INTRODUÇÃO
A úlcera por pressão (UP) é a denominação usada para expressar os processos de injúria tecidual causado pela compressão dos vasos sanguíneos, desde a limitação transitória dos recursos vitais as células até a morte tecidual.1 As causas dessas injúrias são amplamente descritas nas literaturas especializadas na área da saúde.2,3 Apesar das causas da UP compor um conjunto das condições anatomofisiopatológicas e morfofuncionais do corpo somado as peculiaridades ambientais e das superfícies de apoio.2,4 A abordagem científica pode ser objetivamente distinguida por investigações de causas intrínsecas5) e extrínsecas.3
Nas extrínsecas tem aquelas que se ocupam com as superfícies de apoio.6 Muito embora a principal preocupação seja melhorar o processo de envelopamento, a fim de reduzir a pressão nas proeminências ósseas exercida entre o peso do corpo e a superfície de apoio.6 Estes dispositivos, colchões, também precisam evitar o isolamento térmico, permitindo que o calor/vapor corporal seja dissipado no ambiente, ou seja: permitir a manutenção adequada do microclima da pele.
O microclima corresponde a temperatura e umidade da pele. A importância do controle da umidade para prevenir UP é observada nas escalas de predição para vulnerabilidade de UP.7,8 Apesar das escalas de predição não apresentarem, claramente, itens para avaliar a elevação da temperatura da pele, causada pelo isolamento térmico das superfícies de apoio, como vulnerabilidade a formação da UP, a elevação da temperatura da pele, sob pressão, está intimamente relacionada com o aumento da umidade da pele. Contudo, independente da relação calor e umidade, a elevação da temperatura tem reconhecimento científico como fator relacionado ao desenvolvimento de UP.9,10,11 Nesse sentido, justifica-se a relevância do estudo por buscar um dispositivo de repouso que tenha superfície de apoio capaz de proporcionar melhor aeração da pele, como por exemplo a Rede de dormir (Rd).
Registros históricos revelam que a Rd, leito indígena, substituiu com êxito a cama em diversas situações em diferentes momentos históricos, no Brasil e na Europa.12,13 Por muitos anos substituiu a cama nas embarcações das marinhas do Brasil e Francesa. Atualmente a Rd é amplamente conhecida nos continentes americanos, europeu e em alguns países da África e do oriente.13,14,15 E continua sendo usada como cama nas regiões norte e nordeste do Brasil,16) e pontualmente no Estado de Roraima/Brasil, indígenas quando internados nos hospitais repousam em Rd.17 Quanto ao uso da Rd em substituição da cama hospitalar, na área da saúde, não foram encontrados estudos conclusivos de indicação ou contraindicação do seu uso em adultos e ou crianças.14
A Rd também possui forte apelo econômico e estima, haja vista que dispensa o uso da cama e o valor financeiro pode ser até 5 vezes menor que um colchão hospitalar (Ch). As Rd quando bem cuidadas chegam a acompanhar o seu dono por décadas, inclusive durante a internação hospitalar conforme foi observado nos hospitais do Estado de Roraima / Brasil.17
Assim, mediante a popularidade da Rd, seu uso como cama e o baixo custo financeiro, emergiu a questão norteadora do estudo, ou seja: a Rd possui vantagens térmicas em relação ao Ch? Para responder esta questão, o objetivo proposto foi: demonstrar as vantagens térmicas da Rd em relação ao Ch.
Pensar em substituir a cama e os diferentes tipos de colchões por Rd ou usá-la de forma alternada com a cama, para além das fronteiras culturais de uma região, é ousar em perturbar arquétipos, conceitos e pré-conceitos de negação as mudanças, moldados em tempos passados por questões alheias a fundamentação científica.
MÉTODOS
Estudo experimental com seres humanos. Aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa CEP, da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), parecer nº 1292888 de 21 de setembro de 2015. Realizado no laboratório da Universidade Estadual de Roraima (UERR), de outubro 2015 a fevereiro 2016.
A população foi constituída por pessoas adultas, ambos os sexos, que estiveram na UERR no período da coleta dos dados. Não foi possível estimar numericamente o tamanho da população devido ao alto fluxo de pessoas que passam na UERR e a inexistência de estudos que revele o quantitativo de pessoas que utilizam a Rd para repousar e ou dormir. Durante o período da realização dos experimentos o número amostral obtido foi de 40 participantes.
Antes de iniciar os experimentos foi realizado um estudo piloto com amostra de 10 participantes. O estudo piloto teve o objetivo de testar e avaliar a precisão dos instrumentos de coleta dos dados, avaliar o conforto térmico do ambiente, definir a partir da tolerância em decúbito lateral, o tempo de permanência em repouso nas superfícies de apoio.
