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Universidad de La Habana

versión On-line ISSN 0253-9276

UH  no.282 La Habana jul.-dic. 2016

 

ARTÍCULO ORIGINAL

 

Duas propostas oitocentistas de tradução literária para a praelocutio de Geórgicas III, de Virgílio

 

Two Nineteenth Century Proposals of Literary Translation for the Praelocutio of Virgil Georgics III

 

 

Matheus Trevizam

Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais -Belo Horizonte-MG/Brasil.

 

 

 


RESUMO

Neste artigo, desejamos discutir os diferentes procedimentos empregados por Manuel Odorico Mendes (1799-1864) e pelo Visconde António Feliciano de Castilho (1800-1875) para traduzir poeticamente -em versos inclusive- as Geórgicas de Virgílio. Especificamente, a passagem escolhida para nossos comentários corresponde ao começo do prólogo do livro III (v. 1-48) desse poema, com especial atenção aos nove primeiros versos. Assim, apesar de terem buscado alternativas para tornar estas traduções em produtos literários poeticamente trabalhados, parece-nos que Odorico foi mais bem sucedido nessa tarefa, pois a experiência de lê-lo recria com mais "fidelidade" o que se passa quando tentamos acessar Virgílio em latim.

PALAVRAS-CHAVE: recriação, tradução de poesia.


ABSTRACT

In this paper we intend to discuss the different procedures used by Manuel Odorico Mendes (1799-1864) and by Viscount António Feliciano de Castilho (1800-1875) to translate the Georgics of Virgil into a poem, even making use of versification. Particularly, the excerpt that we have chosen for our remarks corresponds to the beginnings of the prologue to book III (v. 1-48) of this poem, with special attention to the nine first lines. Thus, despite both authors have sought for alternatives to turn these translations into literary products poetically treated, it seems that Odorico was more successful in this task, since the experience of reading his work recreates more accurately the ambiance found when we access Virgil in Latin.

KEYWORDS: recreation, poetry translation.


 

 

Introdução: partes e características do prólogo de Geórgicas III, de Virgílio

Neste artigo, intentamos cotejar os diferentes procedimentos tradutórios adotados por Manuel Odorico Mendes (1799-1864)(1) e pelo Visconde António Feliciano de Castilho (1800-1875)(2) para traduzirem literariamente as Geórgicas de Virgílio. Além disso, desejamos refletir brevemente sobre a questão da "tradução literária", nos termos de Henriques Britto (2012, pp. 119-153), em relação a seus modos tradutórios. Em específico, o trecho escolhido para as análises, pensando no original que tomamos para referência, corresponde ao começo do prólogo do livro III do "poema da terra" desse autor romano (v. 1-48), em que ele, em certo sentido, delineia o âmbito temático da parte das Geórgicas que se inicia, faz a preterição -ou, ao menos, o "adiamento"- de outros assuntos, cujo escopo foge ao universo estrito da pecuária, e, de novo,(3) reforça seus compromissos com o patronato de Otaviano Augusto e, sobretudo, de Caio Mecenas.

Dessa maneira, podemos dizer que o referido prólogo abrange três subdivisões essenciais, correspondentes aos trechos respectivamente compreendidos entre v. 1-9, v. 10-39 e v. 40-48. No primeiro deles, com efeito, Virgílio (e, por conseguinte, seus tradutores lusófonos do século XIX) cuida de rejeitar certos tópicos como temas poéticos muito gastos/pouco adaptados ao contexto de um poema didático de assunto rústico, ou, sobretudo, atinente às criações de animais domésticos, se nos focalizamos apenas no livro III das Geórgicas. Tais temas seriam, por exemplo, o "duro Euristeu" (Eurysthea durum - v. 4),(4) os "altares de Busíris abominável" (inlaudati... Busiridis aras -v. 5) e o "jovem Hylas" (Hylas puer -v. 6), os quais, além de trabalhados à exaustão por outros autores, não se quadram tão bem ao contexto em jogo quanto "Pales" (Pales -v. 1) e o "memorável pastor do Anfriso" (memorande.../ pastor ab Amphryso -v. 1-2); a título de um sumário esclarecimento, Pales era uma antiga deusa itálica associada à proteção dos rebanhos, enquanto a denominação "pastor do Anfriso" evoca as aventuras de Apolo como boieiro do rei Admeto de Feras, na Tessália.

