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Revista Universidad y Sociedad

versión On-line ISSN 2218-3620

Universidad y Sociedad vol.15 no.3 Cienfuegos mayo.-jun. 2023  Epub 30-Jun-2023

 

Artículo Original

Análise da declaração de budapeste sob a perspectiva do conceito de tecnociência solidária

Análisis de la declaración de budapest desde la perspectiva del concepto de tecnociencia solidaria

Analysis of the budapest declaration from the perspective of the concept of technoscience in solidarity

0000-0003-3637-068XMarco Antonio Baleeiro Alves1  *  , 0000-0002-5511-5054Nereyda Emelia Moya Padilla2 

1Universidad de Campinas, Brasil.

2Universidad de Cienfuegos “Carlos Rafael Rodríguez”, Cuba.

RESUMO

Este artigo tem como objetivo apresentar uma discussão, sob a perspectiva do conceito de Tecnociência Solidária, em comparação a visão política-ideológica embutida na Declaração de Budapeste, criada a partir da Conferência Mundial sobre “Ciência para o Século XXI: Um Novo Compromisso”, realizada em Budapeste, Hungria, de 26 de junho a 1º de julho de 1999, sob a iniciativa da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e o Conselho Internacional para Ciência (ICSU). Propõe-se uma análise crítica a respeito da Declaração de Budapeste objetivando-se explicitar os avanços que ela defendeu. Esta discussão utiliza da metodologia bibliográfica de pesquisa para reunir os argumentos necessários para a sua elaboração, tendo como principal contribuição induzir reflexões para elaboração de projetos de reorientação de agendas de ensino pesquisa e extensão das universidades públicas sob o viés de Tecnociência Solidária.

Palavras-Chave: Tecnociência solidária; Declaração de Budapeste; Política cognitiva

RESUMEN

Este articulo tiene como objetivo presentar una discusión, desde la perspectiva del concepto de Tecnociencia Solidaria, en comparación con la visión político-ideológica incrustada en la Declaración de Budapeste, creada a partir de la Conferencia Mundial sobre "Ciencia para el siglo XXI: un nuevo compromiso", celebrada en Budapeste, Hungría, del 26 de junio al 1 de julio de 1999, bajo la iniciativa Naciones Unidas para la Educación, la Ciencia y la Cultura (UNESCO) y el Consejo Internacional para la Ciencia (CIUC). Propone un análisis crítico de la Declaración de Budapeste para explicar los avances que ha defendido. Esta discusión utiliza la metodología de investigación bibliográfica para reunir los argumentos necesarios para su elaboración, teniendo como principal contribución inducir reflexiones para la elaboración de proyectos para la reorientación de agendas docentes de investigación y extensión de universidades públicas bajo la orientación de Tecnociencia Solidaria.

Palabras-clave: Tecnociencia solidaria; Declaración de Budapeste; Política cognitiva

ABSTRACT

This article aims to present a discussion, from the perspective of the concept of Solidarity Technoscience, in comparison to the political-ideological vision embedded in the Budapeste Declaration, created from the World Conference on "Science for the 21st Century: A New Commitment", held in Budapest, Hungary, from June 26 to July 1, 1999, under the initiative United Nations Educational, Science and Culture (UNESCO) and the International Council for Science (ICSU). It proposes a critical analysis of the Budapeste Declaration in order to explain the advances it has advocated. This discussion uses the bibliographic research methodology to gather the necessary arguments for its elaboration, having as main contribution to induce reflections for the elaboration of projects for the reorientation of research teaching agendas and extension of public universities under the orientation of Solidarity Technoscience.

