-se; capacidade para alterar os hábitos de higiene; e capacidade para manter o ambiente limpo. E, alguns itens das facetas do domínio eliminação (capacidade de evacuar e capacidade de miccção), foram analisados por serem itens indispensáveis para a avaliação da capacidade de autocuidado do indivíduo quanto à higiene.
Os dados foram tabulados por meio do pacote estatístico StatisticalPackage for the Social Sciences (SPSS), base para Windows e versão 20.0, e analisados usando epidemiologia escritiva.
O projeto matricial foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (CEP-UFRN), sob CAAE nº. 0243.0.051.000-11 e financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Foi desenvolvido em concordância com as determinações da Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde (CNS) que define as diretrizes e normas que regem a pesquisa envolvendo seres humanos. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) para participar da pesquisa.
RESULTADOS
No presente estudo, a amostra foi constituída em sua maioria, por homens (81,8 %), com algum credo religioso (86,4 %), com escolaridade ≥10 anos de estudo (52,4 %), e de raça não branca (72,7 %). Com relação a terem ou não companheiros, o estudo mostrou que houve uma igualdade no número de participantes com companheiro(a) (50 %) e sem companheiro (50 %). Quanto ao nível da lesão, a maioria dos indivíduos eram paraplégicos (90,9 %) e os tetraplégicos representavam (9,1 %).
A capacidade de autocuidado do doente com LM para desenvolver as atividades de higiene, com base no nível de dependência, está apresentada na Tabela 1.
TD: Total dependência; SD: Substancial dependência; MD: Moderada dependência; LD: Leve dependência e TI: Total independência.
Nota: * atividade que um dos participantes não respondeu a questão, pois não se aplicava à situação do paciente.
Conforme observado na Tabela 1, os indivíduos com LM possuem, na maioria das vezes, total independência para realizar as atividades de higiene corporal, mas não são menos independentes para a realização de ações que envolvem a higiene da parte inferior do corpo, como lavar os pés (13,6 %) e calçar e retirar os sapatos (14,3 %) e ações envolvidas na higiene do ambiente, como limpar os cômodos coletivos do domicílio (38,1 %).
Quanto ao item "não consegue obter ajuda profissional para o acompanhamento na mudança de hábitos de higiene", o qual não foi descrito na Tabela 1, a maioria dos participantes disseram "nunca" não conseguirem essa ajuda (77,3 %; n=17), enquanto o restante dos indivíduos responderam "sempre" ou "às vezes" terem essa ajuda (9,1 %; n=2) ou "raramente" terem essa ajuda (4,5 %; n=1).
Com relação às atividades do domínio eliminação, as quais não foram descritas na tabela acima, obteve-se que 90,9 % (n=20) não precisavam de ajuda para realizar a sua higiene após a evacuação enquanto 4,5 % (n=1) necessitavam de ajuda. Destaca-se ainda que, com relação à capacidade de autocuidado do paciente com LM para micção, 86,4 % (n=19) dos pacientes nunca precisavam de ajuda para realizar a sua higiene após a micção, 9,1 % (n=2) sempre precisavam de ajuda, e 4,5 % (n=1) às vezes precisava dessa ajuda.
DISCUSSÃO
No presente estudo, prevaleceram indivíduos do sexo masculino, assim como traz um estudo realizado em Hospital de Emergências Clínicas e Cirúrgicas, do Rio de Janeiro (RJ), onde 90 % eram do sexo masculino, e outro realizado em um Centro de Reabilitação do Nordeste, com prevalência de indivíduos homens,13,14 e paraplégicos, que confronta com os resultados de um estudo realizado em Brasília onde a maior parte dos participantes eram tetraplégicos, e isso pode estar relacionado ao risco de exposição aos possíveis agentes causadores da LM, como violência, acidentes de trânsito, entre outros.15
Com relação à presença de credo religioso e escolaridade, prevaleceram indivíduos com algum credo religioso e com escolaridade ≥ 10 anos de estudo, além de serem indivíduos de raça não branca e sem companheiros(as). Tais achados convergem com o que se encontra na literatura, sendo o Brasil um país predominantemente católico e multirracial, com prevalência de não-brancos.11
Apesar de ir ao encontro com os estudos da literatura,16) a presença de indivíduos sem companheiro é um fator preocupante, principalmente do ponto de vista da incapacidade funcional do paciente que poderá impossibilitar a busca por ajuda levando a algum déficit de autocuidado. Sendo o enfermeiro um promotor do autocuidado, é de competência dele trabalhar a promoção em saúde dentro da família, desde a educação do companheiro(a) do paciente até ao próprio paciente, estimulando a realização do autocuidado por parte dele.
Com relação à capacidade de autocuidado dos indivíduos com LM, viu-se que ao analisar a capacidade de autocuidado para tomar banho, todas as variáveis tiveram uma predominância de pacientes que tinham uma independência total para sua realização, apesar das limitações encontradas, principalmente no que diz respeito à mobilização em cadeiras de rodas para deslocar-se até o banheiro.
Esses resultados corroboram com um estudo realizadonas Unidades Básicas de Saúde da Família de Campina Grande que refere que 91 % dos pacientes com LM demonstraram boa capacidade para transferir-se para cadeira de rodas, 83 % com boa capacidade para banho e 72 % com boa capacidade de movimentar-se em cadeira de rodas.17) A desenvoltura dessa capacidade pode estar relacionada ao grau de lesão do paciente.
