Introdução
Segundo o Instituto Nacional de Câncer, as estimativas para o biênio 2018-2019 apontam a ocorrência de aproximadamente 600 mil casos novos de câncer para cada ano, incluindo os casos de pele não melanoma.1
Os avanços no tratamento oncológico através do diagnóstico precoce e no tratamento das disfunções orgânicas durante a permanência na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) estão relacionados ao aumento da sobrevida de pacientes críticos com câncer. Os ganhos de sobrevida estão diretamente ligados aos tratamentos mais agressivos, que, em contrapartida apresentam maior toxicidade e aumentam a possibilidade de complicações e admissões na UTI. As principais causas de internação em UTI estão relacionadas à toxicidade por quimioterapia ou radioterapia, doença pulmonar metastática, insuficiência cardíaca, imunossupressão, infecção respiratória e sepse.2
Nesse sentido, para atender às necessidades específicas de pacientes oncológicos gravemente enfermos, as UTI surgiram com a possibilidade de atendimento diferenciado, exigindo dos profissionais envolvidos um alto padrão de conhecimento e competência especializada para atuar na área.3
Pela característica clínica de gravidade e índice de mortalidade elevada, as UTI devem possuir, além de recursos humanos com alta qualificação, artefatos terapêuticos de alta tecnologia e estrutura física e materiais adequados para a atenção intensa e contínua com foco na assistência de qualidade.3
Esses aspectos específicos do cuidado intensivo demandam muito das práticas dos enfermeiros. Um estudo que investigou a carga de trabalho em UTI concluiu que as necessidades da assistência do cuidado intensivo estão diretamente relacionadas com a carga de trabalho de enfermagem, indicando a necessidade de estratégias que assegurem o melhor uso de recursos humanos, o correto dimensionamento da equipe, a qualidade da assistência e a segurança do paciente.4
Tendo em vista o cenário oncológico, a problemática pode ser ainda maior, devido às especificidades desses pacientes pelo tipo de tratamento a que são submetidos e complicações orgânicas decorrentes do próprio processo fisiopatológico.5
Entre os instrumentos que possibilitam a avaliação da carga de trabalho de enfermagem, o Nursing Activities Score (NAS) é uma das ferramentas mais importantes na atualidade pela cobertura de 81,0 % das atividades de enfermagem requeridas pelos pacientes, e que pode auxiliar no melhor dimensionamento de profissionais de enfermagem em Unidade de Terapia Intensiva.6
Esse instrumento apresenta 7 domínios: atividades básicas, suporte ventilatório, cardiovascular, renal, neurológico, metabólico e intervenções específicas, totalizando 23 itens com pesos que variam de 1,2 a 32 pontos. Os itens 1, 4, 6, 7 e 8 são compostos de subitens diferenciados de acordo com o tempo despendido em cada atividade, que por sua vez, são mutuamente excludentes.7
Outro aspecto importante a ser considerado na avaliação do paciente crítico refere-se aos índices prognósticos utilizados para quantificar a gravidade da doença e avaliar o prognóstico, auxiliando na tomada de decisões no que se refere às intervenções terapêuticas. O custo elevado dos cuidados prestados em UTI, o maior risco de morte e o desejo de comparar diferentes serviços através da performance da UTI levaram ao desenvolvimento de sistemas prognósticos específicos para a UTI.8
A utilização do NAS (APÊNDICE A) permite correlacionar a carga de trabalho de enfermagem com índices de avaliação prognóstica na UTI e auxiliar no desenvolvimento do processo de trabalho dos enfermeiros para o planejamento e avaliação da assistência. Estudo que aplicou o NAS demonstrou que quanto maior a gravidade do paciente, maior a carga de trabalho da equipe de enfermagem.9
Por meio de uma linguagem uniforme, esses escores permitem estabelecer a gravidade da doença de pacientes internados em UTI, estabelecer um padrão de evolução de pacientes semelhantes submetidos a tratamentos diversos, além de estimar a sobrevida, o tempo de internação e a utilização de recursos materiais e humanos, possibilitando avaliar o desempenho da unidade crítica.10
Outras variáveis também podem estar associadas à carga de trabalho de enfermagem em UTI. Somado à escassa produção de estudos desenvolvidos com o NAS no cenário oncológico para mensurar carga de trabalho/tempo de assistência, esta pesquisa justifica sua importância em produzir e divulgar resultados valiosos no cuidado intensivo oncológico.
Sendo assim, o estudo apresenta como objetivo analisar a associação entre as variáveis clínicas e demográficas dos pacientes com a carga de trabalho de enfermagem em uma Unidade de Terapia Intensiva oncológica.
