INTRODUÇÃO
Os homens são mais vulneráveis às enfermidades graves e crônicas e morrem mais precocemente que as mulheres.1,2) A cada três mortes de adultos, duas são de homens.3) Vivem, em média, sete anos menos do que as mulheres e têm mais doenças cardiovasculares (DCV).4
As DCV são consideradas um problema de saúde pública devido à alta prevalência e relevância no perfil de morbimortalidade mundial.5 Mais de um em cada três homens desenvolve algum tipo de DCV e um em cada quatro morrerão precocemente por essa causa.6
Atualmente, mais de 80 % das mortes por DCV estão associadas a fatores de risco cardiovascular (FRCV) conhecidos. Entre esses, destacam-se o diabetes mellitus tipo 2, a obesidade, a inatividade física, o tabagismo, a hiperlipidemia e a hipertensão arterial, pois apresentam alta prevalência em muitas populações; têm impacto independente e significante no risco para doenças isquêmicas e acidente vascular cerebral; e são modificáveis ou passíveis de controle.5 A simultaneidade desses FRCV acentua o risco de ocorrência e morte por DCV.
Em adultos jovens, o coeficiente de mortalidade por DCV é cerca de 50 % maior na populaç ão masculina comparado à feminina.(7) Comportamentos masculinos expressam resistência ao cuidado à saúde e estão associados a fatores socioculturais e institucionais que, conjunta ou individualmente, potencializam a exposição às situações de risco e à dificuldade de reconhecerem suas necessidades de saúde, procurarem os serviços de saúde,4,8 monitoramento, prevenção e controle dos FRCV.
A prevenção e controle das DCV e FRCV evitam o surgimento e a progressão de complicações, reduzem hospitalizações, mortalidade e custos para o Sistema Único de Saúde (SUS) e a sociedade. Assim, têm sido preconizadas políticas governamentais de promoção e proteção à saúde e combate a doenças, a exemplo da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem (PNAISH), a qual aborda a importância de estratégias diferenciadas, considerando as questões de gênero implicadas no cuidado à saúde.4,8
Tratamentos crônicos ou de longa duração têm, em geral, menor adesão masculina, pois os esquemas terapêuticos exigem grande empenho para modificar hábitos de vida e cumprir o tratamento. Portanto, são importantes ações de promoção e prevenção de agravos à saúde e estratégias de educação em saúde articuladas com ações governamentais e da sociedade organizada, visando melhor qualidade de vida dos homens e reconhecimento das suas necessidades e direitos à saúde.4 Para isso, é primordial conhecer o panorama epidemiológico das DCV e dos FRCV em homens e compreender e considerar como as questões de gênero impactam no cuidado à saúde e na expressão dessas doenças.
A elaboração de diagnósticos amplos e atualizados de um país oferecem subsídios para o planejamento de ações de promoção da saúde e prevenção das DCV e poderão orientar o cuidado em saúde/enfermagem na implementação de propostas voltadas para os homens, considerando as diferentes nuances do problema.9
Assim, foram objetivos deste estudo: estimar a prevalência de FRCV e de doenças isquêmicas do coração em homens; discutir a relação entre masculinidade e a exposição a FRCV e a essas doenças.
MÉTODOS
Estudo epidemiológico, descritivo, retrospectivo, realizado por meio de dados secundários, obtidos em diferentes bases de dados do Brasil.
As prevalências dos FRCV, dos indicadores de consumo alimentar e da autoavaliação do estado de saúde foram obtidas por meio de dados disponíveis pelo Programa Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel) do Ministério da Saúde do Brasil, o qual avaliou em 2014, em todas as capitais brasileiras e no Distrito Federal, 40 853 pessoas acima de 18 anos de idade. Para calcular a prevalência de fatores de risco ou de proteção cardiovascular o Vigitel considerou o número de indivíduos que referiram a presença do fator dividido pelo número de entrevistados.10
Os dados referentes à mortalidade, no período de 2010 a 2014, para homens e mulheres, acima de 18 anos, foram obtidos nas bases de dados do Departamento de Informática do SUS (DATASUS), utilizando-se na busca as categorias da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID-10) referentes às Doenças Isquêmicas do Coração (Infarto Agudo do Miocárdio (IAM), Angina Pectoris, Doença Isquêmica Crônica do Coração e Insuficiência Cardíaca).11) O DATASUS é uma base de dados de acesso público e gratuito, sem identificação dos participantes, dispensando apreciação por Comitê de Ética em Pesquisa, conforme dispõe a Resolução do Conselho Nacional de Saúde do Brasil nº 466/12.