Para ser incluído na amostra o participante manifestou de forma voluntária o desejo de participar do estudo. Então, foram orientados sobre a pesquisa, inclusive, de que participariam igualmente no grupo controle e experimento, ou seja: seu próprio controle.18 Foram convidados a assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e a Guia de Cessão de Direitos sobre Depoimentos escritos/imagens. Foram excluídos da amostra, aqueles que, no momento da pesquisa, tinham algum tipo de lesão na região trocantérica femural, temperatura cutânea acima de 33,4 ºC,19) e ou diferença térmica superior a 1 ºC,20) entre as regiões trocantéricas.
Materiais: uma Rd em algodão cru, pano com 260 cm de comprimento e 178 cm de largura. Comprimento linear de um punho ao outro 420 cm. Os armadores ficaram 375 cm distantes um do outro e fixados em paredes opostas a 200 cm do chão;21) um Ch densidade D - 28 com selo de garantia do Instituto Nacional de Metrologia Qualidade e Tecnologia (INMETRO).22 Confeccionado em “espuma”, medindo 188cm de comprimento, 88 cm de largura e espessura de 12 cm, forrado em napa azul munida com sistema de respiro. Este tipo de colchão foi selecionado por ser o mais vendido para instituições de saúde no Brasil; uma cama tipo hospitalar cabeceira reta, em aço e estrado de chapa metálica inteira; termo higrômetro Minipa MT-242 com sensor térmico externo; termômetro digital infravermelho com mira laser e uma balança antropométrica.
Fluxograma do experimento: Climatização do laboratório em 24 ºC e umidade relativa do ar oscilando em 46 %. Temperatura da superfície do Ch e Rd na média de 24 ºC com variações menores de 1 ºC. Todos participantes utilizaram camisola padrão do experimento. A seleção da situação controle, experimento e o decúbito lateral para cada aferição da temperatura trocantérica foram realizados por cartas, previamente embaralhadas pelo pesquisador e escolhidas aleatoriamente pelos participantes. O sensor térmico externo do Minipa MT-242 foi fixado na região trocantérica de apoio durante cada repouso. A permanência em repouso foi de uma (1) hora, sendo: 30 minutos para situação controle e 30 minutos para situação experimento. Os valores térmicos foram registrados em intervalos de 5 minutos.
Os dados produzidos foram tabulados na planilha do EXCEL e a análise estatística e produção gráfica foi realizada no Software estatístico R. Na análise estatística foi utilizado o teste de Shapiro-Wilk para avaliar se os dados possuem distribuição normal ou distribuição não normal. Os dados produzidos formaram resultados de dois grupos de variáveis dependentes. Assim, o teste de hipótese, confirmatório selecionado foi de Wilkoxon para p<0,05.
RESULTADOS
O estudo piloto demonstrou que os dez participantes após trinta minutos, imóveis, em repouso de decúbito lateral, seja ele direito ou esquerdo, referiram desejo de mudar de decúbito por desconforto anatômico. Portanto, o tempo de repouso para o experimento em cada decúbito lateral ficou definido em trinta minutos.
Para aferição da temperatura da região trocantérica, o decúbito de repouso na primeira superfície de apoio foi por sorteio, na segunda superfície de apoio foi obrigatório o decúbito lateral oposto ao primeiro, para evitar interferência dos valores térmicos obtidos no primeiro experimento. A síntese do processo aleatório está descrita na tabela.
Na tabela é observado que o quantitativo dos decúbitos laterais são percentualmente inversos entre o Ch e a Rd. Esta ocorrência é porque a partir do sorteio do decúbito lateral utilizado em primeiro lugar, obrigatoriamente no segundo lugar de repouso o decúbito lateral foi oposto do primeiro.
Todos os valores térmicos de controle que antecederam os experimentos, todos foram aferidos com o mesmo termômetro digital infravermelho com mira a laser. Os respectivos valores das regiões trocantéricas, ambiente e superfícies de apoio da Rd e Ch estão no quadro.
Durante os experimentos as temperaturas de interface nas superfícies de apoio foram registradas a cada 5 minutos. Veja os resultados no figura.
No figura é possível observar que ocorre sobreposição das médias somente nos primeiros 5 minutos. O que permite afirmar que a diferença térmica entre o Ch e a Rd ocorre de forma significativa a partir dos primeiros 5 minutos de repouso. Contudo, para estes dois grupos de variáveis dependentes foi realizado o teste de Shapiro Wilk que revelou distribuição não normal. Assim o teste de hipótese, confirmatório, selecionado foi de Wilkoxon que demonstrou diferença significativa nos valores térmicos entre as superfícies de apoio para p<0,05.
