INTRODUÇÃO
As estimativas mostram que as demências afetam 50 milhões de pessoas no mundo, e as projeções para 2050 são de 152 milhões.1 A Doença de Alzheimer (DA) é considerada a principal responsável pela ocorrência de demência irreversível, correspondendo a dois terços dos casos. A maioria dos pacientes apresentará, ao longo do curso da doença, um ou mais sintomas neuropsiquiátricos ou sintomas comportamentais e psicológicos da demência (SCPD), como agitação, depressão e psicose.2
Os sintomas neuropsiquiátricos possuem fatores de risco complexos e múltiplos associados a variáveis biológicas, psicológicas e ambientais não totalmente esclarecidas. Em geral, a ocorrência desses sintomas é resultado de fatores combinados.3 Portanto, não é possível atribuir ao declínio cognitivo a única causa, mas considerar fatores intrínsecos aos idosos, aos cuidadores e ao ambiente.4) A agitação é um dos sintomas mais comum e grave, podendo afetar entre 13% e 45% das pessoas com demência e contribuir para o aumento da incapacidade, do número de visitas aos serviços de emergência, das internações ou das institucionalizações de longa permanência e para a diminuição da qualidade de vida dos pacientes e de seus cuidadores.5,6,7
Na abordagem aos idosos com sintomas neuropsiquiátricos, as intervenções não farmacológicas (INF), psicossociais ou psicoeducacionais têm sido relatadas como benéficas tanto para cuidadores como para os idosos e deveriam ser aplicadas antes das farmacológicas.8,9,10,11Intervenções como não confrontar o idoso, tentar distraí-lo e envolvê-lo em atividades, conversar com ele utilizando frases simples, dando um comando por vez, evitando perguntas com opção de resposta sim/não podem facilitar o manejo dos sintomas neuropsiquiátricos e reduzir o desgaste do cuidador.12,13
Entretanto, o foco dos estudos nessa área tem sido, sobretudo, o manejo dos sintomas neuropsiquiátricos, em geral, em âmbito institucional.9,10) Não foram encontrados estudos abordando o manejo não farmacológico, especificamente o da agitação, feito por familiares cuidadores em ambientes domésticos.
Assim, considerando a complexidade das demências, a gravidade dos quadros de agitação e seus impactos no cuidado aos idosos e na saúde dos cuidadores, tornou-se relevante obter mais clareza sobre as intervenções não farmacológicas utilizadas para o manejo da agitação em espaços domésticos. Ademais, o manejo precoce tem potencial de reduzir as visitas aos serviços de saúde, o que contribui para a permanência dos idosos com seus familiares, resultando em melhor qualidade de vida para todos.14
Com isso, formulou-se a questão desta pesquisa: como é realizado o manejo não farmacológico dos quadros de agitação em idosos com demência por familiares cuidadores? Para responder à questão, definiu-se como objetivo identificar as intervenções não farmacológicas utilizadas por familiares cuidadores para o manejo da agitação em idosos com demência.
MÉTODOS
Optou-se por um estudo qualitativo com familiares cuidadores de idosos. O critério de inclusão foi ser familiar que cuidasse de idosos com demência e histórico de agitação. Dessa forma, cuidadores responsáveis por idosos com histórico de agitação, porém sem quadro de demência diagnosticado, foram excluídos.
Os cenários foram sete Unidades de Atenção Primária à Saúde (UAPS) de um município de Minas Gerais, Brasil. As UAPS foram visitadas para rastrear, entre as equipes, os familiares cuidadores elegíveis para esta pesquisa. Posteriormente, realizaram-se visitas domiciliares para convidar esses atores a participar e, em caso de aceite, agendar a entrevista. Não houve nenhuma perda ou exclusão de participantes.
A coleta de dados ocorreu entre novembro/16 e março/17. Utilizou-se entrevista, com roteiro semiestruturado elaborado pelos pesquisadores, audiogravadas, realizadas em local privativo, com dia e hora previamente agendados, com duração média de 15 minutos. Foram feitas 11 entrevistas, e a inclusão de novos participantes foi cessada quando os dados começaram a se repetir, segundo a avaliação dos pesquisadores.15 O roteiro contemplou questões sobre o perfil sociodemográfico do familiar e sobre as vivências e percepções acerca da manifestação da agitação nos idosos (Como o Sr.(a) identifica a agitação? O que o Sr.(a) costuma fazer no momento da agitação?).
Para a análise, utilizou-se a técnica de análise de conteúdo.16 Inicialmente, fez-se a leitura e organização do material por temas, permitindo a categorização dos achados. Por fim, procedeu-se à interpretação dos significados contidos nos depoimentos dos participantes desta pesquisa.