Tendo em vista que as informações mais atuais nas bases de dados existentes no país, sobre os agravos estudados, são referentes ao ano de 2014, estabeleceu-se este ano como o limite para todas as buscas.
Os dados obtidos constituíram um banco no programa estatístico SPSS, versão 22.0, foram analisados em frequências absolutas e relativas e apresentados em tabelas.
RESULTADOS
Os homens comparados às mulheres, apresentaram maior prevalência de FRCV como tabagismo (22,5 %), sobrepeso (56,5 %), consumo abusivo de bebidas alcoólicas (23,4 %), inatividade física (16,2 %) e tempo de televisão (25,8 %), (tabela 1).
Quanto aos indicadores de consumo alimentar (tabela 2), evidenciou-se que maior proporção de homens, comparados às mulheres, não atenderam ao consumo regular (29,4 %) e recomendado (19,3 %) de frutas e hortaliças. Consomem mais carne com excesso de gordura visível (38,4 %), maior quantidade de sal (17,4 %) e feijão (72,7 %).
Quanto à autoavaliação do estado de saúde, 3,4 % dos homens e 5,3 % das mulheres perceberam sua saúde negativamente. No período de 2010 a 2014, identificou-se 640.640 casos de morte por doenças isquêmicas do coração e maioria acometeu homens (359.785; 56,2 %) quando comparados às mulheres (280.855; 43,8 %). O IAM foi o evento mais frequente (65,5 %), seguido da Insuficiência Cardíaca (21,2 %). Entre as categorias de causas do CID-10 predominaram entre os homens a Angina Pectoris (51,4 %), o IAM (58,9 %) e a Doença Isquêmica Crônica do Coração (55,8 %), (tabela 3). A mortalidade por IAM recorrente foi maior em homens (513; 61,6 %) em relação as mulheres (320; 38,4 %),
Quanto à tendência da mortalidade por doenças isquêmicas do coração, no período de 2010 a 2014, verificou-se que Angina Pectoris foi mais frequente em homens, exceto em 2013, apresentando discreta tendência decrescente. O IAM e a Doença Isquêmica Crônica do Coração foram eventos crescentes e mais frequentes em homens em todos os anos (tabela 4).
DISCUSSÃO
Os resultados revelaram que os homens estão mais expostos a FRCV como tabagismo, inatividade física, comportamento sedentário (tempo de televisão), consumo abusivo de bebida alcoólica, hábitos alimentares inadequados e sobrepeso. Tais comportamentos podem ser influenciados pelas construções sociais de gênero determinantes do processo de saúde-doença. Os estereótipos de gênero enraizados na sociedade patriarcal brasileira traduzem concepções e ações masculinas sobre adoecimento e autocuidado. O adoecimento muitas vezes é entendido pelos homens como sinal de fragilidade12 e eles julgam-se invulneráveis, contribuindo para se cuidarem menos e se exporem mais às situações de risco. Não podendo expressar fragilidade é difícil admitir que algo não vai bem com a saúde, sobretudo quando sentem ameaçado o papel de provedor da família. Geralmente, temem que o médico descubra que algo vai mal com a saúde, não apenas porque põe em risco a crença de invulnerabilidade, mas porque pode atestar a incapacidade para o exercício do trabalho.