Na sequência, entre v. 10-39, Virgílio dá curso a uma alegoria com raízes na arte de Píndaro, como informam L. P. Wilkinson (2008, p. 182 et seq.) (Ol. VI, 1-5) e outros críticos. Ela se identifica, basicamente, com apresentar o processo de feitura poética sob a imagem da construção de um edifício/templo: assim, sempre se mascaram comentários de ordem metapoética sob a forma da apresentação de um objeto "arquitetônico". No trecho virgiliano citado, tal objeto seria um templo marmóreo que o poeta "planeja" construir às margens
do Míncio, rio de sua Mântua natal.

Depois, então, de enfatizar seus desejos de empreender algo "novo" e que o faça ganhar renome entre os homens (v. 10-15), Virgílio adentra a abordagem efetiva de aspectos atinentes ao templo: ele conterá, a saber, "César" (Otaviano Augusto) ao meio (Caesar -v. 16), receberá cortejos sacrificiais (v. 22-23), terá "britânicos tecidos" (intexti... Britanni -v. 25) no pano de boca de seu espaço cênico e uma porta de marfim e ouro onde se esculpirão motivos bélicos, inclusive o "Nilo agitado com a guerra e correndo volumoso" (undantem bello magnumque fluentem/ Nilum -v. 28-29), as "cidades dominadas da Ásia" (urbes Asiae domitas -v. 30) e os "dois troféus tomados, pelas tropas, de apartados inimigos, com os povos de ambos os mares, duas vezes derrotados" (duo rapta manu diuerso ex hoste tropaea/ bisque triumphatas utroque ab litore gentis -v. 32-33). Quanto à rica estatuária desse mesmo espaço, podemos citar o " pai Tros" (Trosque parens -v. 36) e o "fundador Cíntio de Troia" (Troiae Cynthius auctor -v. 36), personagens sempre alusivas, em um santuário de homenagem ao próprio Otaviano, às lendárias raízes dardânias de Roma e da própria linhagem do líder.

Enfim, entre v. 40-48, deixando para o futuro tais projetos de feitura do "templo", Virgílio ainda se focaliza no momento atual de sua carreira poética, pois diz pretender seguir "às matas e às clareiras intocadas das Dríades" (Dryadum siluas saltusque.../ intactos - v. 40) e que o "Citero, os cães taigetos e Epidauro domadora de cavalos o chamam com enorme clamor" (uocat ingenti clamore Cithaeron/ Taugetique canes domitrixque Epidaurus equorum -v. 43-44). Ora, tais matas e clareiras nos remetem a uma zona natural de desenvolvimento da atividade econômica do pastoreio; por outro lado, o Citero era um monte da Beócia associável a animais e caçadas, os cães taigetos -ou da Lacônia- eram reputados de qualidade no mundo antigo, e a cidade grega de Epidauro tinha fama por seus plantéis de equinos. Ainda, em v. 41, o poeta explica que ater-se por ora, antes de se lançar à empresa épica da feitura de um outro texto em honra de Otaviano Augusto, ao plano expressivo mais humilde dos rebanhos e criações, como as de cavalos e bovinos, corresponde, de algum modo, ao cumprimento de uma "ordem" de Mecenas (tua, Maecenas, haud mollia iussa -"tuas ordens não fáceis, ó Mecenas"), como se a composição das Geórgicas tivesse, no mínimo, sido "sugerida" a si por esse agente cultural de Augusto.

No conjunto se trata esse prólogo, esclarecemos, do mais complexo e longo artefato do tipo encontrado ao longo das quatro Geórgicas, como se depreende não só por seu desdobramento em várias partes, por sua dimensão erudita e, em parte, alegórica, mas ainda pelo fato concreto de que o prólogo do livro I apresenta quarenta e dois versos; o do livro II, oito versos; o do livro IV, enfim, apenas sete versos.

A ideia de "tradução literária" em Paulo Henriques Britto e seus desdobramentos sob o modo das especificidades da "tradução de poesia"

Em A tradução literária (2012), o tradutor e teórico brasileiro Paulo Henriques Britto estabelece alguns critérios que considera aplicáveis a uma boa tradução de obra literária de uma língua natural para outra. Atendo-se sobretudo, de acordo com sua área de formação e interesse, a exemplos condizentes com o corpus das literaturas em inglês, ele observa, assim, que não basta, para bem traduzir "uma narrativa ficcional de [Henry] James", a reprodução do mesmo enredo do original, recriando as mesmas personagens com seus traços pessoais e as peripécias por que passam (Henriques Britto, 2012, p. 120). Em vez disso, mais do que apenas atentar para o lado referencial da escrita desse romancista norte-americano, seria necessário a um tradutor mais capaz de realizar sua tarefa ainda saber, no caso da "transposição" para nosso idioma, "reproduzir em português a mesma sintaxe complexa, com períodos longos, tortuosos, cheios de estruturas subordinadas" (Henriques Britto, 2012, p. 120).

