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Revista Novedades en Población

versión On-line ISSN 1817-4078

Rev Nov Pob vol.13 no.25 La Habana ene.-jun. 2017

 

Ensayo

 

Demografiaeciência: reflexões epistemológicas sobre a ciência das populações

 

Demografíay ciencia: reflexiones epistemológicas sobre la cienciade las poblaciones

 

 

RicardoOjima*

 

Recibido: 10 de mayo de 2016
Aceptado: 15 dejunio de 2016

 

 


RESUMO

Oobjetivo do trabalho é realizar uma discussãoepistemológica do campo científicoda demografia, explicitando e comparando oseu percurso intelectual dentro docontexto latino-americano. A necessidade deum debate circunstanciado sobre oque desde já anuncia-se como a ciênciademográfica é prioritária para adefinição dos limites e fronteiras doconhecimento específico que esta áreaenseja. A identidade científica dademografia esbarra na sua virtudeinterdisciplinar e, em novo contextopolítico, descaracterizado de marcasideológicas claras, torna-se umanecessidade repensar seus fundamentos nosentido de um avanço paradigmático.Enfim, sendo uma ciência ainda jovem, ademografia ainda está por se consolidarenquanto uma ciência autônoma noscontextos institucionais, mas tem logradosucesso em diversos contextos esuperado diversos desafios.

Palavras-Chave: demografia, epistemologia, sociologia quantitativa.


RESUMEN

Elobjetivo del artículo es llevar a cabo una discusiónepistemológica sobre elcampo científico de la demografía, explicando ycomparando su decursar en elcontexto latinoamericano. La necesidad de un debate profundo y contextualizadosobre la ciencia demográfica es prioritaria para la definición de los límites yfronteras del conocimiento específico queesta área comprende. Laidentidadcientífica de la demografíatropieza con su propia virtud:la de serinterdisciplinaria;y en el nuevocontexto político, desprovisto de pautasideológicasclaras, se convierte en unanecesidad repensar losfundamentos de estaciencia enpos de un avanceparadigmático. Al ser todavía joven,la demografía aúnestá por consolidarse comouna ciencia autónoma enentornos institucionales, perohalogrado éxitos endiferentes contextos y superarado diversos desafíos.

Palabras clave: demografia, epistemologia, sociologia cuantitativa.


 

 

Introdução

Oobjetivo do trabalho é realizar uma discussãoepistemológica do campo científicoda demografia (e dos estudos populacionais),explicitando o seu percursointelectual dentro do contexto latino-americano apartir da concepção de que aciência das populações é parte integrante datrajetória das ciências sociaisquantitativas. A necessidade de um debate circunstanciadosobre o que desde jáanuncia-se como a ciência demográfica é prioritária para adefinição dos limitese fronteiras do conhecimento específico que esta áreaenseja. De certa maneira,considera-se que esse é um debate fundamental paraque a formação de quadrosprofissionais especializados em demografia logreêxito dentro das estruturasinstitucionais e departamentais do modelo acadêmicoatual.

Possivelmenteo trabalho mais completo na direção deum debate sobre o projeto científico daárea resida na obra clássica de Hauser e Duncan (1972), originalmente publicadaem 1959,pela Universidade de Chicago. Desde então, o esforço de pensar ocampocientífico da demografia ficou limitado a artigos e trabalhos dispersosaolongo de encontros científicos e publicações com artigos encomendados paraestafinalidade. Talvez o esforço sistemático da própria ampliação do campodepesquisas em torno de manuais demográficos (por exemplo, o Manual X dasNaçõesUnidas) tenha sido fundamental no sentido de simplificar as definiçõesdoslimites do campo científico da demografia.

Decerta maneira, disseminou-se através dos manuais aideia de que o núcleo dademografia deveria se restringir aos métodos demedição e que a interação comoutras ciências teria a responsabilidadeexplicativa das mudanças demográficas.Entretanto, definir o campo dademografia não é simples. Como apontado porCaldwell (1996), é mais fácildefinir um demógrafo do que o próprio campo noqual ele se insere. Talvez poressa razão, diversos centros de capacitaçãoprefiram atribuir títulosacadêmicos em estudos de população ao invés dedemografia propriamente.