Key words: Solidarity technoscience; Budapeste declaration; Cognitive policy

Introdução

Em critica à compreensão das tecnologias apropriadas, por considerar que, embora estas superavam as idéias da tecnologia como fator essencial, do desenvolvimento de forma linear e determinista, não apagam por completo o olhar de que a mudança social é um produto da mudança técnica, nem tampouco consegue eliminar a idéia de que “o desenvolvimento social se encontra determinado quase inteiramente pelo tipo de tecnologia que uma sociedade inventa, desenvolve, ou que nela é introduzido.” (Dagnino, 2004, 27)

Desde os primeiros anos do século XXI, esse autor já expunha como o conceito de tecnociência solidária se tornaria um novo paradigma para o desenvolvimento das sociedades latino-americanas e especialmente para o Brasil, como disse:

É justamente isto que desejamos apontar neste livro: a proposta de utilização de tecnologias sociais, aplicadas em grande escala, como forma de virar esse jogo histórico. Para isso, a construção de uma Rede de Tecnologia Social pode ser uma jogada que estabelecerá um novo paradigma para o desenvolvimento da sociedade brasileira. (Lassance Jr. 2004, p1 citado em Dagnino, 2004)

O conceito de Tecnociência Solidária foi desenvolvido por Renato Peixoto Dagnino para servir de contraponto ao modelo convencional de tecnociência capitalista, que hoje é hegemônico nas universidades, e cujas origens remontam aos antigos modelos da universidade alemã (humboltiana: conhecimento para a produção), francesa (napoleônica: interesses do Estado), inglesa (pesquisa para o avanço do conhecimento) e o mais recente a estadunidense, cujo conceito definidor é o de “empreendedorismo” (Dagnino, 2015). Em continu proces de analisis conceptual mas adelante el autor nos define a Tenociência Solidária como sendo:

A decorrência cognitiva da ação de um coletivo de produtores sobre um processo de trabalho que, em função de um contexto socioeconômico (que engendra a propriedade coletiva dos meios de produção) e de um acordo social (que legitima o associativismo), os quais ensejam, no ambiente produtivo, um controle (autogestionário) e uma cooperação (de tipo voluntário e participativo), provoca uma modificação no produto gerado cujo ganho material pode ser apropriado segundo a decisão do coletivo (empreendimento solidário) (Dagnino, 2020, p.18).

Este conceito trata a demanda cognitiva (mencionada como decorrência cognitiva) como sendo um elemento ex post ao processo de trabalho cujo controle é dado por um sistema autogestionário. Ele se difere fundamentalmente da Tecnociência Capitalista, que decorre de um processo de trabalho que é reproduzido pela economia convencional, cujo controle é estabelecido pelo regime patronal (heterogestionário) que tem como objetivo central a acumulação do capital e que conduz ao agravamento dos problemas sociais. Este sistema heterogestionário, típico do sistema capitalista começou a ganhar forte impulso a partir do capitalismo industrial, y alcanço gran feraz em el sigo xx. El movimento teórico reconhecido como Estudios de Ciência Tecnologia Sociedade, impulsa la mirada crítica, no obstante el contexto latino-americano impõe uma compreensão partilhar

Em critica à compreensão das tecnologias apropriadas, por considerar que, embora estas superavam as idéias da tecnologia como fator essencial, do desenvolvimento de forma linear e determinista, não apagam por completo o olhar de que a mudança social é um produto da mudança técnica, nem tampouco consegue eliminar a idéia de que “o desenvolvimento social se encontra determinado quase inteiramente pelo tipo de tecnologia que uma sociedade inventa, desenvolve, ou que nela é introduzido.” (Dagnino, 2004, 27)

Desenvolvimento

Em torno da tecnociência

Após o final da Segunda Guerra Mundial, as universidades e institutos de ensino e pesquisa públicos de todo mundo passaram a sofrer fortes influências do contexto econômico derivado da vitória dos países aliados naquele conflito que informava um período de grande prosperidade capitalista baseada no ideal de progresso tecnológico proporcionado em grande medida a partir dos maciços investimentos por parte do Estado no complexo militar-industrial estadunidense. O relatório “Science The Endless Frontier” do então diretor do Escritório de Pesquisa Científica e Desenvolvimento (Office of Scientific Research and Development), Vannevar Bush, foi o ponto de partida para justificar as políticas da Big Science. Este relatório teria como fundamento uma visão positivista de ciência e uma crença na ideia de progresso, que seria impulsionado por um modelo do tipo “ofertista linear de inovação”. (Stokes, 2005; Moreira & Velho, 2008).