Em outras palavras, a noção de "tradução literária" está vinculada, nesse teórico, também a questões formais, como se dois modos distintos de dizer a "mesma" coisa nem sempre resultassem em produtos tradutórios tão equivalentes, e, quando falamos em Literatura, forma e referentes se unissem em um todo indissociável e imprescindível para a produção dos sentidos, tal como um dia criados por um escritor.(5) Também importa dizer, direcionando-nos para o foco principal de nossas atenções neste artigo, que Henriques Britto entende a (boa) "tradução de poesia" como algo ainda mais exigente no tocante à reprodução aproximada, na língua-meta, dos recursos formais em uso na língua de partida, como se, de acordo com o exemplo já citado, uma tradução de um romance de James alheia aos traços de forma do original continuasse a ser um (mau) romance, mas uma tradução de um poema feita segundo parâmetros semelhantes -sem atentar para os ritmos, as imagens, as sonoridades, a coerência do registro, etc.- sequer pudesse ser um poema (Henriques Britto, 2012, p. 120).(6)

Além disso, atacando as ideias da "intraduzibilidade" da poesia, da natureza absolutamente diferenciada do poeta diante do banal dos seres humanos e até da inviabilidade de avaliar o que seria um bom produto poético-tradutório, Henriques Britto prossegue sobretudo em comentários de que, por corresponder apenas a um artista que maneja bem as palavras -escolhendo-as com cuidado para produzir certos efeitos-, o poeta pode, sim, ser imitado por um tradutor criterioso e, ao mesmo tempo, sensível e hábil na técnica e no manejo do próprio idioma (Henriques Britto, 2012, pp. 121-127).
Na sequência de sua obra, o mesmo crítico retoma ideias que desenvolvera antes em um artigo ("Fidelidade em tradução poética: o caso Donne"), com a intenção prática de explicar por qual motivo entende ter sido certo poema inglês -"Elegie XIX: going to bed"- traduzido com mais sucesso por Augusto de Campos que por Paulo Vizioli. Então, os dois tradutores se serviram de formas metrificadas em português -em atenção a um aspecto do original, que se escrevera em decassílabos-, recorrendo, respectivamente, a versos de dez e doze sílabas.

Entretanto, e apesar de limitado pelo menor espaço da forma métrica eleita, Augusto de Campos teria conseguido, simultaneamente, rimar e conservar os sentidos básicos do original que traduziu, enquanto Vizioli, confrontado com idêntico desafio tradutório, teria optado, depois da "transposição" dos conteúdos para o português, por rimar com o acréscimo ao fim de palavras/expressões que não constavam, em absoluto, do texto de Donne. Assim acabou, na visão de Henriques Britto (2012, p. 127), até por juntar certas ideias inexistentes no original, como se, por exemplo, o eu-lírico estivesse ansioso para deitar-se em uma cama com a mulher a quem fala e, ainda, irritado com ela, por demorar-se em demasia:

To teach thee, I am naked first; why than
What needst thou have more covering then a man.
(original)

Para ensinar-te eu me desnudo antes:
A coberta de um homem te é bastante.
(tradução de Augusto de Campos)

Que esperas? Estou nu... e as horas se consomem.
Mais cobertura tu desejas do que um homem?
(tradução de Paulo Vizioli)

Como vemos pelos dois versos de Donne transcritos e por suas respectivas traduções, "e as horas se consomem" e "que esperas?" são deliberados acréscimos de Vizioli, os quais dão o tom de um apressado mau humor ao que originalmente era um convite apenas picante à mulher, feito pela própria nudez do homem sobre o leito. Ora, tal prolixidade e a ausência do "tom" de galhofa não se encontram na tradução de Campos nem se encontravam em Donne, fazendo Henriques Britto, como dissemos, conceder-lhe a palma da vitória por este esforço tradutório partilhado. Por sinal, explica o crítico brasileiro, a perda de algumas palavras não basta para desviar esse último da essência dos sentidos do poema inglês em jogo, vindo a ser a "experiência estética de lê-lo mais próxima à leitura do original de Donne do que a leitura da tradução de Vizioli" (Henriques Britto, 2012, pp. 129).

