Introdução
Desde o século XVII, as sociedades ocidentais têm privilegiado a forma de conhecimento chamada de ciência moderna. Essa nova forma de saber, defendeu a ruptura com o passado, propondo uma revolução científica e, desde então, tornou-se o centro da produção do conhecimento. Para manter essa centralidade, a ciência moderna passou a propor não apenas a compreensão do mundo, mas também a transformação. Entretanto, numa tentativa de tornar-se imune, ela afasta-se das vivências de mundo e, consequentemente, suprime, inviabiliza e desperdiça saberes diversos, como o saber popular e o senso comum.1,2 Sendo assim, o predomínio da ciência sobre o senso comum é decorrente de uma construção histórica, na qual houve a busca por definir a ciência como o conhecimento mais fidedigno em função dos meios de verificação que ela utiliza.3
O modelo médico-hegemônico, que institui a maioria das práticas de saúde, tem por base o saber científico. Entretanto, nos últimos anos, as ações de cunho científico estão sendo questionadas e aumenta a divergência com fatos e condutas que anteriormente eram tidas confiáveis, como por exemplo as imunizações. Contudo, uma das lacunas atuais do conhecimento está na diferenciação da postura negacionista da ciência e os saberes populares. Além disso, poucos estudam abordam a complementariedade dos saberes científicos e populares.
A visita domiciliar é uma prática de potências, na qual o profissional de saúde identifica as demandas das famílias in loco, permitindo a definição de condutas mais coerentes com a realidade dos usuários. Ainda, por ser realizada na proteção do lar, proporciona liberdade no diálogo e a exposição de saberes diversos. Entretanto, também se apresenta como um local de impotências; afinal, nem sempre o usuário possui autonomia para participar e relatar seus conhecimentos.
Por não possuir grau de cientificidade reconhecido, o saber popular é negado por muitos profissionais de saúde e assim, o espaço de escuta e de troca é reduzido. Quando tal posicionamento ocorre na visita domiciliar, o usuário pode sentir-se intimidado a dialogar e expressar os saberes populares, impedindo que o enfermeiro conheça os mecanismos intrínsecos que fazem as práticas serem corretas para a população.
A relevância deste estudo pauta-se na necessidade de desenvolver práticas que reconheçam as experiências e os conhecimentos populares, ressaltando que os saberes não devem ser hierarquizados, mas sim compartilhados.1 Com isso, o profissional de saúde tem a possibilidade de reorientar o seu olhar técnico, estabelecer diálogos possíveis entre diferentes formas de conhecimento e estabelecer um processo de mútuo questionamento.
Neste sentido, o estudo em questão tem como objetivo analisar os saberes científicos e populares de enfermeiros e usuários na visita domiciliar da Estratégia Saúde da Família.
Métodos
Estudo descritivo de abordagem qualitativa, que utilizou como referencial teórico e metodológico a hermenêutica-dialética, a qual visa compreender as práticas sociais e suas contradições, entendendo a fala como resultado de um processo social e de conhecimento.3,4
O cenário do estudo foram seis Unidades Básicas de Saúde (UBS), da cidade do Rio de Janeiro-Brasil. Em 2015, as UBS elegidas no estudo possuíam 29 equipes. O critério de inclusão dos enfermeiros foi atuar na equipe de uma das unidades selecionadas há mais de três meses e os critérios de inclusão dos usuários foram ter idade maior que 18 anos e receber visita domiciliar do enfermeiro de uma das unidades selecionadas há mais de três meses. Os critérios de exclusão dos enfermeiros foram estar de férias ou de licença no período da coleta de dados, não concordar em participar da pesquisa e não concordar em assinar o termo de consentimento livre e esclarecido; e os critérios de exclusão dos usuários foram não concordar em participar da pesquisa e não concordar em assinar o termo de consentimento livre e esclarecido. Dos 29 enfermeiros atuantes nas UBS selecionadas, 4 foram excluídos após aplicação dos critérios de exclusão, totalizando na participação de 25 enfermeiros. Em relação aos usuários, foi empregado o fechamento amostral por saturação,5 resultando na participação de 18 usuários, sendo que nenhum foi excluído após aplicação dos critérios de exclusão.