De acordo com o documento, acreditava-se que, uma vez implementadas as suas medidas, a economia dos EUA ganharia um impulso em direção ao pleno emprego, “com a criação de produtos novos, melhores e mais baratos” e, para atingir seus objetivos propunha de início, dentre outras medidas, a “liberdade de investigação científica”, com forte estímulo à “pesquisa básica,” e a criação de um conselho constituído por membros das forças armadas dos EUA, cientistas civis com a finalidade de selecionar quais tecnologias poderiam ser direcionadas ao mercado.

Não obstante, este formato “ofertista linear de inovação” e seus desdobramentos cognitivos, que segundo Sarewitz (2017) contribuiu para uma visão de ciência “profundamente arraigada em nossa psique cultural” e que ainda causaria influências, tem sido colocada em debate por vários autores da área de Política Científica e Tecnológica e especialmente por integrantes do PLACTS - Pensamento Latino-Americano em Ciência Tecnologia e Sociedade. Estes pensadores, e em especial o intelectual Renato Peixoto Dagnino, propuseram um novo marco analítico-conceitual, a partir do qual seria possível planejar, e colocar em prática, uma visão voltada às necessidades locais e regionais mais urgentes, especialmente nos países da América Latina e Caribe. Neste sentido, como afirma Dagnino (2018) as políticas de Ciência, Tecnologia, Inovação e Educação (especialmente a educação superior) deveriam ser planejadas como se fossem apenas uma: “política cognitiva” e não de forma fragmentada como ocorre atualmente. Esta é uma das justificativas pelas quais este autor lança, de forma inédita, o termo “Tecnociência solidária”, em Dagnino (2020). Apoiando-se neste raciocínio, observou-se que um certo número de projetos com viés de Tecnociência Solidária já são presentes em muitas das universidades e institutos públicos de pesquisa no Brasil, porém com dificuldades de organização, planejamento, execução e desenvolvimento. Segundo Dagnino (2020), o modelo cognitivo vigente, “maneira específica de como o ator entende a área de política”, precisaria de ser reformulado a partir de um novo marco analítico-conceitual e assim, seria necessário formular um novo projeto de política cognitiva, com a finalidade de analisar a PCT de forma mais adequada às condições periféricas, o que incluiria Educação e Tecnociência.

O Modelo Institucional Ofertista Linear, o neovinculacionsimo, e a atual ênfase à subvenção à P&D empresarial não são capazes de enfrentar a “condição periférica” A agenda de pesquisa e ensino nacional não contempla adequadamente as demandas cognitivas originais embutidas nas necessidades da maioria da população. (Dagnino, 2020, p.165).

Tendo em vista a percepção de que os problemas dos países em desenvolvimento, não tem sido os mesmos dos países avançados, paradoxalmente, há uma certa adaptação às regras externas (países avançados), a que se submete a comunidade científica latino-americana, sendo assim, de acordo com Thomas; et al. (2012) a “legitimação acadêmica” que ocorre dentro das instituições de pesquisa, por meio de “mecanismos de avaliação, métodos de financiamento, hábitos institucionalizados, mecanismos de formação”, são tendências das comunidades científicas latino-americanas com a finalidade da integração internacional. Com isso, via de regra, o pesquisador tem feito a escolha a se adaptar a estas tendências, muito em parte devido a sua necessidade por espaço físico e por reconhecimento. O “currículo vitae, as publicações internacionais, o reconhecimento por pares, inclusive diplomas internacionais” são instrumentos dessa adaptação e funcionariam como documentos de “identificação cultural” ou “títulos de reconhecimento” (Thomas; et al, 2012).