Comentário textual sobre os procedimentos tradutórios de Manuel Odorico Mendes e António Feliciano de Castilho, sobretudo ao recriarem em português o início do prólogo de Geórgicas III
Passando, agora, a efetivos comentários não sobre o original virgiliano, mas sobre o que foi feito dele nas mãos de Odorico Mendes e Castilho, de início observamos o caráter bem mais conciso do empreendimento tradutório do primeiro: assim, Virgílio compusera o prólogo de Geórgicas III ao longo da extensão de quarenta e oito versos, com a recorrência a trezentas e oito palavras. Em cobertura à mesma passagem, Odorico também "necessitou" de quarenta e oito versos, tendo-se servido, todavia, de trezentas e vinte e cinco palavras, ou seja, de apenas dezessete a mais que seu "modelo" clássico.

Por sua vez, Castilho recorreu a setenta e seis versos -vinte e oito a mais do que os outros dois escritores a que aqui fazemos menção-, totalizando sua versão do prólogo a quantia de quinhentas e sessenta palavras, ou seja, duzentos e cinquenta e dois termos além daqueles encontrados em Virgílio. Também contribui para a justa ideia, diante do empreendimento tradutório do português, de uma versão um tanto mais "espraiada", quando o cotejamos com Odorico, o fato de ter ele recorrido, para compor, aos versos alexandrinos -de doze sílabas poéticas, então- (Said Ali, 2006, p. 107), enquanto o tradutor brasileiro o fez por meio de decassílabos.

Nesse sentido, ainda causa algum espanto a conhecida concisão odoricana, pois, pensando no latim e no português moderno, falamos, na verdade, em idiomas de natureza bastante distinta. Aludimos de passagem, com esta observação, à natureza de língua sintética do latim, em que a própria existência do mecanismo casual para os substantivos, adjetivos e pronomes -bem como, inclusive, o comum emprego de formas morfologicamente concisas para os verbos na voz passiva do infectum- contribui para minimizar sensivelmente o uso de palavras do tipo das preposições e verbos auxiliares no idioma do Lácio; esse último também não dispõe dos artigos, como sabem seus cultores. Em contrapartida, o português e outras línguas modernas, mesmo as demais neolatinas, como o francês, encaixam-se melhor no grupo dos idiomas analíticos, os quais não primam, exatamente, pela concisão expressiva.

O tradutor brasileiro a que nos referimos, porém, afamado por ter traduzido em versos toda a obra de Virgílio e a de Homero, desde o empreendimento representado pela Eneida brazileira (1847) caracterizou-se por não fazer concessões à prolixidade: assim, um dado bem significativo a esse respeito é que o canto IX desse original latino continha oitocentos e dezoito versos, traduzidos com oitocentos por Odorico; o canto X do mesmo original, novecentos e oito versos, traduzidos com oitocentos e noventa e quatro por Odorico; o canto XI do mesmo original, novecentos e quinze versos, traduzidos com oitocentos e oitenta e seis por Odorico; o canto XII do mesmo original, novecentos e cinquenta e dois versos, traduzidos com novecentos e vinte e seis por Odorico. Ou seja, todos
os quatro livros citados da Eneida Brazileira odoricana chegam a conter até menos versos que seus correspondentes exatos na épica de Virgílio!

Com vistas a um olhar mais próximo para o trabalho tradutório de Castilho e Odorico, no entanto, propomo-nos aqui ao comentário dos nove primeiros versos do prólogo que temos citado. Assim, nele dizia Virgílio, literalmente:

Te quoque, magna Pales, et te memorande, canemus,
pastor ab Amphryso; uos, siluae amnesque Lycaei.
Cetera, quae uacuas tenuissent carmine mentes,
omnia iam uolgata: quis aut Eurysthea durum
aut inlaudati nescit Busiridis aras?
Quoi non dictus Hylas puer et Latonia Delos
Hippodameque umeroque Pelops insignis eburno,
acer equis? Temptanda uia est, qua me quoque possim
tollere humo uictorque uirum uolitare per ora.