Métodos
Trata-se de uma coorte prospectiva realizada no Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva - Unidade I. O instituto é um órgão auxiliar do Ministério da Saúde no desenvolvimento e coordenação das ações integradas para a prevenção e o controle do câncer no Brasil.
O cenário específico da coleta de dados foi a Unidade de Terapia Intensiva de adultos composta por 10 (dez) leitos para o atendimento de complicações clínicas ou cirúrgicas. O estudo foi realizado no período de 22 de setembro a 22 de dezembro de 2016.
Foram incluídos todos os pacientes admitidos na UTI com diagnóstico de câncer, independentemente do tipo e local, de ambos os sexos e com idade superior ou igual a 18 anos que permaneceram internados por um tempo mínimo de 24 horas possibilitando a aplicação do NAS. As readmissões foram excluídas.
Variáveis
A variável dependente do estudo foi a carga de trabalho, medida através do NAS. As variáveis independentes foram: sexo, idade, comorbidades - através do Índice de comorbidade de Charlson (ICC), grau de funcionalidade - através do Karnofsky Performance Status (KPS), diagnóstico oncológico, procedência, tempo de permanência, condição de saída e tipo de tratamento.
Os dados foram coletados através dos prontuários eletrônicos dos pacientes e armazenados em formato de banco de dados em planilhas do programa Excel® 2007 e processados através do software estatístico SAS versão 9.1.3.
Com relação aos dados para o preenchimento do NAS, estes foram obtidos através do sistema informatizado, visto que a coleta é realizada diariamente pelos enfermeiros da UTI desde 2008. Os profissionais foram devidamente treinados para a coleta do NAS desde a sua implementação.
A análise dos dados foi realizada por meio de estatística descritiva dos dados, tal que para as variáveis quantitativas obteve-se média, mediana, desvio padrão, mínimo e máximo e para as variáveis qualitativas obteve-se frequência e porcentagem.
Posteriormente o teste de normalidade dos dados (Shapiro Wilk) indicou a posterior aplicação de teste estatístico não paramétrico para as variáveis quantitativas. A associação das variáveis qualitativas com o NAS foi testada por meio do teste de Kruskal-Wallis.
A análise de associação das variáveis quantitativas com o NAS foi realizada por meio do modelo de regressão múltipla.
Para todos os testes estatísticos utilizou-se do valor de p = 0,05 de significância e intervalo de confiança de 95 %.
O presente estudo foi encaminhado ao Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem da Universidade Federal Fluminense (Parecer nº 1.287.755/2016) e do Instituto Nacional do Câncer José Alencar Gomes da Silva (Parecer nº 1.504.415/2016) e realizado segundo os padrões da Resolução 466/2012, que regulamenta a pesquisa envolvendo seres humanos no país.11
Resultados
A casuística foi composta por 55 pacientes admitidos na UTI. Foram realizadas um total de 750 medidas do NAS.
Variáveis | Categorias | N | % |
---|---|---|---|
Sexo | Masculino | 27 | 49,09 |
Feminino | 28 | 50,91 | |
Procedência | Centro Cirúrgico | 08 | 14,55 |
Emergência | 13 | 23,64 | |
Enfermaria | 18 | 32,73 | |
Outra unidade | 01 | 1,82 | |
Unidade de pós-operatório | 15 | 27,27 | |
Tratamento | Paliativo | 08 | 14,55 |
Não paliativo | 47 | 85,45 | |
Condição de saída | Sobrevivente | 32 | 58,18 |
Não sobrevivente | 19 | 34,55 | |
Internado | 04 | 7,27 |
Os dados mostram proporção semelhante entre pacientes do sexo masculino (49,09 %) e feminino (50,91 %), sendo a maioria encaminhada pelas enfermarias/unidades de internação (32,73 %). Observa-se o predomínio de pacientes com neoplasias abdominais (29,09 %), seguidos por 18,18 % de pacientes com câncer neurológico e 14,55 % da oncologia clínica.
Com relação ao tratamento adotado observa-se predomínio de 85,45 % de pacientes não paliativos e 14,55 % paliativos e a mortalidade geral foi de 34,55 %. Dentre os pacientes sob tratamento paliativo, 57,14 % receberam alta da unidade.