De acordo com Belluzzo (2016) os esforços dos grandes conglomerados econômicos em manter/aumentar a taxa de lucro (seja pelo aumento da mais valia absoluta ou pelo aumento da mais valia relativa) ao longo do tempo, com o apoio direto do Estado, tiveram como consequência o estágio atual de capitalismo financeirizado (improdutivo). Esse processo caracterizou-se por sucessivas metamorfoses do capital afim de manter a superexploração sobre o trabalho vivo, e ampliação da dependência do grande capital (principalmente dos países do centro) sobre o trabalho morto.

Nesse sentido, para que possamos compreender a relação destas contradições internas do sistema com o desenvolvimento científico e tecnológico (sob a perspectiva da Tecnociência Solidária) faz-se necessário considerar que no conceito marxiano de “forças produtivas” deve-se incluir as universidades e os demais institutos de ensino e pesquisa como um de seus constituintes, sob a perspectiva de Istvan Mészáros. Isso nos conduz ao corolário de que estas instituições são endógenas ao sistema capitalista, tendo como consequência o fato de que elas trabalham em favor do seu bom funcionamento.

Aliado a esse ponto de vista, admite-se uma crítica ao determinismo tecnocientífico (aquela visão de que as mudanças tecnocientíficas - descobertas científicas, inovações tecnológicas, e etc - determinam mudanças sociais) e à neutralidade da tecnociência, os quais são encarados pela perspectiva da Tecnociência Solidária, como mitos, resultantes de crenças, valores e interesses do projeto político-ideológico neoliberal, que teve seu auge na década de 1990.

A expressão “tecnociência” se refere a necessidade de incluir em um mesmo conceito a produção de todas as formas de conhecimento válidos (e úteis) para a sociedade, incluindo a inovação, os saberes populares, religiosos, ancestrais e etc. E todos aqueles outros cujo sistema capitalista os segregou para concentrar naqueles que ele julgou mais importantes para acumulação do capital: a ciência, tecnologia e inovação

Quando o conhecimento do trabalhador passou a ser expropriado pelas relações heterogestionárias (e divisão social do trabalho) impostas pelas relações de produção, na medida em que o capitalismo se desenvolveu historicamente, este conhecimento foi sendo transformado em mercadoria e, mais tarde passou a ser oferecido por um modelo ofertista e linear através das instituições de pesquisa que atualmente são orientadas a partir de padrões de referência predominantemente euroamericanos (emulação da PCT dos países ricos).

Assim, a perspectiva deste trabalho entende que, para a democratização radical da pesquisa tecnocientífica seria necessário reorientar as agendas de ensino e pesquisa das universidades e institutos de ensino e pesquisa públicos para um viés de Tecnociência Solidária (Dagnino, 2020), o que certamente contribuirá para que as políticas estejam mais adequadas à realidade social, e necessidades de bens materiais e serviços, especialmente dos mais pobres.

Declaração de Budapeste: Necessidade de câmbios epistémicos

Para fazer alguns comentários sobre a Declaração de Budapeste, nos limitaremos a somente alguns pontos fundamentais que divergem do marco-analítico conceitual da Tecnociência Solidária. O primeiro deles diz respeito ao fato de que a Declaração de Budapeste é uma decorrência cognitiva da Tecnociência Capitalista, uma vez que o seu contexto de surgimento ocorreu na década de 1990, enquanto o conceito da Tecnociência Solidária surge somente no ano de 2019 com a publicação do livro: “Tecnociência Solidária: Um manual estratégico”, de Renato Dagnino.

A Declaração de Budapeste ocorreu no auge do neoliberalismo, sendo resultado deste enquanto norma social mundializada. Não obstante sua instrumentalização tenha sido fomentada pelo conjunto de países do Norte Global (países centrais) representados pela ONU (especialmente UNESCO), ela representou os interesses do processo de internacionalização do capital em curso e ela reflete a luta pelo controle do conhecimento, em uma sociedade que passa cada vez mais a se embasar economicamente no conhecimento. Trata-se do resultado das estratégias de acumulação de capital tendo em vista a transição de uma era cujo principal fator de produção era a máquina para uma outra era mais moderna cujo principal fator de produção passou a ser o conhecimento.