A ti também, ó grande Pales, e a ti, ó memorável pastor
do Anfriso, cantaremos, e a vós, ó matas e rios do Liceu.
Todo o resto, que tivesse seduzido mentes vazias com
um poema, já foi vulgarizado: quem não conhece o duro
Euristeu ou os altares de Busíris abominável?
Por quem não foi celebrado o jovem Hilas, Delos
de Latona, Hipodâmia e Pélope, notável pelo ombro de marfim,
fogoso com os cavalos? É preciso buscar um caminho por onde eu possa,
a mim também, erguer do chão e voejar vencedor pela boca dos homens.

Odorico traduz os dois primeiros versos sob a forma de uma "enumeração invertida", em que não faltam os vários itens do canto prometido por Virgílio, mas a referência culta a Apolo se faz primeiro e o longo gerundivo latino de v. 1 -memorande- ressurge sob a forma do conciso "digno".(7) Em Castilho, destaca-se a profusão de vocativos, a livre transformação de memorande no ainda mais longo "egrégias divindades" e o acréscimo de várias nuanças quando se verte o mero siluae ("matas" -v. 2) de Virgílio por "frondosas soledades".(8) Além disso, como se nota pelo emprego do par "divindades"/ "soledades", esse tradutor já se vale, aqui, do recurso rítmico mais evidente de sua proposta tradutória, as rimas, sobretudo porque tal expediente poético não era corrente no período clássico.(9)

Entre v. 3-7, Odorico inicia condensando a mensagem contida em v. 3 (e uma parte de v. 4) do original em uma única linha, de modo mais "econômico" que Virgílio e traduzindo-o antes segundo o espírito que "à letra".(10) Entre v. 4-5, ao iniciar a enumeração dos temas preteridos nas Geórgicas, o tradutor brasileiro se mantém bastante próximo do original, com o emprego, como em Virgílio, de um único qualificativo para cada uma das duas primeiras personagens mencionadas. Contudo, no mesmo verso 5, já se introduz a personagem de Hilas, algo cujo surgimento apenas ocorre, no original romano, em v. 6;(11) também se deve notar que nada há, em Odorico, de semelhante ao termo puer de v. 6, o qual acompanhava o nome de Hila(s) em latim.

Entre v. 6-7, o mesmo tradutor mantém o rol dos assuntos mencionados no modelo e evoca "Latônia Delos", "Hipodame" e "Pélops", contudo restringindo-os apenas até v. 7, sem adentrar v. 8 com o derradeiro atributo de Pélope, como em Virgílio (acer equis -"fogoso com os cavalos"-, v. 8).(12) Ora, note-se que, quanto à primeira dessas evocações, ela corresponde a uma retomada "exata" até da escolha lexical/prosódica do original latino -Latonia Delos-, em manutenção de um procedimento que já víramos em v. 1 desta sua tradução, quando Odorico também dissera "Magna Pales". Trata-se, aqui, de provável tentativa comum de latinizar o português (Vasconcellos, 2001, p. 174), o que esse tradutor obtém, portanto, não só através da contenção sintática e
vocabular...

Por sua vez, Castilho resolveu em termos tradutórios o mesmo intervalo de v. 3-7 em Virgílio escrevendo sete versos: entre a metade do terceiro e o quarto, assim, ele ressalta que o "povo" já se cansou de tantos assuntos a serem preteridos nesta parte das Geórgicas;(13) nesse ponto, notamos que o tradutor português mantém do original, a seu modo, não só a partição do conteúdo entre dois versos, mas ainda certo efeito de enjambement. Depois, entre v. 5-6 o tradutor luso trata de Euristeu e Busíris com sentidos semelhantes aos de Virgílio, mas dedicando, com maior espraiamento, um verso inteiro para cada personagem;(14) A partir de v. 7, em que lhe falta mencionar "Hilas", "Delos a Latônia", "Hipodame" e "Pélope", Castilho necessitou de três versos, parte de um quarto e alguns desdobramentos explicativos para vazar os "mesmos" significados contidos, em Virgílio, entre v. 6-7 (e um pequeno trecho de 8).(15) Veja-se, com efeito, que a mera expressão virgiliana quoi non dictus (v. 7) desdobra-se em um verso inteiro de Castilho -"deixou poeta algum de alçar na lira aônia"-, inclusive com o acréscimo do detalhe supérfluo da "lira aônia".
O que está contido entre v. 8-9 do original latino assim se desdobra nos tradutores brasileiro e português, respectivamente:

Tente eu via por onde alar-me possa,
de boca em boca vencedor voando.