Esteartigo busca recuperar alguns fragmentos deanálises epistemológicas do campocientífico da demografia para encontrarpontos de convergência de uma ciênciademográfica e, com isso, identificar umaagenda na construção de um campocientífico autônomo e a posiçãolatino-americana neste processo. Dentro destecontexto, a interdisciplinaridadesurge como elemento fundamental nas análises enesse aspecto é que se faz claraa relação próxima entre as ciências sociaisquantitativas e a demografia. Paraisso, o caso da tradição de pesquisalatino-americana tem um papel importante,pois nela emerge uma particularidadede estudos demográficos baseado em umatensão entre ideologia e ciência.Argumento que considera-se ser uma marca docontexto que pretendemos estudaraqui.

Finalmente,o artigo pretende também indicar o estadoatual da construção científica docampo, explorando os limites e fronteiras deconhecimento que essa tradiçãocoloca. Em uma abordagem pragmática de análisedas instituições científicas,encerra-se esse artigo com o desafio do resgateda especificidade do campodemográfico e a necessidade de interlocução ediálogo em uma área deconhecimento fundamentalmente interdisciplinar, mas quedeita importantes raízesno campo da sociologia quantitativa (Hauser & Duncan, 1972).

 

Ademografia como campo científico e a construção do objeto

Passadoscinquenta anos desde a publicação da obraclássica de Hauser e Duncan (1972),apesar de todasas transformações que engendraram grande debate sobre anecessidade de novosparadigmas nas ciências sociais (Giddens &Turner,1999), o debate sobre a consolidação da demografia enquantodisciplinacientífica apresentou poucos avanços (Canales, 2004).Nam (1979)aponta a relativa indefinição encontrada nos manuais e enciclopédiasdo períodoem relação ao campo de estudos, mostrando que, embora em sua maioriatratem ademografia como parte integrante das ciências sociais, outras vezesaparece emcomo ramos da biologia, matemática ou economia. Kirk (1968) coloca ademografiano campo dos estudos quantitativos de populações humanas em suaEnciclopédia deCiências Sociais, entretanto, assim como em outras publicaçõesdo gênero, poucosesforços são feitos para distinguir os limites entredemografia e sociologia,antropologia, estatística, psicologia, etc.

Masessa relativa indefinição parece não incomodar ospesquisadores que atuam nessasáreas de conhecimento. Talvez pelo fato de que aproposta elaborada por Hauser eDuncan (1972) consigaacomodar o interesse daqueles que se debruçam sobre essatemática. Para osautores, poderíamos estruturar a área de pesquisa em duaspartes: análisedemográfica e estudos populacionais. O primeiro estariarelacionado ao estudoda variação e mudança dos componentes demográficos,enquanto que o último teriao foco na relação entre população e as demaisvariáveis. Simples, mas será quesatisfatório em termos de marcar as fronteirasde uma área de conhecimento ouconstituir uma ciência?

SegundoPatarra (1980), taldiferenciação assume um caráter contraditório, pois confereuma limitação donúcleo central definidor da demografia em explicar as mudançasna estrutura dapopulação. Ou seja, como se a análise demográfica, odesenvolvimento dastécnicas de mensuração e a busca por precisão em estimativasnão fosse parte deum contexto socioeconômico e político. Ao mesmo tempo, osestudos populacionaispoderiam, a partir dessa abordagem, prescindir de umaleitura crítica dosdados.

Defato, não é tão simples assim. Preston (1993) admite que a demografia é um campoque não se apresenta em uma definiçãosimples. Para ele, as técnicasdemográficas são particularidades que assumemamplo reconhecimento na análisedas estatísticas vitais ou nos movimentos dapopulação e, embora tais técnicasnão tenham sido exclusivamente originadas nademografia, a sua aplicação empopulações humanas se constituem numaespecificidade dessa área de pesquisa. Entretanto,Preston (1993, p. 594) considera que "the distinction between demographyand the broaderfield of population studies is inexact but useful".