O estudo respeitou os padrões éticos exigidos pela Resolução Nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde e obteve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa em 12 de setembro de 2016 (Parecer nº 1.720.827). Para fins de sigilo, os familiares cuidadores foram codificados com as letras FC, seguido do número de sequência das entrevistas.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
As intervenções não farmacológicas de manejo da agitação mais utilizadas foram: a conversa, a escuta, a companhia (ficar perto), a distração (inserir o idoso em atividades laborais, jogar cartas ou promover atividades lúdicas com o uso de boneca, por exemplo), a música/canto e a leitura da Bíblia. Intervenções semelhantes foram relatadas em um estudo efetuado com cuidadores informais de idosos atendidos em um ambulatório de um Hospital Universitário de Minas Gerais.12
Os participantes desse estudo conseguiram identificar a agitação por meio de mudanças discretas de comportamento e tiveram perspicácia para reconhecer fatores desencadeantes psicossociais. Talvez isso ocorreu por causa da longa convivência dos cuidadores com esses idosos, pois eles já conheciam o comportamento desses anciãos.
Os resultados do estudo foram organizados nas seguintes categorias: “A agitação em ambientes domésticos e os fatores desencadeantes” e “O manejo da agitação”.
A agitação em ambientes domésticos e os fatores desencadeantes
O manejo pode ser facilitado se o cuidador reconhecer os sinais da agitação, bem como as características e os prováveis gatilhos para o comportamento agitado, o que possibilita as intervenções não farmacológicas mais precoces.13,17 Neste estudo, ao investigar como os familiares cuidadores identificaram a agitação, constatou-se que conhecer e conviver com o idoso possibilitou a identificar de sinais de agitação por meio de comportamentos não habituais do idoso, como balançar a grade da cama, solilóquios, alucinações, hiperatividade, apatia e ímpetos de agressão e, conforme os relatos:
Tem agitação dele ficar balançando muito a cama, aquela grade, mesmo com a mão enfaixada ele balança. Ele fica chamando [...] e tem aquela agitação mais leve que ele fica conversando como se alguém tivesse ali. ” (FC8); “Ela não para! Ela senta na cama, levanta, anda por toda casa, fica em constante movimento. ” (FC10); “Ela fica falando, dependendo da pessoa que chega aqui em casa, ela levanta e vai direto para agredir.” (FC11); “Ela assobia demais! Quando eu vou arrumar as coisas dela, ela fica nervosa, é o tempo inteiro assobiando.” (FC4); “Ela fica calada, senta na cama, parece que fica pensando nas coisas, a gente conversa com ela [...]. Ela pega a lembrar do pessoal que já foi.” (FC3); e “Ela começa a xingar, bate também! Manda ir embora, pede para sair. Fala sozinha, conversa, vê coisas. (FC7).
Os estudos que utilizaram o Inventário Neuropsiquiátrico (INP), instrumento usado para avaliar a relação entre sintomas neuropsiquiátricos, como a agitação e as sobrecargas física e psíquica do cuidador evidenciaram que os cuidadores souberam identificar as características da agitação e que, em geral, os sintomas mais preditivos de sobrecarga e depressão são a agitação, a agressão e a desinibição, seguidos por delírios e distúrbios do humor. 6,18,19,20
Esses comportamentos são mais perturbadores, pelo impacto negativo que causam na conexão emocional e na relação entre cuidador e idoso, sobretudo por exacerbar dificuldades em prover o cuidado, sobretudo, relacionado às atividades de vida diária.20,21) Portanto, saber identificar as características da agitação e das manifestações neuropsiquiátricas em geral, e dos fatores desencadeantes pode ajudar no manejo, ao permitir ao cuidador antever reações comportamentais e psicológicas dos idosos aos estímulos.
Para os familiares entrevistados, uma reação de desconforto ou descontentamento relacionado, sobretudo às carências não atendidas e ao ambiente, também deflagraram a agitação, de acordo com os depoimentos:
Quando eu tiro o fumo dela. Se ela tiver fazendo alguma coisa errada e você chamar a atenção ela também fica brava.” (FC9); “É meu pai, a ausência dele. Ela se sentia mais protegida com ele. Agora está começando a se acostumar comigo. Hoje, se ela não me acha ou não acha meu pai, fica doidinha. ” (FC4); e “Eu acho que é o fato de não dormir bem a noite [...] ou então alguma lembrança do passado. (FC10).