Sigamos outro norte;
tente-se nova estrada, em que eu também consiga
da baixa terra alar-me, e em prêmio da fadiga
ir-me de boca em boca a volitar no mundo

Castilho acrescenta alguns dados, como a própria ideia de seguir "outro norte", elimina outros -veja-se que não há equivalente exato do latim uictor ("vencedor", v. 9) em sua tradução-, e, no todo, não iguala a poética da concisão que caracteriza a versão odoricana das Geórgicas. Com isso, distancia-se sensivelmente do caráter sintético do idioma de Roma Antiga e da própria exatidão virgiliana, fazendo-se bem mais prolixo.

Conclusão sucinta: balanço dos esforços tradutórios de Manuel Odorico Mendes e António Feliciano de Castilho, à luz da ideia de "tradução de poesia", segundo Paulo Henriques Britto

Como observamos antes, as colocações de Henriques Britto (2012) no tocante ao que considera, a partir de suas reflexões e prática de tradutor, serem os mais eficazes procedimentos tradutórios de obras artisticamente compostas em outros idiomas perpassam, sem sombra de dúvida, a importância que ele concede à conjunção entre os resultados relativos aos referentes do texto e a seus aspectos formais. Ou seja, para esse crítico, de nada adiantaria negligenciar a tentativa de recriar algo da forma de certo original traduzido de um idioma para outro, buscando apenas transpor os significados mais abstratos de uma obra ao traduzir, uma vez que, como observou, no poema "a poeticidade do texto muitas vezes depende mais de aspectos formais do que do sentido das palavras" (Henriques Britto, 2012, pp. 122).

Ora, pelo que se viu a respeito dos procedimentos tradutórios de Odorico Mendes e Castilho no item anterior deste artigo, notamos que um e outro buscaram, à sua maneira, atentar para a face marcadamente poética das Geórgicas de Virgílio, por exemplo recorrendo a esquemas métricos bastante consagrados em nosso idioma -versos decassílabos e alexandrinos, a saber- com vistas a dotar os produtos literários obtidos na língua-meta de ritmos regulares, como, em certo sentido, já os havia nos hexâmetros virgilianos.(16) Esses tradutores também se ocuparam de dotar seus trabalhos, nos versos que analisamos mais detidamente há pouco, de outros elementos construtivos em nexo com a poeticidade, recorrendo às imagens míticas, aos epítetos e a jogos de sons, os quais, num extremo, acabam chegando às rimas em Castilho.

Entretanto, a discutida prolixidade desse último tradutor, a qual se reflete materialmente, quando tomamos para referência os nove versos do início de Geórgicas III, mesmo na necessidade do emprego de uma quantia de versos maior do que a do original (treze), acaba por afastá-lo do que seria, de acordo com os parâmetros "avaliativos" de Henriques Britto, uma tradução mais bem sucedida.(17) Por sinal, semelhantemente a Vizioli, na tradução de John Donne que mencionamos, esse tradutor muitas vezes acrescenta expressões "ausentes" em Virgílio, com intentos não só de preencher os longos versos alexandrinos que elege para traduzir, mas ainda de obter, em particular, as rimas. É o que se dá, a propósito, com os dizeres "[egrégias] divindades" e "soledades" em v. 1 e v. 2, respectivamente, as quais não conhecem correspondentes tão precisos no trecho afim de Virgílio, mas se acrescentaram, é óbvio, para rimar. De resto, embora esse último recurso corresponda ao mais audível expediente rítmico da opção tradutória de Castilho, trata-se de algo desconhecido não só de Virgílio, mas de toda a poética latina clássica.(18)

Por sua vez, Odorico, que muitas vezes latiniza a expressão vernácula (Vasconcellos, 2001, p. 174), bem como prefere não introduzir em seu produto tradutório elementos que, definitivamente, não constavam do original, acaba produzindo um texto na língua-meta cujos efeitos, para o leitor, aproximam-se bem mais, nos termos de Henriques Britto, da experiência de contato direto com o próprio Virgílio. Mesmo sob o ponto de vista visual, nota-se, ter ele optado por servir-se de um número de versos idêntico ao de Virgílio -nove em um e outro caso- contribui para corroborar o efeito de continuidade artística a que temos aludido, em menção às suas relações com o maior poeta de Roma Antiga.