DISCUSSÃO
Antes de iniciar a discussão dos resultados é importante pontuar algumas considerações sobre o microclima da pele e suas implicações na vulnerabilidade para formação da UP. A fim de trazermos para dentro do discurso desse estudo a importância do uso da Rd para prevenir a UP a partir do microclima da pele.
O microclima consiste na umidade e temperatura da pele. A importância do controle dessa umidade é observada nas escalas de riscos para predição da UP.7,8 Quanto a temperatura, em 2013 foi publicado um estudo de revisão que apontou a relação do aumento da temperatura da pele com a formação da UP. Mas, chamou a atenção que o quantitativo dos estudos envolvendo o microclima da pele era insipiente no senário das causas de vulnerabilidade e formação da UP.7
Muito embora um dos objetivos do estudo seja comparar a aeração da Rd com o Ch, acreditamos na importância de trazer resultados de estudos que buscam estabelecer parâmetros térmicos da pele como indicadores de vulnerabilidade à formação da UP. Para fortalecer a hipótese que a vantagem térmica da Rd em relação ao Ch é um fator de prevenção a UP.
Durante o repouso na Rd a temperatura da pele sob carga de apoio estabilizou na média com elevação de 1 ºC após os primeiros 20 minutos de experimento. No Ch, ao término dos 30 minutos, a temperatura continuou em elevação, na média acima dos 3 ºC. Esses resultados, apoiados pela inferência estatística, demonstraram que a Rd em relação ao Ch apresenta grande vantagem térmica para manutenção de um dos fatores do microclima da pele.
Segundo o estudo de Sae-Sia23 a pele fica de 1 a 2 ºC mais aquecida antes da formação da UP. E Potter24) afirma que a cada 1 grau de elevação da temperatura, a pele perde 10 % da sua integralidade. Entretanto, Potter24 não concluiu qual a porcentagem de perda da integralidade da pele ocorrerá a formação da UP.
Mais tarde outro estudo em um hospital na Indonésia corrobora com Sae-Sia, afirmando que a elevação da temperatura da pele está relacionada com o desenvolvimento de UP, e recomenda a importância do uso de superfícies de apoio que permitem melhor interação do microclima da pele com o ambiente.9
Outros estudos, porém, antigos mostram que as superfícies de apoio causam alterações no microclima da pele resultando em aquecimento e riscos a sua integralidade.25,26
Ainda que a elevação da temperatura da pele seja reconhecida como vulnerabilidade para formação da UP. Existem dois eventos distintos agindo nessa alteração térmica, que iremos chamar de “causa direta” e “causa indireta”.
Conotamos como causa direta a elevação da temperatura da pele por evaporação ineficaz do calor, resultante do isolamento térmico das superfícies de apoio como colchões, lençóis, plásticos impermeáveis entre outros. E causa indireta quando a elevação da temperatura da pele é constatada a partir da alteração do funcionamento fisiológico do (s) tecidos (s) subjacentes a pele, em resposta a compressão do corpo contra uma superfície de apoio ou outro processo em que o aquecimento não esteja relacionado a má evaporação do calor como nos casos de febre, processos inflamatórios e ou infecciosos em determinadas regiões do corpo.
Afirmamos com certa segurança que a Rd em relação ao Ch, nos critérios metodológicos desse estudo, proporcionou grande vantagem térmica para pele, com tendência de estabilizar a temperatura da pele com elevação de 1 ºC. Porém, permanecerá uma discussão em curso, para que novos estudos possam responder se a vantagem da Rd em manter a pele com baixa a elevação da temperatura em relação ao Ch, tem resposta na causa direta, indireta ou nas duas?
É importante ressaltar que o estudo embora estivesse apoiado no discurso do microclima da pele. O material utilizado na coleta dos dados não disponibilizava recurso tecnológico para registrar a umidade relativa da pele. Nesse sentido a falta desse dado pode ser considerado como limitação do estudo. Isto porque, a elevação da temperatura da pele por causa direta e ou causa indireta, pode resultar em alterações do padrão de umidade, que também é um fator de vulnerabilidade à formação da UP.
Em conclusão, até esse momento é possível sugerir com razoabilidade o uso da Rd por ser uma opção de repouso termicamente vantajosa e econômica em relação ao Ch. Em especial no domicilio por ser de fácil transporte, limpeza e ser armada nos diversos espaços da casa e ou quintal proporcionando ao doente melhor interação e proximidade dos familiares.
No entanto outros fatores relacionados ao uso da Rd possíveis de prevenir ou mesmo causar a UP, necessitam ser estudados. Esses fatores ainda desconhecidos representam as limitações desse estudo que busca afirmar que a Rd em relação ao Ch possui vantagens para prevenir a UP.
Novos experimentos estão sendo realizados para comparar o quanto de pressão é exercida na região trocantérica durante o repouso em decúbito lateral na Rd e no Ch.