Nas observações realizadas nas visitas domiciliares dos enfermeiros, também se usou o fechamento amostral por saturação,5 uma vez que são realizadas diversas visitas domiciliares no cenário da ESF, o que dificultava a definição de um quantitativo preliminar. Ao final, foram acompanhados 16 enfermeiros em 38 visitas domiciliares. A seleção dos usuários foi realizada pelo enfermeiro da equipe de modo aleatório, assim como as observações.
A coleta de dados, realizada em 2015, utilizou como ferramentas a entrevista semiestruturada e a observação simples com enfermeiros e usuários. As entrevistas com os enfermeiros foram realizadas na UBS e as com os usuários foram obtidas no domicílio, no momento em que era realizada a observação da visita domiciliar. As entrevistas foram gravadas em equipamento de áudio e, posteriormente, transcritas para o editor de textos word. Já as observações simples foram registradas por escrito em anotações de campo. Para análise dos dados foi utilizada a técnica de análise hermenêutica-dialética.3
Para preservar o anonimato, os participantes enfermeiros foram identificados com a letra “E” e os usuários com a letra “U”, seguida de um número de identificação. Esta pesquisa, que segue as determinações éticas de pesquisa, foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, através do parecer n° 1.119.466 e CAAE n° 44501415.0.0000.5282. Também foi aprovada pelo CEP da Prefeitura do Rio de Janeiro, mediante parecer n° 1.155.379 e CAAE n° 44501415.0.3001.527, ambos no ano de 2015.
Resultados
Inicialmente, constatou-se que os enfermeiros utilizam saber científico na visita domiciliar, inclusive referem que usam saber científico em todas as práticas que desenvolvem na ESF, de acordo com a fala que se segue: [Uso saber científico] o tempo todo, por exemplo como eu estava fazendo hoje na visita [domiciliar], a questão hormonal, do estresse, do uso do anticoncepcional, dá para usar de tudo um pouco do que se aprende na graduação (E14).
Parte dos enfermeiros identificam nos usuários a utilização de saberes científicos nas questões que envolvem saúde, conforme aponta um dos participantes: alguns [usuários] posso dizer que apresentam saber científico, alguns gostam de pesquisar na internet, então às vezes eles chegam aqui com o diagnóstico deles pronto, dizem: porque eu pesquisei, porque eu li, porque estava escrito. Aí a gente orienta uma coisa e outra (E9). Embora, por vezes, os enfermeiros aleguem que a técnica ou o conhecimento não seja totalmente de acordo com o previsto pela ciência, os usuários buscam aproximação com o saber científico.
Por intermédio das entrevistas com os usuários e das observações às visitas domiciliares, identificou-se o emprego de saberes científicos por parte desses participantes. Exemplos disso podem ser percebidos quando eles relatam sobre cuidados pessoais de higiene com seu próprio corpo ou com o de familiares, princípios de contaminação de feridas e controle da alimentação. Entretanto, constatou-se que a percepção dos enfermeiros relatada anteriormente se faz presente, pois existem momentos nos quais o saber científico do usuário se apresenta fragmentado.
Um dos enfermeiros refere não observar saber científico nos usuários, apenas percebe a reprodução deste tipo de conhecimento advindo dos próprios profissionais de saúde ou da mídia. Além disso, constatou-se que embora a enfermeira apresente novos saberes ao usuário, auxiliando-o nos cuidados e no tratamento da saúde, ela não se preocupa em justificar cientificamente as condutas, o que fortalece no usuário a reprodução de um saber que ele não compreende a sua função.
Foram identificados, ainda, relatos nos quais os enfermeiros citam alguns usuários como desprovidos de conhecimento, tal como: tenho uma área que as pessoas têm uma condição financeira boa, são formados, tem conhecimento, eles conversam com você normalmente usando termos e tem outra população, que é precária, eles não têm conhecimento nenhum (E4).
Grande parte dos usuários não expressa seus saberes ao enfermeiro durante a visita domiciliar, pois presumem não saber nada ou consideram seu conhecimento corriqueiro e não importante de ser compartilhado, principalmente, no que se refere aos saberes populares. Os relatos demonstram essa constatação: nunca falei [dos meus conhecimentos] e nunca nem falei para ela [enfermeira] que tomo chá (U3). [...] não sei grandes coisas, mas se me perguntarem algo, talvez eu até possa responder ou não (U13).