Quanto ao tabagismo, homens tendem a fumar mais cigarros por dia e têm maior dependência que mulheres.13) Uma investigação na comunidade de Aka, Bacia do Congo, evidenciou que o hábito de fumar em homens era geralmente atribuído a demonstração de poder social, político ou econômico.14) O menor tabagismo em mulheres parece ser explicado pela aversão ao tabaco, preocupações com os efeitos negativos sobre a saúde fetal e pelo desejo de atrair maridos, que preferem mulheres não fumantes. A taxa de consumo elevada em homens relaciona-se ao desejo de melhorar as habilidades de sedução e atrair e/ou manter esposas, que preferem maridos fumantes e à demonstração de poder diante de outros homens.14
Referente aos hábitos alimentares, comer rapidamente e/ou até sentir-se saciado e ingerir alimentos gordurosos está relacionado com sobrepeso,15) fator de risco prevalente nos homens desse estudo. Comparados às mulheres, costumam mastigar menos, comer mais rapidamente e se preocupam menos com a qualidade dos alimentos e o processo de cocção. Esses comportamentos podem predispor o acúmulo de gordura abdominal e, se não corrigidos e associados ao sedentarismo, levam a obesidade e elevam o risco de DCV.15 Comer devagar aumenta a sensação de saciedade e, por sua vez, reduz a quantidade de alimentos ingeridos, ajudando a controlar o peso. Ademais, mastigar bem os alimentos aumenta o tempo dedicado à refeição e o nível de saciedade, resultando na redução da quantidade ingerida.16,17
Os hábitos alimentares inadequados podem justificar maior sobrepeso em homens. Todavia, a obesidade é mais frequente em mulheres sobretudo devido a questões hormonais, pois o fator biológico da menopausa afeta a distribuição de gordura. Além disso, a obesidade nelas está relacionada à experiência gestacional, a qual contribui para a alteração da composição corporal por meio do ganho de peso, especialmente na região abdominal. Ademais, apesar das mulheres consumirem alimentos mais saudáveis, consomem também alimentos mais carregados em açúcar.18,19
Os homens, comparados às mulheres, não ingerem adequadamente frutas e hortaliças, consomem carnes com excesso de gordura visível e maior quantidade de sal e feijão. Essa diferença de gênero parece relacionar-se à preocupação das mulheres em optar por alimentos mais saudáveis e cautela no consumo de calorias, sal e teor de gordura. Selecionam, geralmente, uma dieta predominante de frutas e vegetais em vez de carnes e outros alimentos gordurosos.20,21) O feijão é um dos principais alimentos que compõem o cardápio da população brasileira, especialmente entre a classe trabalhadora de homens, haja vista o seu potencial de saciedade, geração de energia e de manutenção da força de trabalho. Entretanto, os benefícios do uso regular do feijão podem ser prejudicados em decorrência da adição de carnes gordas, curtidas e salgadas e embutidos, elevando o teor de gordura e sal do alimento, hábito bastante comum nas regiões Nordeste e Sudeste do Brasil.22,23
Os homens, comparados às mulheres, apresentaram maior consumo abusivo de bebida alcoólica. Bebendo ficam desinibidos e acreditam demonstrar força e virilidade diante delas e de outros homens. Esse consumo é uma forma de potencialização e demonstração da masculinidade hegemônica, a qual é caracterizada pela tenacidade física e emocional, assunção de riscos, heterossexualidade predatória e sentimento de provedor da família.24
Quanto ao nível de atividade física geral, os homens são mais inativos e permanecem mais tempo vendo televisão do que as mulheres, porém são mais ativos no lazer e no deslocamento. O comportamento mais ativo no lazer, pode ser explicado por associarem os exercícios físicos ao prazer. Desde a infância a prática esportiva tem maior incentivo entre meninos, como ganhar como primeiro presente a bola como brinquedo. Enquanto isso, as mulheres brincam com bonecas e afazeres domésticos, praticam atividade física por questões de saúde, orientação médica ou estética. Elas são também responsáveis pelo trabalho doméstico, muitas vezes enfrentando dupla jornada, o que pode diminuir o nível de atividade física no lazer,25) no deslocamento e o tempo de tela.
Atualmente, o corpo tem tido atenção nos meios desportivos e de lazer, nos esportes como futebol, vôlei, lutas marciais, danças de salão e de rua. Embora as mulheres venham assumindo esses esportes de forma inibida e singular, são eles que invadem esses espaços de sociabilidade. Assim, corpos participam desses espaços por delinearem condutas sociais.26
Evidenciou-se que os homens, nos últimos cinco anos, morreram mais que as mulheres por Angina Pectoris, IAM e Doença Isquêmica Crônica do Coração, ratificando estudos preliminares.7 Embora a maior mortalidade por essas doenças relacione-se a fatores biológicos como a proteção hormonal das mulheres antes da menopausa,27) é inegável que os hábitos de vida da sociedade contemporânea28) e as questões de gênero estão fortemente associados à mortalidade cardiovascular. O corpo masculino, quando influenciado por modelos tradicionais de masculinidade, se expõe mais a riscos de doenças com altos índices de mortalidade,26) a exemplo das DCV.