Em se tratando da capacidade de autocuidado para lavar-se, o estudo evidenciou que em todas as atividades os indivíduos demonstraram uma boa independência, como a necessidade de ajuda para escovar os dentes. Pressupõe-se que a capacidade de independência, nesse aspecto, pode ter relação com o nível de exigência de esforço físico e de movimentação do paciente.
Esses resultados evidenciam a importância da assistência de enfermagem quanto à higiene oral, visto que, por mais que a maioria dos indivíduos apresentem independência, a boa capacidade para o autocuidado quanto à higiene oral constitui um resultado esperado da assistência de enfermagem, que permite avaliar a evolução do pacientedurante seu processo de reabilitação e autocuidado.18
Quando o indivíduo adquire a LM, os membros inferiores são os que ficarão mais comprometidos, tanto da parte física-motora, quanto da parte sensorial,19) e uma das implicações disso diz respeito a capacidade de autocuidado para arrumar-se, uma vez que o indivíduo terá dificuldades na realização de movimentos para vestir ou retirar sua roupa.
O estudo evidenciou que, mesmo frente a essas dificuldades, os indivíduos mostraram, em sua maioria, total independência na realização das atividades para arrumar-se, principalmente no que diz respeito às atividades que envolviam os membros superiores, como traz alguns estudos.20) Vale salientar que grande partedos indivíduos do estudo eram paraplégicos, ou seja, conseguiam realizar movimentos com a parte superior do corpo, que pode ser uma explicação para esse achado.
Já as atividades que exigiam auxílio dos membros inferiores, como cortar as unhas (a qual se aplica mãos e pés), eles tiveram mais dificuldade do que as atividades anteriormente citadas, mas mesmo assim demonstraram total independência em sua maioria.
Quanto à capacidade de autocuidado para alterar os hábitos de higiene, prevaleceram indivíduos que tinham total independência e que conseguiam obter ajuda profissional, caso necessário. Isso pode estar relacionado com a capacidade de enfrentamento da doença, que pode levar o indivíduo a mudar seus hábitos de vida, a fim de ter uma disposição melhorada para a realização de seu autocuidado. Isso vai ao encontro com estudos que mostram a boa capacidade para o autocuidado de indivíduos com LM.21
Com relação à capacidade de autocuidado para manter o ambiente limpo, observou-se que apenas com relação à limpeza dos cômodos da casa que os indivíduos, em sua maioria, demonstraram total dependência. Mesmo assim, o estudo evidenciou que os demais itens dessa faceta apresentaram um número significativo de indivíduos que tinham total dependência para realização de determinadas atividades no ambiente.
Observou-se, então, que os resultados deste estudo podem estar diretamente relacionados com a situação clínica do paciente, bem como a forma que o ambiente em que ele vive está estruturado, como refere um estudo realizado em um Hospital Geral de Fortaleza, mostrando que subir escadas é um ponto onde os indivíduos demonstram uma incapacidade física para desenvolver, que pode ser um dos obstáculos encontrados no domicílio para a não realização da limpeza do ambiente.21) Além disso, vemos também a questão cultural, onde usualmente essas atividades são desempenadas por pessoas do sexo feminino, e o estudo evidenciou prevalência de indivíduos do sexo masculino.
E, no que diz respeito à capacidade de evacuação e micção, a maioria dos indivíduos apresentaram total independência para realizar as atividades, apesar de estudos trazerem que os indivíduos portadores de LM apresentam limitações nas atividades que envolvem o sistema digestivo e urinário, como por exemplo, a bexiga neurogênica e o intestino neurogênico.4,22 Mesmo com resultado positivo, é esperado que o enfermeiro estimule o autocuidado do paciente e trabalhe a promoção e prevenção de complicações a nível desses domínios com a execução correta das técnicas utilizadas por esses indivíduos para realizar a higiene íntima.
Em conclusão, verificou-se que na maior parte das atividades de higiene (do domínio higiene e evacuação), os indivíduos apresentaram uma boa capacidade para o autocuidado, demonstrando leve dependência ou total independência na realização dessas atividades. Mas, nas atividades de limpeza do ambiente, os indivíduos mostraram um déficit na capacidade de autocuidado, demonstrando total, substancial ou moderada dependência na realização delas. Presume-se, então, a associação desses resultados com fatores ambientais, limitações físicas, capacidade de enfrentamento da doença, dentre outros fatores.
Há de se considerar, também, que os resultados podem ser explicados pelas limitações impostas pela paraplegia, ou seja, pela capacidade de mobilização dos membros superiores para realizar as atividades de higiene pessoal e a imobilidade dos membros inferiores que inviabiliza as atividades de limpeza do ambiente.
Assim, o estudo da capacidade do autocuidado possibilita o enfermeiro enxergar as necessidades humanas de autocuidado e de dependência do doente, além de direcioná-lo a sistematizar as suas ações levando a uma melhora na implementação destas, promovendo saúde, bem-estar e autonomia.
Faz-se importante então o estudo na temática, e recomenda-se a elaboração de outros trabalhos utilizando o instrumento guia que é elaborado baseando-se na teoria de Dorothea Orem e no processo de enfermagem, pois ele possibilitao enfermeiro a realizar uma consulta direcionada para os problemas que o paciente tem, a partir do momento que adquire a LM, e no seu processo de adaptação à nova situação.
Acredita-se que os resultados desse estudo possam subsidiar o enfermeiro no que diz respeito ao planejamento de ações e as intervenções que ele fará ao doente com LM a fim de promover o seu autocuidado, a partir da avaliação de sua capacidade, estimulando sempre o indivíduo quanto ao seu autocuidado e favorecendo assim uma melhora no quadro do doente.