Foi neste contexto histórico que ocorreu em Budapeste, em julho de 1999, a Conferência mundial sobre a ciência para o século xxI: um novo compromisso, realizada com o apoio da United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization (UNESCO) e do International Council for Science (ICSU). Dessa reunião resultaram a Declaração sobre a ciência e o uso do conhecimento científico e a agenda para a ciência - uma base de ação, que serve como diretriz e instrumento de ação para atingir as metas propostas na declaração, entre elas, a necessidade de compartilhar a informação científica e o conhecimento.

A partir deste marco analítico conceitual, pode-se inferir que a Declaração de Budapest trouxe alguns avanços importantes, mas ainda está longe de responder as necessidades da maioria da população, especialmente a mais pobre. À luz do conceito de Tecnociência Solidária este documento apresenta lacunas e por isso evidencia sua natureza timidamente reformista, deixando de induzir as mudanças mais profundas de caráter epistêmico afim de que a produção tecnocientífica esteja influenciada pelo controle autogestionário dos Empreendimentos Econômicos Solidários e menos do controle heterogestionário e da superestrura capitalista (coerção social, política e ideológica).

Outros pontos podem ser considerados até mais importantes na Declaração de Budapeste, que a tornam frágil em sua eficácia, quando analisada sob a perspectiva do conceito de Tecnociência Solidária.

O segundo ponto diz respeito a adesão, por parte daquele documento, ao apartamento entre ciência e tecnologia, pelo qual Renato Dagnino faz a crítica com respeito a limitação que isto provoca ao excluir outras formas de conhecimento como saberes populares diversos, conhecimento tradicional, religioso, xamânico, e etc. Para que o conhecimento tecnocientífico sirva à sociedade é necessário que ele induza o respeito às diversas formas de conhecimento que dela emergem, com vistas a impedir o que Boaventura de Souza Santos, e outros autores chamam de epistemicídio (fazendo alusão a existência de um genocídio de formas diferentes de conhecimento tal como ocorreu com os povos ameríndios colonizados pelos exploradores). Um terceiro ponto é a ênfase na ética sob um ponto de vista salvacionista que a declaração de Budapest apresenta quando afirma por exemplo que:

Los países y los científicos del mundo deben tener conciencia de la necesidad apremiante de utilizar responsablemente el saber de todos los campos de la ciencia para satisfacer las necesidades y aspiraciones del ser humano sin emplearlo de manera incorrecta. (Declaración del Budapeste, 1999, p. 01)

Como se percebe no trecho acima, a Declaração de Budapeste enfatiza a importância da ética por parte dos pesquisadores, sem entretanto lembrar que a ética reproduzida na ciência e na tecnologia segue os princípios e valores da economia convencional. O que esta perspectiva reflete na verdade é uma defesa de “maior acesso ao conhecimento” sem que ele seja popularizado em vias de fato. Na perspectiva do conceito de Tecnociência Solidária o discurso da ética na Tecnociência Capitalista é inoperante e muitas vezes serve para encobrir interesses e valores da competição, da ambição desmedida, do consumo exacerbado que servem aos interesses exclusivos das classes dominantes, em especial das grandes corporações transnacionais predominantemente nos países ricos. Este aspecto pode ser evidenciado no artigo de Sarmento & Souza (2005):

Este documento apresenta considerações feitas pelos participantes, ressaltando como a revolução da informação e da comunicação oferecem meios mais eficientes de intercâmbio do conhecimento científico. Menciona a importância do amplo acesso à informação financiada com dinheiro público para a pesquisa científica e a educação, e salienta a importância do compromisso de todos os cientistas em manterem altos padrões éticos, de integridade científica e de controle de qualidade, além de compartilharem os seus conhecimentos com o público. Na agenda, no tópico “ciência e políticas” identifica-se a necessidade de todos os países protegerem os direitos da propriedade intelectual e reconhecerem que o acesso à informação é essencial para o progresso científico (Sarmento & Souza, 2005, p. 2).