Então, a conhecida concisão de seu estilo,(19) decerto capaz de lidar com o desafio de igualar quantitativamente os versos virgilianos mesmo ao compor em uma língua analítica como o português -e em um metro menos extenso que os hexâmetros de Virgílio-,(20) corresponde, talvez, ao maior feito artístico que obteve, contribuindo para oferecer ao público lusófono um vislumbre da exatidão expressiva do vate romano.

 

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

"António Feliciano de Castilho" (s. d.), Projecto Vercial, <http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/castilho.htm> [23-10-2015].

COELHO, FERNANDO e THAÍS FERNANDES (2014): "O modo de traduzir de Odorico Mendes: observações acerca do canto I da "Eneida brasileira"", Belas Infiéis, vol. 3, n.o 2, Brasília, pp. 63-75.

HENRIQUES BRITTO, PAULO (2012): A tradução literária, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro.

MOISÉS, MASSAUD (2011): Dicionário de termos literários, Cultrix, São Paulo.

RÓNAI, PAULO (2012): A tradução vivida, José Olympio, Rio de Janeiro.

SAID ALI, MANUEL (2006): Versificação portuguesa, Edusp, São Paulo.

VASCONCELLOS, PAULO SÉRGIO DE (2001): "Contribuição à reapreciação crítica da "Eneida" de Odorico Mendes", Phaos, vol. 1, Campinas, pp. 171-186.

VIRGÍLIO (1858): Virgílio brazileiro, trad. M. Odorico Mendes, W. Remquet et Cie., Paris.

VIRGÍLIO (1970): Eneida; Geórgicas, trad. M. Odorico Mendes e A. F. de Castilho, W. M. Jackson, Rio de Janeiro/São Paulo/Porto Alegre.

WILKINSON, LANCELOT PATRICK (2008): "Pindar and the Proem to the Third "Georgic"", in Katharina Volk (ed.), Oxford Readings in Classical Studies, Oxford University Press, pp. 182-188.

 

 

 

RECIBIDO: 14/1/2016
ACEPTADO: 28/4/2016

 

 

 

Matheus Trevizam. Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais -Belo Horizonte-MG/Brasil. Correo electrónico: matheustrevizam2000@yahoo.com.br

 