A neurodegeneração, o tipo de demência, a gravidade das deficiências cognitivas e o declínio das habilidades funcionais estão entre as causas comuns a diversos sintomas e, em menor grau, a sobrecarga e a forma do familiar se comunicar também podem contribuir para a agitação. Os quadros de agitação tendem a piorar com a progressão da doença, mas intervenções com base em suprir carências, melhorar a comunicação, utilizar a música e a estimulação sensorial equilibrada têm sido associadas, positivamente à diminuição deles.21
O aparecimento de comportamentos agitados está também relacionado às alterações no ambiente. Os participantes deste estudo citaram os barulhos, as conversas e a grande concentração de pessoas como desencadeantes, como pode ser visto nos relatos:
Se passar gente na rua conversando, ela interpreta de outra maneira e fica desinquieta. Outro dia ela cismou que tinha polícia na rua que eu não podia nem sair.” (FC15); “Tem barulho na rua e às vezes incomoda, ela fica querendo saber o que é.” (FC17); “Quando tem muita gente ela fica agitada! Muita gente aqui a noite, aí é que ela não dorme mesmo. (FC7).
Assim, o ambiente pode fornecer elementos espaciais (falta de acessibilidade e de orientação espacial facilitada), organizacionais (falta de rotinas) e sensoriais (ruídos, luminosidade e cheiros em excesso) que atuam como gatilhos do comportamento agitado. Desse modo, zelar pela organização e tranquilidade do ambiente, estabelecer rotinas e horários, evitar ruídos e trânsito de pessoas e propiciar adequada luminosidade noturna são intervenções que ajudam no manejo da agitação.22
Por fim, os achados destacados nessa categoria evidenciaram que os familiares cuidadores sabiam identificar características e desencadeantes psicossociais dos quadros de agitação, o que pode ser resultado do cuidado contínuo que vêm prestando ao longo dos anos ao familiar com demência. Saber identificar os sinais de agitação é o primeiro passo, pois a partir deles o cuidador irá definir as intervenções mais apropriadas para o manejo. Entretanto, não se pode desconsiderar que cuidar de um idoso com demência, sobretudo, durante quadros de agitação, resulta em desgastes físico e emocional para os cuidadores, podendo provocar estados conflitantes de nervosismo, impotência e tristeza, que são desfavoráveis ao processo de cuidar. Além disso, como são membros da família que possuem ligações afetivas com os idosos, geralmente filhas, esposas ou netas os cuidadores podem experimentar sentimentos negativos ao ver um familiar, que sempre foi independente, perder gradualmente a funcionalidade e conexão com a realidade.23
O manejo da agitação
O estudo demonstrou que conhecer as singularidades do idoso foi essencial para guiar os familiares cuidadores na escolha da melhor intervenção durante a agitação. As habilidades, tanto para identificar as características e desencadeantes como para manejar a agitação, contribuíram para que fossem empregadas intervenções não farmacológicas como a conversa, a companhia, a escuta, a distração (jogos, atividades laborais), o uso de brinquedos, a música/canto atrelados à religiosidade/espiritualidade (R/E), como pode ser percebido nos relatos:
Ah eu tento acalmar, converso muito com ela, sento perto. Quanto mais sair de perto dela mais ela grita!” (FC6); e “Eu chamava ela para conversar, ficar comigo, falava com ela que o papai só foi ali, só foi resolver alguma coisa. (FC4).
Os familiares demonstraram compreender que a doença trouxe mudanças à vida, ao comportamento e à comunicação dos idosos. Diante dessa realidade, foi necessário criar habilidades para lidar com o quadro. Na comunicação, ouvir é uma habilidade que envolve atenção, não apenas às palavras, mas às emoções de excitação, entusiasmo, interesse, raiva ou medo.24 Observar esses detalhes permitiu aos cuidadores intervir por meio de uma comunicação atenta, interessada, acolhedora e efetiva.
A boa capacidade de se comunicar com o idoso forneceu subsídios para o emprego de atividades de distração como inserir o idoso em atividades laborais adequadas à capacidade funcional e utilizar algum recurso lúdico como boneca, de acordo com o depoimento:
Eu tento distrair, chamar para ajudar. Vou fazer comida, limpa a mesa para mim. Chamo para jogar baralho. Uma outra coisa que eu fiz foi dar uma boneca para ela! Distrai bastante, porque ela (boneca) fala. (FC10).