A investigação permitiu constatar que alguns enfermeiros não utilizam saberes populares durante a visita domiciliar, em oposição ao resultado apresentado na investigação para saber científico. Não concordo com o conhecimento popular, isso aí era antigamente, hoje em dia têm coisas em estudo que não foram comprovados, eu não entro nesse parâmetro. Ah fiz um chazinho de guaco, vai que ele pega a erva diferente e me traga mais problema? Não vou orientar ele a fazer chá e pegar na rua uma folha (E4).
Em contrapartida, houve relatos de enfermeiros que afirmam utilizar o saber popular nas práticas de saúde realizadas na visita domiciliar, conforme indica o depoimento a seguir: oriento sobre a questão de fazer o chá, usar os fitoterápicos, e até porque, com as hortas comunitárias que existem nas unidades, os usuários também trazem as ervas deles, aí eu acabo vendo e aprendendo o manejo de outras ervas, então acabo utilizando essa prática no dia a dia (E6). A orientação ao uso de fitoterápicos e de plantas medicinais por meio de chás foi o saber popular mais citado pelos enfermeiros.
Da mesma forma, o uso de plantas medicinais através do chá foi a prática popular mais citada pelos usuários. Alguns fazem uso do chá como calmante, principalmente os derivados da camomila e da erva-cidreira, revelando o chá como um recurso terapêutico para esta população.
Outro saber popular, utilizado pelos enfermeiros nas visitas domiciliares, é a orientação de consumo de alimentos para controle de certos sintomas e a organização de hortas comunitárias para fonte de alimentos e plantas e como meio de lazer para os usuários. O consumo de alimentos como tratamento também é uma prática dos usuários. Além disso, alguns usuários usam plantas e alimentos na produção de soluções tópicas para tratamento de feridas.
Identificou-se que o enfermeiro utiliza a experiência de vida para realizar orientações durante a visita domiciliar. Ele remete-se a acontecimentos e vivências anteriores, como a educação dos filhos e o convívio com familiares, que podem auxiliar na definição da melhor conduta e que, também, podem servir de exemplo para o usuário naquele momento. Já teve vez de eu usar uma experiência própria, porque eu fiz e deu certo. No caso, paciente com verruga normal de dedo, se usar casca de banana todo dia, a verruga cai, eu realmente fiz e também caiu (...) (E13). Igualmente, os usuários utilizam a experiência de vida nos cuidados próprios de sua saúde ou nos cuidados destinados a familiares. Sempre digo, a gente chegar a meio século de vida, no meu caso dez anos a mais que meio século, e não ter aprendido nada, não tirar proveito de nada que a gente passou na vida é burrice (U6)
Ao analisar a articulação de saberes científicos e populares, nas visitas domiciliares realizadas pelos enfermeiros, apurou-se que, de modo geral, eles respeitam o saber popular dos usuários, mas não o aceitam como modo de cuidado à saúde. Porém, os enfermeiros, frequentemente, acatam o uso da prática decorrente do saber popular, como o chá, em associação com o tratamento baseado no saber científico, como os fármacos industrializados, numa tentativa de garantir a adoção do saber científico e manter o vínculo com o usuário. O depoimento a seguir manifesta esse resultado: vou mostrar a ele o científico, que de fato é verdade, mas eu não vou de qualquer forma tirar a crença dele, isso é natural (E22).
Alguns enfermeiros desmistificam o saber popular apresentado pelo usuário e orientam ao uso do saber científico em detrimento do popular, uma vez que consideram este inadequado. Grande parte destes profissionais alega não realizar a articulação dos saberes devido aos riscos potenciais à saúde do usuário. Por mais que alguns enfermeiros busquem caminhar para um processo de aceitação dos saberes populares, eles se deparam com o dilema da ética em saúde, que os fazem intervir sobre situações que coloquem o ser humano em perigo. Tais constatações podem ser identificadas no seguinte relato: a gente tenta permitir algumas coisas e orientar o que pode ocorrer com aquilo ali. Hoje eu já não vejo mais uma criança chegar aqui com uma moeda [no umbigo], a gente teve que intensificar [as orientações], porque eles vinham com tudo, era moeda, faixa, que a avó ensinou (E10).