Variável | Média | Desvio-padrão | Mediana | Mínimo | Máximo |
---|---|---|---|---|---|
Idade (anos) | 55,10 | 16,78 | 58 | 18 | 80 |
Permanência (dias) | 13,63 | 11,51 | 10 | 02 | 53 |
ICC (pontos) | 3,95 | 2,93 | 03 | 02 | 14 |
KPS (%) | 27,00 | 7,00 | 30 | 20 | 60 |
A tabela 2 mostra que a variação de idade foi acentuada, chamando a atenção para a idade máxima de 80 anos. A média de permanência foi de 13,63 dias, entretanto, o tempo máximo de 53 dias chama atenção. No geral os pacientes não apresentaram ICC elevado, o que se traduz em poucas comorbidades além do diagnóstico oncológico. A capacidade funcional foi baixa através da avaliação do KPS (27 %).
A carga de trabalho, descrita na tabela 3, evidenciou média de 79,04 %. Sendo que a maior carga de trabalho está relacionada aos pacientes que evoluíram a óbito (126,64 %).
Variável NAS | Média (dp*) | Desvio-padrão | Tempo (horas) | Mínimo | Máximo |
---|---|---|---|---|---|
Geral | 79,04 | 14,83 | 18,96 | 47,3 | 128,9 |
Admissão* | 93,57 | 15,11 | 22,45 | 52,6 | 127,5 |
Saída alta** | 74,19 | 11,54 | 17,80 | 52,6 | 95,8 |
Saída óbito** | 126,64 | 17,62 | 30,39 | 88,4 | 151,6 |
*NAS no primeiro dia de internação; **NAS no último dia de internação
Os pacientes sobreviventes apresentaram média NAS de 72,98 %, apresentando uma diferença estatisticamente significativa (p = 0,0001) com relação aos pacientes não sobreviventes, que apresentaram média 90,52 %.
A seguir encontram-se os testes de associação realizados para todas as variáveis do estudo.
De acordo com a tabela 4 apenas as variáveis KPS e condição de saída apresentaram associação significativa com a carga de trabalho de enfermagem (ambas, p = 0,0001). As demais variáveis não apresentaram associação com a carga de trabalho neste estudo.
Variável | Estatística do teste | |
---|---|---|
KPS | -4,70 | 0,0001* |
ICC | -0,58 | 0,5628* |
Idade | -0,93 | 0,3565* |
Tempo de permanência | -0,63 | 0,5889* |
Diagnóstico oncológico | 10,39 | 0,3191** |
Condição de saída | 22,22 | 0,0001** |
Tipo de tratamento | 1,85 | 0,1736** |
Sexo | 0,22 | 0,64** |
Procedência | 1,89 | 0,76** |
*Análise de regressão múltipla; **Teste de Kruskal-Wallis
Discussão
Este estudo analisou o perfil de 55 pacientes admitidos em uma UTI oncológica e não houve predomínio com relação ao sexo dos pacientes.
Outro resultado importante encontrado diz respeito ao tipo de tratamento realizado durante a permanência na UTI, havendo duas possibilidades de tratamento adotado, curativo ou paliativo. Esta parcela de aproximadamente 15 % de pacientes em cuidados paliativos internada na UTI pode gerar impacto na assistência ao paciente. Dentre os pacientes em cuidados paliativos internados na UTI 57,14 % obtiveram alta, sugerindo a dissociação entre os conceitos de cuidado paliativo e terminalidade.
A mortalidade bruta geral na UTI durante o estudo foi de 34,55 %. Um estudo retrospectivo realizado na Turquia em UTI clínica e cirúrgica geral com n = 417 pacientes apontou uma mortalidade bruta de 39,8 % nos pacientes com pneumonia associada à ventilação mecânica. O que sugere o fato de que pacientes oncológicos não apresentam mortalidade significativamente superior quando comparados a pacientes internados em UTIs de especialidades diferentes.12
A média de idade encontrada foi de 55,1 anos, com variação de 18 a 80 anos. O resultado se aproxima da média de idade encontrada em um estudo realizado em uma UTI cirúrgica que avaliou a carga de trabalho de enfermagem em pós-operatório de cirurgia cardíaca e encontrou média 61 anos.13
O tempo de permanência médio foi de 13,63 dias, variando entre 2 e 53 dias. Superior a um estudo realizado em UTI neurológica com objetivo de mensurar a carga de trabalho que apresentou tempo de permanência médio de 2 dias.14
De acordo com ICC, a maioria dos pacientes (76,36 %) apresenta score entre 2 e 5 pontos. Apenas 5,46 % dos pacientes apresentou índice superior a 10 pontos. A média elevada do ICC de 3,95, neste estudo, relaciona-se aos pacientes que apresentam doença metastática e síndrome da imunodeficiência adquirida, superior a um estudo realizado em outra UTI brasileira que avaliou a morbidade e mortalidade de pacientes obesos em UTI clínica e cirúrgica apresentando ICC médio de 3,0 pontos.15
Com relação ao KPS, a média encontrada de 27 % demonstra o grau de dependência dos pacientes internados na UTI. Houve variação de 20 a 60 %, entretanto 92,73 % dos pacientes apresentavam KPS igual ou inferior a 30 %.