ParaPreston (1993), embora o centro da análise dasrelações entre os eventosdemográficos e o comportamento de indivíduos ousistemas sociais esteja nocontexto de outras ciência sociais, os demógrafostêm sido mais efetivos noentendimento dessas questões, pois para ele, afamiliaridade com os dados e osmecanismos de mensuração, permitem que o pesquisadorcom formação demográficaenfrente o problema de maneira mais completa e,talvez, enxergue questões quenão são aparentes a partir de outros recortesdisciplinares. Assim, apesar dasteorias e abordagens explicativas virem deoutras ciências sociais, umnão-demógrafo não visualizaria o problema a partirdas medidas e dasinterpretações cuidadosas dos dados e das relações entre asvariáveisdemográficas (Preston, 1993; Caldwell, 1996).

Essacondição tem forte relação com o desenvolvimentotecnológico. Apesar do pequenogrupo de pessoas que se dedicam exclusivamenteao núcleo essencial da demografia(técnicas demográficas), os avanços obtidosna segunda metade do século 20 foramsignificativos e um dos elementos que contribuiram para esse avanço foi aincorporação de novastecnologias (Preston, 1993; Caldwell, 1996). A evolução dainformática nosentido de criar ferramentas adequadas às análises de grandesbancos de dadoscom maior velocidade e refinamento favoreceram avanços muitomais expressivosaos estudos demográficos do que em qualquer outra ciênciasocial. De certamaneira, essa evolução permitiu que mesmo o demógrafo nãodedicado às técnicaspudesse ampliar sua capacidade analítica em diferentesescalas de agregação,utilizando modelos mais complexos, mas principalmenteconferindo ao pesquisadormaior autonomia na manipulação de seus próprios bancosde dados.

Essarelativa indefinição do campo científico,portanto, permitiria que a demografianão se tornasse uma disciplina herméticana qual pesquisadores de outras áreassejam colocados de lado e jovenscriativos sejam impedidos de se interessar(Preston, 1993). Mas por outro lado,tal situação pode refletir na limitação daampliação da área de conhecimento,bem como do seu maior reconhecimento eexpansão em frentes de atuação e até emtermos institucionais e de mercado detrabalho.

Enesse aspecto reside um grande conflito no que serefere à definição dademografia enquanto um campo científico autônomo, pois ademografia possui umcaráter peculiar. Todo o demógrafo deveria,primordialmente, ter competência nosprincípios da "demografia formal"(técnicas e métodos), mas também éinevitável que este se depare com fatoresinerentemente complexos dos processossociais ou até biológicos. Assim, a buscapor uma "demografia pura" seriauma falsa verdade, pois a demografia serianecessariamente interdisciplinar enão deveria se restringir apenas aoscálculos (Lorimer, 1972; Nam, 1979; Wajnman& Rios-Neto, 2003).

Masao mesmo tempo que a demografia não pode se confundircom suas técnicas emétodos exclusivamente (Wunsch,2000), tampouco pode ser ―devido ao seucaráter interdisciplinar― oestudo de todos os processos que envolvempopulações humanas desde o indivíduoaté a sociedade, pois dessa formaestariamos tentandoentender tudo e ao mesmo tempo nada (Courgeau & Franck,2007). Moore (1972, p. 845) menciona a relativaausência de discussões teóricasdentro da demografia, pois há uma excessivapreocupação com o refinamento dastécnicas que, muitas vezes, leva um jovemdemógrafo a perder de vista suaquestão fundamental, ou seja, o que elerealmente busca saber.

Eo que ele realmente busca saber? A ausência de umparadigma teórico específico epredominante não é em si mesma uma limitaçãopara o posicionamento da demografiaenquanto ciência, pois é o alvo ou o objetode explicação (o fenômenodemográfico) o que torna a questão essencialmentedemográfica (Coleman, 2000;Wunsch, 1995). Essacondição coloca os demógrafos na necessidade constante de sealimentar dosparadigmas e abordagens teóricas de outras áreas do conhecimento.E nesseaspecto é que reside o desafio da interdisciplinaridade do campo, poisasproposições demográficas não deveriam entrar em conflito com asabordagensexplicativas vigentes nessas outras áreas de conhecimento(Wunsch,1995).

Sendouma ciência que busca também entender os padrõesde comportamento social emdiversos níveis de agregação (indivíduo esociedade), torna-se quase queimpossível se basear em um paradigma unificadore totalizador, pois muitas vezesas teorias construídas a partir de resultadosobtidos em escala agregada não sãopassíveis de comprovação no nívelindividual, e vice-versa (Wunsch, 1995).Assim,reduzir a demografia às suas técnicas, seria pensar que as técnicasexistem à reveliadas mudanças paradigmáticas que ocorrem nos campos científicoscorrelatos ouindependentemente das transformações do contexto social (Beltrão,1972; Verón,1993).