O quarto ponto está na visão triunfalista da ciência e da tecnologia, a partir da supervalorização dos benefícios que esta apresenta, sem no entanto tratar de forma mais profunda os problemas que elas acarretam, utilizando-se de um discurso unilateral. Apesar de reconhecer que “faz falta um debate democrático vigoroso e bem baseado sobre a produ-ção e a aplicação do saber científico” (Declaração de Budapest, 1999, p. 01). Este documento ressalta a necessidade de melhorar a confiança que a população deve ter em relação a ciência, o que por si só relfete uma grande contradição. Para Dagnino a partir do momento em que a Tecnociência passar a servir os interesses e valores dos coletivos de trabalhadores(as) esta confiança seria plenamente resgatada, pois a desconfiança possui causas multifatoriais, porém ela ocorre principalmente por causa da inoperância da ética da Tecnociência Capitalista sobre as necessidades reais da maioria da população, especialmente a mais pobre e que, com o dinheiro de seus impostos a sustenta.

Decorre desta desta análise, uma decorrência historicamente comprovada, de que a visão de ciência e tecnologia que se construiu a partir do pós Segunda Guerra Mundial, ainda encontra forte presença na Declaração de Budapeste. Apesar das boas intenções de caráter ético que podem conter este documento, o marco analítico-conceitual da Tecnociência Solidária apresenta uma visão que, além de ser capaz de mostrar as fragilidades deste documento, mostra que ele ainda apresenta uma perspectiva reacionária a respeito da ciência e da tecnologia. Isto ocorre principalmente porque ele apresenta uma visão de “ciência neutra”, enquanto que a Tecnociência Solidária se opõe a possibilidade de que a tecnociência seja neutra, sob qualquer forma. Enquanto a Declaração de Budapeste apresenta uma visão ainda muito contaminada pelo determinismo tecnológico (sem perceber o falso apartamento entre ciência e tecnologia determinada pelos ditames do capitalismo), a perspectiva da Tecnociência Solidária rejeita a ideia de determinismo tecnocientífico de tal forma que se autodenomina “a plataforma cognitiva de lançamento para a Economia Solidária” de tal sorte que esta poderá ser responsável pela revolução industriosa que se opõe ao ideal de progresso tecnológico que está agenciando obsolescência planejada, deterioração programada, consumismo exacerbado e deletério, degradação ambiental e adoecimento sistêmico e generalizado; e conduzindo a tendências de jobless growth economy e jobloss growth economy cada vez mais insustentáveis.

Discussão e resultados

Algumas considerações sobre as universidades brasileiras

Nesta parte apresenta-se um histórico afim de evidenciar a realidade da formação das universidades públicas brasileiras, que certamente servirá para reflexões sobre a realidade de instituições de ensino e pesquisa latinoamericanas, uma vez que o contexto de colonização e condição periférica são basicamente os mesmos para todos estes países. Nesse sentido, o presente texto defende que para melhorar o acesso ao conhecimento tecnocientífico, pelo menos no Brasil, serão necessárias mudanças estruturais muito mais profundas que qualquer Declaração conjunta entre países possa provocar.

No caso do Brasil, por exemplo, no início do século xx foram criadas as primeiras instituições de ensino efêmeras que passaram a ser chamadas de universidades, algumas delas privadas: Escola Universitária Livre de Manaus foi criada em 1909 sendo que existiu até 1926. A universidade de São Paulo (1911 até 1917), a universidade do Paraná (criada em 1912 e extinta em 1915). Das universidades públicas se destacaram a Universidade do Rio de Janeiro (primeira instituição superior com status de universidade e de caráter duradouro), criada em 1920, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro e a Universidade de Minas Gerais criada em 1927, hoje Universidade Federal de Minas Gerais (Cunha, 2000; Tuffani, 2009; de Faria; de Souza Walger, 2020)