De forma empírica, foi feita uma abordagem terapêutica lúdica, com base no uso de brinquedos. O uso de bonecas, testado com idosos institucionalizados, foi capaz de despertar vivências gratificantes (de maternidade), que melhoraram a autoestima e o bem-estar e contribuíram para a socialização, a felicidade e o controle da agitação.25 Todavia, devem-se ajustar as atividades à fase demencial e evitar infantilização. Isso pode ferir a dignidade, desrespeitar a vivência e sabedoria adquirida no decorrer da vida pelo idoso, além de gerar um déficit da autonomia se a independência for reprimida.26
A utilização da música/canto religioso e da leitura da Bíblia foram intervenções relatadas como efetivas, demonstrando que a R/E suscitava sentimento de alívio e conforto ao idoso:
Eu canto louvor no quarto depois eu saio, aí é quando ele acalma. Depois ele grita: -Vem rezar de novo? Eu canto ou começo ler da palavra (Bíblia). (FC8).
O uso da música como intervenção adjuvante ao tratamento das demências tem sido relatado como benéfico.27,28 As vivências musicais podem beneficiar cuidadores e idosos ao ajudá-los a desfrutar de uma conexão mais profunda entre si. Além disso, quando a experiência musical é vivida em grupo, uma rede de recursos e informações relacionada às necessidades de saúde e bem-estar pode ser tecida entre profissionais e famílias.29
A R/E tem potencial para auxiliar no enfrentamento de fatores estressantes e no alívio de tensões experimentadas ao cuidar dos idosos com demência, o que tem sido uma estratégia de enfrentamento empregada por cuidadores. A R/E tem sido relacionada a efeitos favoráveis à saúde, propiciando melhor qualidade de vida e condição de saúde mental, maior sobrevida e preocupação com a saúde e menor prevalência de doenças em geral.30,31 Além disso, no idoso a R/E pode estar mais acentuada, pois, para muitos, a senilidade representa o momento mais introspectivo, pensativo e avaliativo de toda a vida.30
Assim, os cuidadores demonstraram que, empiricamente, vão criando estratégias de enfrentamento aos desafios diários. Ademais, por meio deste estudo inferiu-se que o cuidado com idosos com demência pareceu ter provocado nos cuidadores o desenvolvimento de habilidades relacionais inter e intra-humanas, tornando-os mais capazes e adaptados para lidar com as oscilações de comportamento e humor. Dessa forma, vivenciar o cuidado no cotidiano pôde também propiciar a expansão das potencialidades individuais de ser humano e gerar sentimentos de satisfação por estar fazendo o bem a um ente querido e retribuindo o cuidado que receberam dessas pessoas em algum momento da vida.
Este estudo trouxe como ponto forte o fato de se ter investigado o manejo não farmacológico de um sintoma grave e específico que é a agitação, um dos principais responsáveis pelo estresse e desgaste dos cuidadores. O estudo pode contribuir para a área da saúde, da gerontologia e, principalmente, para os profissionais de enfermagem, em termos práticos, fornecendo evidencias úteis para a compreensão e gestão do cuidado ao binômio cuidador-idoso, reforçando o potencial das intervenções não farmacológicas de reduzir o sofrimento causado por comportamentos agitados e até atendimentos de emergência e hospitalizações.
A pesquisa trouxe como limitação o fato de retratar um contexto local. Entretanto, por se tratar de um estudo qualitativo, que se preocupou com significados de um fenômeno humano, que é o cuidado, pode fornecer elementos para auxiliar o profissional de saúde e o de enfermagem na compreensão da experiência de cuidar e ser cuidado dos indivíduos em contextos domésticos.
CONCLUSÕES
O acolhimento pela conversa e escuta, o envolvimento por meio do canto e da música de cunho religioso/espiritual, a leitura da Bíblia, a presença/companhia e a inserção em atividades laborais e jogos foram as intervenções não farmacológicas preponderantes na redução da agitação, dentro do contexto deste estudo. Além disso, pôde-se perceber que a convivência com o idoso resultou na aquisição de experiências e habilidades pelos cuidadores na identificação de sinais de agitação e no desenvolvimento de intervenções não farmacológicas com base em atividades presentes no cotidiano do idoso.
Por fim, em relação às intervenções para o manejo da agitação, concluiu-se que não há uma aplicável a todas as situações. Abordagens personalizadas e adaptadas ao momento e às necessidades do paciente, ajustadas às possibilidades do cuidador e ao contexto familiar e comunitário devem ser consideradas. Além disso, pesquisas futuras acerca da efetividade das intervenções não farmacológicas no manejo da agitação e do impacto na qualidade de vida de idosos e cuidadores poderão ampliar a conhecimento sobre as possibilidades de cuidado no âmbito familiar.