NOTAS ACLARATORIAS

1. "Nascido em São Luiz do Maranhão em 1799, Manuel Odorico Mendes foi poeta, jornalista, político e tradutor. Sua formação intelectual se deu na Europa, mais precisamente em Coimbra, onde fez seus estudos de grego e concluiu os cursos de Filosofia Racional e Moral e Filosofia Natural. Morreu em 1864, quando estava em um trem a caminho de Londres. Embora tenha tido uma carreira de prestígio na política brasileira, chegando a ser indicado para assumir o cargo de regente quando D. Pedro II era menor de idade, talvez a faceta mais famosa de Odorico Mendes seja a de tradutor. Nos últimos dez anos de sua vida, empenhou-se numa árdua tarefa: traduzir toda a obra de dois dos mais importantes autores clássicos: Homero e Virgílio" (Coelho e Fernandes, 2014, pp. 63-75).
2. "António Feliciano de Castilho nasceu em Lisboa no dia 28 de Janeiro de 1800 e faleceu na mesma cidade no dia 18 de Junho de 1875. Aos seis anos, por motivo do sarampo, cegou. Não obstante isso, seguiu estudos regulares, graças ao auxílio de seu irmão Augusto Frederico. Em 1817, matriculou-se na Universidade e em 1826 formou-se em Cânones. A seguir, fixou-se com o irmão em Castanheira do Vouga, perto de Águeda, e aí se conservou uns oito anos, em situação que muito favoreceu o estudo e a produção literária. Esteve na Madeira e nos Açores e visitou o Brasil. Dedicou-se à tradução de obras em latim, francês e inglês. É um dos principais autores do Romantismo em Portugal" ("António Feliciano de Castilho" -s. d.-).
3. O nome de Mecenas é citado como o do dedicatário do poema já no verso 2 do livro I das Geórgicas.
4. Lendário rei que impusera os "Doze trabalhos" a Hércules, sob instigação da deusa Juno.
5. Cf. também juízo de Paulo Rónai sobre a tradução de certo trecho da Eneida -IV, 90-92- de Virgílio por Annibal Caro, tradutor italiano do século xvi (Rónai, 2012, p. 145). Nele, patenteia-se que esse crítico húngaro-brasileiro também valorizou, na prática tradutória, os feitos formais, ao lado da depreensão dos referentes do texto:
Essa versão italiana também famosa, de Annibal Caro, em verso branco, conserva-se um pouco mais próxima do vigor dos versos latinos. Um dos atributos de Juno e um dos sinônimos patológicos da palavra amor escapam à modificação; mas o trecho torna-se pesado com os seus três enjambements, a inversão no quarto verso (com a anteposição do objeto ao verbo) e a expressão 'n cotai guisa, rípio, dessas palavras evidentes que entram no verso para completar-lhe a medida. O trecho lembra demais a pesada gravidade do teatro italiano de Alfieri e de seus contemporâneos.
6. "A principal diferença entre poesia e prosa reside no fato de que na prosa o aspecto semântico tende a predominar -embora os outros componentes da linguagem sejam também importantíssimos na determinação do que entendemos como "estilo" do autor- enquanto no poema, como já observei, todos os aspectos são potencialmente de igual importância, e a poeticidade do texto muitas vezes depende mais de aspectos formais do que do sentido das palavras" (Henriques Britto, 2012, p. 122).
7. "Digno pastor de Anfriso, magna Pales,/ Rios, bosques Liceus, lembrar-vos cumpre" (Manuel Odorico Mendes, in Virgílio -1858- Geórgicas III, 1-2).
8. "Pales! Pastor do Anfriso! Egrégias divindades!/ Ribeiras do Liceu! Frondosas soledades!/ Cantar-vos-ei também" (António Feliciano de Castilho, in Virgílio -1970- Geórgicas III, 1-3).
9. "Em todas essas manifestações é lícito divisar o embrião da rima: a sua gênese estaria nos hinos cristãos dos primeiros séculos" (Moisés, 2011, p. 385).
10. "Longe vulgado assunto e vãos deleites" (Manuel Odorico Mendes, in Virgílio -1858- Geórgicas III, 3).
11. "Quem de Euristeu cruel não sabe, ou de aras/ de Busíris infame? Ou de Hila o caso" (Manuel Odorico Mendes, in Virgílio -1858- Geórgicas III, 4-5).
12. "Latônia Delos, Hipodame, ou Pélops/ de ebúrnea espádua e picador insigne?" (Manuel Odorico Mendes, in Virgílio -1858- Geórgicas III, 6-7).
13. "Doutro qualquer assunto,/ só para ociosos bom, cansou-se o povo há muito" (António Feliciano de Castilho, in Virgílio -1970- Geórgicas III, 3-4).
14. "Quem há que de Euristeu ignore as iras cruas?/ Quem, Busíris nefando, as ímpias aras tuas?" (António Feliciano de Castilho, in Virgílio -1970- Geórgicas III, 5-6).
15. "Deixou poeta algum de alçar na lira aônia/ Hilas, o mancebinho? E Delos a Latônia?/ E Hipodame? E o gentil da ebúrnea espádua, o forte/ Pélope dos corcéis?" (António Feliciano de Castilho, in Virgílio -1970- Geórgicas III, 7-10).
16. Não pretendemos, com isso, apagar as diferenças entre o sistema métrico latino, de base eminentemente vinculada às quantidades silábicas, e aquele(s) em curso na língua portuguesa, cujo foco corresponde ao número de sílabas e à distribuição regular dos acentos. Trata-se, apenas, de ressaltar a opção por modos métricos e rítmicos regrados -não livres, ou mesmo pela prosa!- tanto em Virgílio, quanto em seus tradutores lusófonos a que temos feito menção.
17. "Sob vários aspectos -sentido literal, tamanho dos versos, coerência de registro, entre outros que não vamos poder examinar aqui- a leitura da tradução de Campos resultava numa experiência estética mais próxima à leitura do original de Donne do que a leitura da tradução de Vizioli" (Henriques Britto, 2012, p. 129).
18. Cf. acima nota 9.
19. "Em sua tradução da Ilíada, o próprio Odorico Mendes chama a atenção para o fato de que traduziu os 15.674 versos gregos por 13.116 versos portugueses (cf. Oliveira, 2011)" (Coelho e Fernandes, 2014, p. 66). Veja-se, porém, que as vantagens da concisão odoricana podem por vezes resultar, em contrapartida, na eliminação de traços formais importantes para a feitura dos textos antigos, como a repetição.
20. Esses podem chegar a conter, de acordo com a duração das sílabas das palavras que os compõem, até dezessete unidades rítmicas mínimas, distribuídas por seis pés.

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