Os homens, geralmente, padecem mais de condições severas e crônicas de saúde e morrem mais do que as mulheres pelas principais causas de morte. Não buscam, como elas, os serviços de atenção básica, adentrando ao sistema de saúde pela atenção especializada,29,30) muitas vezes com um problema de saúde já instado. Como consequência, vivenciam agravo da morbidade pelo retardo na atenção, maior sofrimento psicossocial junto à família, bem como oneram o custo para o SUS.4
O corpo masculino historicamente tem sido reduzido à funcionalidade do pênis. Assim, esse corpo poderia ser questionado ou até mesmo desqualificado frente a qualquer incerteza ou problema vinculado à atuação do seu órgão sexual e sua capacidade de emprenhar e, assim, assegurar a perpetuação da espécie. Nesse sentido, a procura pelo serviço de saúde está muitas vezes relacionada a qualquer problema que ameace a percepção da funcionalidade de seu potencial reprodutivo, além da micção.26
Ademais, os homens só procuram um serviço de saúde quando sentem muitas dores, ratificando uma tendência ainda hegemônica do modelo curativo no perfil de utilização dos serviços. A procura também ocorre muitas vezes por exigência da companheira, sendo mais comum que homens casados dependam de suas mulheres no cuidado à saúde, sendo o casamento fator de proteção em uma variedade de doenças.31
A boa saúde e o autocuidado não fazem parte do processo de construção social da masculinidade, o que determina e influencia o surgimento de problemas de saúde, assim como o modo como os homens lidam com essas questões. Geralmente, o cuidar de si e dos outros não são questões colocadas na socialização dos homens. Na sociedade contemporânea, o cuidado é ainda papel considerado feminino e as mulheres são educadas, desde muito cedo, para desempenhar e se responsabilizar por esse papel.12
Ademais, a resistência masculina para buscar serviços de saúde sofre influência de fatores institucionais. Esses privilegiam ações de saúde dirigidas a criança, ao adolescente, a mulher e ao idoso. Geralmente, o horário de funcionamento coincide com o de trabalho dos homens, motivo apontado para a não procura ou para a continuidade de tratamentos, sobretudo quando são responsáveis pelo sustento da família. Salienta-se que muitas mulheres, de diferentes classes socioeconômicas, estão inseridas no mercado de trabalho, e nem por isso deixam de procurar tais serviços. O que diferencia é que apesar do medo, as mulheres procuram o médico, pois essa atitude faz parte do seu processo de socialização, onde é vista como um ser frágil que necessita de cuidados constantes.30
Outras barreiras referidas tratam-se das dificuldades de acesso e de resolutividade dos serviços de saúde, que se expressam pelas longas filas de espera para a marcação de consultas e exames, causando a perda de horas de trabalho diárias,4) sem que necessariamente tenham suas demandas resolvidas em uma única consulta.8) Além disso, o descontentamento com a demora no atendimento faz com que o homem procure os prontos-socorros e as farmácias, onde seriam atendidos mais rapidamente e conseguiriam expor seus problemas com maior facilidade.32
Outro motivo alegado relaciona-se à vergonha de se expor ao médico, ao contrário da mulher, que em sua socialização foi mais acostumada a ter o seu corpo exposto para a medicina.29) O conceito de masculinidade tem sido contestado, perdendo seu teor original na dinâmica do processo cultural, porém, prevalece uma concepção de masculinidade hegemônica, justificando a não procura pelos serviços de saúde.4
A PNAISH considera a heterogeneidade das possibilidades de ser homem. As masculinidades são construídas histórica e socioculturalmente, sendo a significação da masculinidade um processo em permanente construção e transformação. Masculino e feminino são modelos culturais de gênero que convivem no imaginário dos homens e das mulheres. Essa consideração é fundamental para a promoção da equidade na atenção a essa população, que deve ser considerada em suas diferenças por idade, condição socioeconômica, étnico-racial, por local de moradia (urbano ou rural), pela situação carcerária, pela deficiência física e/ou mental e pelas orientações sexuais e identidades de gênero não hegemônicas. Não há dúvidas de que as representações sociais sobre a masculinidade vigente comprometem o acesso à atenção integral, bem como repercutem de modo crítico na vulnerabilidade dessa população a situações de violência e de risco para a saúde. Mobilizar a população masculina brasileira pela luta e garantia de seu direito social à saúde é um dos desafios dessa política4 que pretende tornar os homens protagonistas de suas demandas, consolidando seus direitos de cidadania.
Em conclusão, homens estão mais expostos a FRCV e à mortalidade por doenças isquêmicas do coração e as construções sociais de gênero são determinantes do seu processo saúde-doença. É necessário fortalecer e qualificar a atenção primária garantindo a promoção da saúde e a prevenção de agravos evitáveis, o acesso e o acolhimento dos homens nos serviços de saúde. O estudo traz para a comunidade científica uma reflexão sobre os indicadores de saúde cardiovascular em homens adultos brasileiros e sobre a importância de se considerar as questões de gênero nos cuidados voltados à saúde desse grupo populacional.