A gênese dessas universidades esteve ligada a formação de uma base intelectual do Renascimento no Século xIv e do iluminismo no Século XVIII. Os princípios filosóficos destes movimentos ecoaram no Brasil com fortes influências do cientificismo europeu. Na transição do feudalismo para o capitalismo, os intelectuais europeus sentindo a necessidade de se desvencilhar da tutela das universidades medievais, desencadearam o desenvolvimento do pensamento cientificista, que serviu como grupo de pressão política para a criação das universidades da “ciência moderna”. No Brasil, tal mentalidade foi difundida e fomentada pelo movimento positivista. Entretanto, naquela época o cientificismo teve como resultado o caráter profissionalizante das universidades, cujo ideário nutria uma espécie de fé religiosa na ciência (PROTA, 1987).

Entre 1935 e 1945 o ensino nas universidades era ainda predominantemente profissionalizante em detrimento da formação científica, como afirma Teixeira (1964):

[…] a Universidade, entre nós, nunca foi propriamente humanística nem de pesquisa científica, mas simplesmente profissional, à maneira de algumas universidades mais antigas. […] Na realidade, nem influência inglesa, nem influência americana, mas francesa e certos lampejos germânicos são as forças mais visíveis (Teixeira, 1964, p. 43).

O que Anísio Teixeira informa nesse trecho é a tendência profissionalizante e descolada da realidade social do país, que as primeiras universidades brasileiras tiveram, uma vez que, o modelo de universidade francesa era voltado a profissionalização e formação de Escolas isoladas, enquanto o modelo germânico reivindicava uma formação mais científica e humanista.

Contudo, as primeiras universidades, mesmo o modelo mais progressista germânico humboldtiano surgido em 1810, não apresentavam preocupações em responder aos interesses da sociedade. As elites apoiavam sua concepção a partir de seus interesses e valores e o ensino era voltado para a formação de pessoas e para a produção de conhecimento, desconectado das necessidades sociais e econômicas da sociedade (Soares de Oliveira & Alves da Silva, 2021).

Estes modelos apresentam em comum a associação da universidade com a lógica da empresa privada, sendo aquele que mais se associa a este ideal é o modelo hegemônico da “universidade empreendedora” e o que mais se distancia da empresa privada é o modelo da universidade cívica que mesmo assim percebe a empresa privada como peça importante para o seu desenvolvimento. Outro ponto a se observar é que são modelos provenientes dos países do Norte, que foram construídos de acordo com a realidade social, econômica e política dos países ditos avançados.

O Quadro 1 a seguir mostra os modelos teóricos predominantes nas universidades do mundo atualmente:

Quadro 1 - Modelos de universidade predominantes no mundo 

Nome Fundadores Modelo teórico Países de origem
Universidade empreendedora (Clark 1998; Etzkowitz (1983; Etzkowitz, 2016) Universidade como ator social voltada para o desenvolvimento econômico e com autonomia financeira. Ideal de empreendedorismo e transferência de tecnologia. EUA
Universidade Cívica (Boyer, 1996; Goddard et al., 2016), Universidade engajada com os diversos atores da sociedade e voltada para a resolução de problemas específicos. Ideal de colaboração com as diversas instâncias da sociedade. Reino Unido e Irlanda
Universidade responsável (Sørensen et al., 2019), A universidade deveria se comportar como uma empresa responsável perante a sociedade, capaz de gerar recursos econômicos para ela. Ideia de prestação de contas com a sociedade. Suécia, Finlândia, Dinamarca e Noruega
New Flagship University Douglass, 2016a). Apresenta características de todos os modelos anteriores Ideal de um modelo teórico mais abrangente e com riqueza de detalhes. Inspirado no modelo vigente das universidades consideradas mais importantes dos EUA atualmente: universidades líderes. EUA

Fonte: Soares De Oliveira Colus & Alves da Silva 2021; com modificações do autor.