No entanto, a pesquisa revela experiências exitosas na articulação dos saberes científicos e populares. Para isso, as estratégias utilizadas são incorporar na prática do enfermeiro o saber popular adquirido com usuário, articular a experiência de vida com o saber científico, escutar e entender o saber popular e complementar o saber popular do usuário com o saber científico.
Discussão
O saber científico, apresentado pelo usuário, que por ora parece incompleto, é, na verdade, o seu autoconhecimento científico e social.1 Assim como o pesquisador utiliza, inevitavelmente, em suas avaliações, a bagagem da experiência de vida, o usuário possui um saber popular mediado pela ciência, num movimento de circularidade de saberes.
A ciência pós-moderna, proposta para superar as barreiras da ciência moderna, prevê um conhecimento compreensivo, o qual una as pessoas em torno de um objeto a ser estudado.1 Essa união acarreta percepções e contribuições diferentes sobre um objeto, pois cada sujeito auxilia, com seus saberes, tanto científicos quanto populares. Nota-se que, nessa perspectiva, existe a possibilidade dos saberes do enfermeiro e do usuário se integrarem, rompendo com a percepção de incompletude do saber científico do usuário.
O profissional que considera o usuário incapaz de entender uma explicação científica sobre o processo de saúde-doença está cometendo uma violência opressiva. O enfermeiro, com este posicionamento, transfere o conhecimento, sem estimular a reflexão e o empoderamento do usuário sobre seu corpo. Por ser um espaço de educação em saúde, a visita domiciliar pode estimular a emancipação, a mobilização e a autonomia do usuário.6 Posto isto, o enfermeiro ao esclarecer sobre o processo de saúde-doença, apropria o usuário de um saber capaz de gerar participação, uma vez que o conhecimento é o meio para a ação.
Além disso, o fato de alguns enfermeiros considerarem os usuários desprovidos de conhecimento, remete, inexoravelmente, ao pensamento histórico em que o educador detém o saber transmitido aos educandos, mentes vazias a espera de conteúdo. Contudo, o usuário possui seu saber próprio, que pode ser tanto científico quanto popular. Sendo assim, por mais que o usuário não tenha tido oportunidade de adquirir formalmente conhecimentos científicos, ele sempre possuirá conhecimentos advindos das suas experiências. É preciso que o profissional compreenda que o conhecimento é intrínseco ao ser humano. Assim, ele avançará para uma educação emancipadora, na qual os conhecimentos poderão ser construídos de modo participativo e coletivo.7,8 Sob outra perspectiva, acredita-se que esta percepção do enfermeiro esteja se projetando no usuário, que também não reconhece em si conhecimento ou reconhece um conhecimento limitado.
Observa-se que o usuário está aprisionado ao medo imposto pela ciência, a intimidação de que qualquer aspecto não científico é perigoso. Esta intimidação tem fundamento no pensamento abissal, que separa o mundo por meio de linhas imaginárias, entre o Norte e o Sul. “Deste lado da linha”, que representa o Norte, encontra-se a ciência moderna, com seus saberes considerados verdades incontestáveis. Já os saberes produzidos no Sul, isto é, “do outro lado da linha”, são invisíveis, ilegítimos, irresponsáveis e perigosos. Instala-se, com isso, um conflito que impede o diálogo entre as diferentes formas de saber.9
No nível singular da visita domiciliar, o pensamento abissal é representado pela sensação de inferioridade e de insegurança do usuário em falar e utilizar seus saberes, justamente em um espaço no qual ele poderia sentir-se confortável para exercer sua autonomia. Constata-se que a linha imaginária é facilmente percebida na visita domiciliar, ficando nítidas as posições opostas em que se encontram os saberes dos enfermeiros e dos usuários.9
Neste sentido, o enfermeiro, predominantemente, adota o saber científico em detrimento ao popular na visita domiciliar. Eles sentem a necessidade ‒ ou até a obrigação ‒ de orientarem o uso de práticas comprovadas cientificamente, por considerarem estas mais seguras e atualizadas. A supressão do saber popular, que acontece ao longo dos últimos séculos, é ocasionada pelo enraizamento da ciência moderna. A dominação epistemológica não permite aos enfermeiros pensarem além do científico e visualizarem a existência de outros saberes.