Masserá mesmo que a demografia reside em uma lacunade teorias próprias? Seria ingênuoaquele que pensa que a demografia, portratar detalhadamente dos dados eobservar seu comportamento detalhadamente,poderia extrair dos fatos os seusconceitos teóricos, como se estes fossemdados pela própria natureza dos"fatos reais" (Bourdieu,Chamboredon & Passeron,2007). Comoapontado por Popper (1972), sempre haverá uma teoria dominantedesde a concepçãoaté os resultados finais da pesquisa. Afinal os dadosdemográficos mesmo osmicrodados não são isentos deuma ideologia, pois estes não são coletados, sãocriados de acordo com essas pré-noções (Babbie, 1999, p.181; Escobedo, 2007).Mais que isso, a população em si mesma éuma construção da modernidade, pois éum processo de abstração queilusoriamente sugere o reducionismo das condiçõesdefinidoras dascaracterísticas individuais em cada contexto histórico ou social(Canales, 2004; Szmrecsanyi,1999).

Portanto,aquele que pensa que não há teoria ouparadigma que oriente a construção deproblemas demográficos incorre no riscode reproduzir pré-noções ou interessesalheios, poisnão há pesquisa que seja totalmente isenta de um paradigmaorientador. Mesmo osdados aparentemente objetivos, como grupos de idade oufaixas de renda, estãosujeitos à pressupostos teóricos (Bourdieu, Chamboredon& Passeron, 2007).Nenhuma técnica ou método de pesquisa poderia serauto-explicativa,pois sendo instrumental, depende de um recorte epistemológico(Escobedo, 2004). Enfim, mais importante que as teoriasexplicativas utilizadasà posteriori, são os pressupostos adotados(intencionalmente ou não) naconstrução do próprio problema demográfico a serestudado. Tais construções,como veremos a seguir, constituem a tensãoessencial que marca a tradiçãolatino-americana de pesquisas demográficas.

 

Umatradição latino-americana? A demografia crítica

Quaissão os pontos que permitem diferenciar umdemógrafo de um estatístico,sociólogo, economista ou geógrafo? O que busca umgraduado em uma destas áreasquando ingressa em um programa de pós-graduação emdemografia? Em vista do fatode que não existem cursos de graduação específicospara o ensino de demografia,a confusão que cerca o reconhecimento da áreaenquanto ciência se torna maisdifusa ainda. Assim, poderiam os desavisadosdistinguirem a demografia pelassuas técnicas e procedimentos metodológicos.Afinal, o que se convencionou achamar de "demografia formal" apresenta-se emgrande parte cercadapela técnica quantitativa de análise dos dadospopulacionais. Entretanto, comovimos, esta não deve ser pensada separadamente dasanálises substantivas, nem emsuas análises conclusivas, tampouco comoconstrução dos pressupostosformuladores das técnicas (Sawyer & Fernandes,2005).

Aescolha deliberada de um paradigma ou recorteteórico deve ser, portanto, umaetapa necessária ao demógrafo, pois quandopassa a perseguir os desafiostécnicos para a solução da sua pergunta, estedeve ter muito clara. E mais queisso, deve ainda ter a clareza de que apergunta certa é mais importante do quea resposta. O risco de um ponto departida desprovido de reflexão teórica conscienteé recair na tautologia dosenunciados indutivistas em que os fatos estão dadosnarealidade social que se quer provar (Popper, 1972). Portanto, quase que emumabusca pelo auto-conhecimento, o demógrafo deveriater consciência, tal qual emoutras ciências sociais, de que ele mesmo é parteintegrante do objeto deanálise proposto.

Ademografia latino-americana tem em suas origens umaclara vinculação com ospressupostos de controle populacional incentivadospelas agências internacionaissob o receio de uma explosão demográfica preemente na região. Assim, desdeMalthus, a grande questãodemográfica sempre esteve, de uma forma ou de outra,na relação entre populaçãoe desenvolvimento (Canales, 2004). Estediscursomarcadamente ideológico teve um resultado talvez inesperado, poisodesenvolvimento da demografia latino-americana se valeu justamente do discursocontrolista para desconstruir o mito malthusiano a partirde estudos quebuscavam apresentar as entrelinhas contidas na imposição de umaagendainternacional.