Um estudo, desenvolvido em uma UTI cirúrgica neurológica, que avaliou a eficácia e o uso da pontuação da escala de coma de Glasgow pelo enfermeiro no acompanhamento e avaliação de pacientes admitidos na UTI apontou uma média de KPS de 63,16 %, demonstrando uma grande disparidade com os achados do presente estudo.16
Estudo que avaliou a carga de trabalho em pacientes oncológicos sob cuidados paliativos apresentou o KPS como variável associada com o escore NAS, demonstrando que quanto menor o KPS maior a carga de trabalho.17
Através do conhecimento do perfil dos pacientes atendidos na UTI oncológica foi possível constatar a alta carga de trabalho de enfermagem na unidade (79,04 %), que corresponde a 18 horas e 57 minutos de assistência a cada paciente em 24 horas. De acordo com a resolução 543/2017 do Conselho Federal de Enfermagem são necessárias 18 horas de enfermagem por cliente em 24 horas de assistência em cuidados intensivos. O que sugere que os pacientes avaliados no estudo demandam carga de trabalho superior ao estipulado pela resolução citada.18
Um estudo brasileiro desenvolvido em uma UTI com leitos de especialidades gerais e cardiológicas possibilitou identificar a carga de trabalho de enfermagem com escore médio diário do NAS de 85,6 %.19
Outro estudo de coorte prospectiva, realizado em UTI geral, com o objetivo de correlacionar a gravidade do paciente com a carga de trabalho da equipe de enfermagem e compará-los entre três subgrupos de pacientes: cardiológicos, neurológicos e clinico cirúrgicos gerais encontrou média NAS de 62,97 % para os pacientes neurológicos, 58,88 % para pacientes cardiológicos e 67,94 % para pacientes gerais.20
A elevada carga de trabalho está relacionada provavelmente com a causa de sua admissão na UTI. Como já visto a maior carga de trabalho de pacientes provenientes das enfermarias do hospital sugere alguma intercorrência clínica grave que necessita ser revertida. Dessa forma as intervenções podem ser mais intensas logo no primeiro dia de internação. Lembrando que as causas principais para admissão foram sepse/choque séptico (31,25 %) e insuficiência respiratória (25 %), causas que necessitam de intervenção imediata.
Com relação à condição de saída houve diferença estatisticamente significativa na carga de trabalho (p < 0,001), onde os pacientes sobreviventes apresentaram NAS médio de 72,98 %, representando uma demanda de cuidado de 17 horas e 30 minutos, já os não sobreviventes tiveram média de 90,52 %, descrevendo uma demanda de 21 horas e 43 minutos, ou seja, os paciente sobreviventes apresentaram evolução com melhora clínica e diminuição das demandas ao longo da internação, apesar do tipo de tratamento adotado não demonstrar associação com a carga de trabalho de sobreviventes e não sobreviventes.
Em conclusão, os resultados reforçam a importância de investigar a caracterização do perfil dos usuários atendidos para gerar subsídios e estratégias que visem o melhor preparo da equipe para lidar com pacientes oncológicos em UTI. Também esclarece as peculiaridades da clientela oncológica quando se compara resultados com UTIs de outras especialidades.
Com relação às limitações do estudo, o recorte de 90 dias de coleta de dados com amostra de pacientes pode não refletir a realidade do serviço, assim como a utilização de um único cenário. Sendo o cenário um centro de alta complexidade, torna-se difícil a comparação com demais cenários onde a carga de trabalho foi previamente mensurada. Com relação ao número de pacientes incluídos podemos dizer que o estudo não tem poder de generalização.
Pesquisas futuras poderão incluir diferentes perspectivas de investigação para ampliar a discussão relativa ao paciente crítico oncológico, visto que o perfil dos pacientes internados durante o período do estudo desmistifica ou, no mínimo, deixa lacunas a serem esclarecidas no que diz respeito à assistência prestada em unidades de terapia intensiva para pacientes que se encontram em cuidados paliativos, sendo assim uma clientela que, possivelmente, poderá exigir um olhar diferenciado no cuidado e tratamento prestado.