Entretanto, os fitoterápicos e as plantas medicinais são saberes populares adotados tanto por enfermeiros quanto por usuários na prática da visita domiciliar. O aumento de estudos em relação ao potencial profilático e terapêutico dos fitoterápicos e das plantas medicinais firmaram caráter científico à esse saber popular e consequentemente, estimularam o uso pelos profissionais de saúde.10
O saber popular também foi identificado por meio do uso da experiência de vida nas orientações durante a visita domiciliar, indo ao encontro dos resultados de outro estudo que evidenciou a utilização de saberes decorrentes de valores, hábitos, experiências de vida e cultura nas práticas em saúde de enfermeiros.11 Na visita domiciliar, pelo fato do enfermeiro estar próximo do cotidiano das famílias, pode emergir uma identificação do profissional com as experiências vividas por ele em seu próprio domicílio e família, facilitando o emprego deste saber popular.
O fato dos enfermeiros identificarem nos usuários a presença de saberes populares durante a visita domiciliar, mas não os articularem com os saberes científicos, é consequência da dominação epistêmica da ciência sobre o senso comum. Existe uma cultura dominada pelo conhecimento científico, a qual deslegitima a ideia de alternativas globais e invalida a vontade coletiva dos povos lutarem pela valorização desses outros saberes.9
Por outro lado, é visível a profunda crise epistemológica na qual a ciência moderna atravessa clareada pela consciência dos limites desse saber e, consequentemente, maior espaço para discussão do seu papel. Isso permite que saberes suprimidos, como os populares, emerjam e se revelem como importantes.2)
O saber popular oferece uma dimensão de integralidade, complementando as lacunas do saber científico geradas pela fragmentação do conhecimento. Apesar disso, o saber popular, por vezes, envolve crenças que podem ser perigosas para a saúde. Nestas situações, o saber científico assume a posição de protagonismo e modifica concepções errôneas sobre o cuidado em saúde. As diversas formas de conhecimento precisam dialogar entre si, para que ocorra uma introdução de saberes nos hiatos existentes.1
A dificuldade em articular os saberes científicos e populares está atrelada ao fato da pluralidade de conhecimentos não ser discutida durante a formação dos enfermeiros, resultando em profissionais que desconhecem o saber popular. Assim como os processos de educação permanente e educação em saúde para a população pouco abordam a existência de saberes diversos, consequentemente, os enfermeiros e usuários não refletem sobre a articulação desses saberes.
Estudo realizado na ESF do Estado de Minas Gerais constatou que os usuários atribuem baixos escores para o atributo de orientação comunitária, indicando que o controle social não está incorporado nas ações da ESF.12 A ausência de participação dos usuários nas decisões que envolvem as práticas de saúde pode representar mais uma barreira para o estabelecimento da articulação de saberes.12-13
Por fim, as experiências exitosas em articular o saber científico com o popular apontam uma atitude contra-hegemônica dos enfermeiros. Eles vão de encontro à dominação epistemológica que perdura desde o período colonial, no qual as relações de saber-poder extremamente desiguais produziram a supressão de formas de conhecimento próprias dos povos e/ou nações colonizadas.9
Conclui-se que o saber científico é preponderante na visita domiciliar do enfermeiro. Contudo, as experiências de articulação de saberes são resistências à dominação epistemológica do saber científico sobre o popular. Elas mostram que é possível um posicionamento diferente do enfermeiro na visita domiciliar, que reconhece a incompletude do saber científico e articula variadas formas de saber em busca de respostas individualizadas e resolutivas.
Destaca-se que os saberes científicos e populares não são mutuamente exclusivos; pelo contrário, eles estão em um processo continuum, no qual um saber complementa o outro. De acordo com a situação e as relações colocadas, o saber pode se aproximar mais do polo científico ou do polo popularmente construído; contudo, a circularidade sempre estará presente.
A dominação epistêmica do saber científico sobre o popular afasta usuários e enfermeiros, uma vez que não há espaço para questionamentos e acordos. Chegou o momento dos enfermeiros reconhecerem a existência e a relevância do saber popular e procurarem, por meio do diálogo, aproximar as sabedorias científicas e populares.