Aúnica contribuição latino-americana no clássicolivro de Hauser e Duncan (1972)apresenta a situaçãodo Brasil entre os estudos demográficos. O capítulo"DemographycStudies in Brazil" deautoria de Mortara (1972), deixaclaro que já haviaquadros técnicos de competência reconhecida em estudosdemográficos no paísdentro do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística(IBGE) desde os anos1940 (Miranda-Ribeiro, 2006). Apesar disso, ainda não havianem no Brasil,tampouco na América Latina, cursos de formação especificamente emdemografia,embora houvesse disciplinas com conteúdo demográfico formal de formaisoladadentro dos cursos de estatística, e com conteúdo parcial nas faculdadesdefilosofia e economia (Mortara, 1972).

Masfoi dentro de um contexto político e ideológicoacirrado que a questãopopulacional se fortalece e toma dimensões de campocientífico. Tardiamente,pois ganha fôlego, sobretudo, no final dos anos 1960,a demografialatino-americana nasce no contexto de uma crítica à postura neomalthusiana queatribuiria ao crescimento populacionalda região a sua condição desub-desenvolvimento (Patarra & Bilac, 2005). Nesse contexto são criadososprincipais centros latino-americanos, incluindo o Centro Latino-AmericanodeDemografia (CELADE), no Chile, em 1957. Todos os centros recebiam forteapoiode agências internacionais (Fundação Ford, MacArthur,Hewlett, Rockefeller)para pesquisa em demografia,deixando claro que o interesse em qualificardemógrafos na região seria umpasso importante para promover o controle da explosãopopulacional (Miró,2006).

Foide extrema importância a liderança da panamenhaCarmen Miró, na direção dorecém-criado CELADE, pois considerando a pressão dasagencias internacionais, aperspectiva crítica deinvestigação social que era dada ao ensino de demografiano Chile tinha tudopara ter tomado outro rumo. Neste momento a posição críticaliderada por Miróconseguiu recolocar o dilema malthusiano e, em outraspalavras, deu uma marcapolítica aos estudos demográficos latino-americanos(Gandasegui,2003).

AConferência Regional de População, ocorrida noMéxico em 1970, marca ainsatisfação de diversos atores envolvidos nestesprojetos de transferência derecursos das agências internacionais que, ao mesmotempo em que apoiavam eincentivavam o fortalecimento da demografia na região,incluíam um receituáriopolítico e abordagens teóricas pré-definidas dentro dopacote (Oliveira &Tavares, 2005). Portanto, a demografia latino-americanateria suas raízes em umconflito ideológico e sobre o qual se consolida umdebate político-ideológicoque buscava o desenvolvimento de uma demografiacrítica, com uma agenda políticaclara, mas sempre valendo-se de abordagensteórico-metodológicas sofisticadas (Patarra &Bilac, 2005; Wajnman & Rios-Neto, 2003).

Essereceituário tinha bases na percepção de que umaexplosão demográfica estavaprestes a ocorrer, pois as taxas de crescimentopopulacional dos países pobresapresentavam níveis elevados, sobretudo após aII Guerra Mundial. Assim, uminteresse súbito pelos temas populacionais foisustentado por estudos da Escolade Princeton, convencendo a opinião pública deque não seria viável esperar ascomplexas transformações culturais e econômicasque antecipariam a queda dafecundidade nestes países e, portanto, haveria anecessidade de controlar suanatalidade externamente (Hodgson,1991; Martine, 2005; Carvalho & Brito,2005).

Essafoi uma marca importante da tradiçãolatino-americana. E trouxe suasconsequências, pois apesar de ter sidoconsiderada pelas agências internacionaisque aqui transitaram, trouxe umrelativo protecionismo acadêmico (Oliveira &Tavares, 2005). A formação dequadros técnicos especializados no campo deestudos demográficos também tevesuas marcas, pois como consequência dessatradição, as interações Norte-Sulsempre foram tratadas com muito receio. Oreceio de que ideologiasimperialistas contaminassem as pesquisas aquidesenvolvidas convivia com asíndrome da sobrevalorização do que é desenvolvidonos países do Norte.