As origens históricas destes modelos de universidade remontam aquela tendência na profissionalização do ensino que é compartilhado até hoje nas universidades públicas brasileiras. Disso deriva o caráter verticalizante e ofertista do ensino e da pesquisa. Esta é uma das importantes evidências que pode ajudar a justificar a necessidade de reorientação das agendas de ensino, pesquisa e extensão das universidades e institutos públicos de pesquisa. Quanto às origens da extensão universitária não diferem muito quanto aos aspectos euroamericanos e verticalizantes em que ela se originou, o surgimento da extensão universitária remonta a Inglaterra do século XIX sob a forma do Lifelong Education (educação continuada), voltada para adultos que não tiveram condições de estudar (Gadotti, 2017).

Serrano (2013) apresenta uma análise crítica e histórica dos conceitos de extensão praticados nas primeiras universidades até os dias atuais, tendo como base o pensamento de Paulo Freire. Um marco importante do extensionismo universitário ocorre na Argentina, na Universidade de Córdoba, quando os estudantes assumem o controle, sob a influência dos jesuítas (pela sua ação de ajuda aos pobres), do movimento cooperativista liderado por Robert Owen no século XIX, e em função do descontentamento dos povos das Américas contra o jugo das metrópoles européias. Estas influências desencadeiam a ideia de universidades populares que se espalha na América Latina. No Brasil uma das universidades a seguir este modelo é a de Manaus em 1909. Contudo, apesar do caráter filantrópico e voluntarista de certas universidades, Paulo Freire ressalta a necessidade de que elas deveriam quebrar a “verticalidade coisificadora”. Em outras palavras se trata do problema da hierarquização antidialógica.

A situação crítica da região latinoamericana e especialmente do Brasil foi referida por Dagnino (2022) ao destacar que:

Por terem mantido a universidade como um enclave num território em que a classe proprietária não necessita incorporar conhecimento novo à produção, e por explorarem agendas afastadas dos interesses e valores da classe trabalhadora, aqueles professores e pesquisadores não foram capazes de concentrar-se naquilo que aqui promoveria o verdadeiro desenvolvimento - justo e igualitário - que desejavam. Não souberam decodificar como demanda cognitiva (tecnocientífica) embutida nas necessidades materiais da parcela da sociedade que os mantêm. (104)

Conclusões

De acordo com o levantamento bibliográfico realizado neste artigo, a realidade de dependência (e relação assimétrica) latinoamericana, e especialmente do Brasil, em relação aos países ricos, em que se perpetua a relação de exportação de bens de baixa intensidade tecnológica versus importação de bens de alta intensidade tecnológica (associada a superexploração do trabalho assalariado), tem exigido um tratamento diferenciado sobre as questões ligadas às políticas de ciência e tecnologia, sendo um desafio para o campo de Estudos Sociais em Ciência, Tecnologia e Inovação (ESCTI). Dessa forma, o conceito de Tecnociência Solidária, além de ser útil para explicar a realidade latinoamericana e sua condição periférica, no que se refere a forma como as políticas de ciência, tecnologia e inovação são planejadas, implementadas e executadas, também oferece um marco analítico-conceitual para o desenvolvimento de políticas mais inclusivas, tanto sob a perspectiva do desenvolvimento industrial (através da Economia Solidária) como pela via do desenvolvimento de tecnologias inclusivas (tecnologias sociais, tecnociência e etc).

A perspectiva eurocêntrica ou norte-americana deste campo de ESCTI parece não ser o mais adequado para responder às questões latentes quando se trata de planejar o desenvolvimento social e econômico, com vistas a autonomia tecnocientífica da América Latina e Caribe. Assim, as políticas voltadas para o incentivo a Economia Solidária e Tecnociência Solidária, apesar de serem conceitos complexos, e em fase de amadureciemento parecem fornecer um contraponto a Economia Capitalista e Tecnociência Capitalista, com vistas a enfrentar a condição periférica.

Referências

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Recebido: 02 de Abril de 2023; Aceito: 07 de Junho de 2023

*Autor para correspondencia E-mail: m264890@dac.unicamp.br

Los autores declaran no tener conflictos de intereses.

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