Assim,por algum tempo a demografia latino-americna parece ter aceito a divisãoentredemografia formal e estudos de população. Por um lado pela insipiênciadequadros técnicos qualificados, mas talvez com mais contribuição de umarupturaepistemológica entre o que seria considerado comoposiçãohistórico-materialista e crítico, daquela percepção deacritiscismoderivada de uma ciência social funcionalista e extremamentesimplificadoratrazida juntamente com as agendas das agenciasinternacionais(Oliveira & Tavares, 2005).

Entretanto,mais recentemente essa posição ideológicafundadora perde sua característicamais evidente, pois a postura crítica etotalizadora não é mais percebida comouma possibilidade e necessidademetodológica dentro do campo demográfico.Canales(2004), destaca que novos paradigmas são necessários para entenderumarealidade social cada vez mais complexa, e na falta de palavramelhor,pós-moderna. A demografia, como ciência social, deveria passar pelasmesmascrises e buscar seu espaço dentro de uma perspectiva interdisciplinar quejálhe é familiar.

Osestudos com uma maior integração entre a demografiaformal e os estudos depopulação, se é que podemos usar o enunciado de Hauser e Duncan (1972), já setornou hoje uma realidadepossível, face aos inúmeros programas de formação emdemografia existentes naAmérica Latina. Isso garante um fio condutor depesquisas nessa direção. Mastalvez o mais importante dessa trajetória e daprópria consolidação dademografia na região seja o reconhecimento recíproco danecessidade de cruzaras fronteiras dos campos disciplinares. Não para buscaruma demografia pura,mas na procura utópica de uma demografia completa e queobjetive um maiorconhecimento da sua pergunta fundamental.

 

Fronteirase transbordamentos: algumas reflexões

Sea interdisciplinaridade é essencial para ademografia, não faria sentido osesforços para identifica-la como um campocientífico autônomo? Como suaconstituição e progresso se deu após aconsolidação das ciências sociais, secomparadas às tradições epistemológicasdas ciências naturais, talvez os limitese fronteiras sejam muito pouco clarospelo próprio contexto institucional noqual se insere. Como mencionado porPreston (1993), o fato de ser uma área depesquisas restrita a poucas pessoasdentro de estruturas departamentais maisabrangentes, coloca a demografia emuma eterna procura de seu espaço.

Devidoà tradição crítica das ciências sociaislatino-americanas, os estudosquantitativos tendem a ter muito pouco espaço nosdepartamentos de ciênciashumanas. Ao mesmo passo, mesmo sendo a mais"indutiva" das ciênciassociais, a demografia tende a não ser valorizada nosdepartamentos mais próximosàs ciências exatas e naturais. Assim, as fronteirasdemarcadas por outrasciências são muito rígidas para que a demografia seinsira dentro de outrastradições científicas. Talvez pelo fato da demografiaavançar sobre umconhecimento pouco "normal", nos termos de Kuhn (2009), tantonasciências humanas, como nas ciências exatas.

Oreconhecimento de suas especificidades através dademarcação institucional eacadêmica formalizada dentro das estruturas dasuniversidades talvez seja oreflexo do próprio amadurecimento do campocientífico. Mas talvez essa condiçãomarginal dentro das instituiçõesacadêmicas seja de responsabilidade da própriademografia que, ao se contentarcom as definições "manualescas" do seucampo deconhecimento, considera suficiente o pequeno espaço que lhes é dadodentro dasestruturas institucionais. E como em um ciclo vicioso, mesmo que oespaçoinstitucional lhe seja garantido, a ausência de uma reflexãoepistemológicacontínua, consciente e ativa a coloca em uma posição frágilperante outrasáreas do conhecimento com tradição mais consolidada. Comoapontado por Tabutin (2007), apesar do grande avanço em técnicas,metodologias,abordagens teóricas, ainda há alguns aspectos que merecematenção, entre elesestá a busca pela identidade ou especificidade.

Refutandoa perspectiva de Tabutinque considera a demografia como uma ciência consolidadamesmo com algunsdesafios ainda por fazer, Courgeau e Franck (2007) argumentamque alguns destes pontos nãogarantem essa especificidade, sobretudo pelaausência de clareza dos paradigmaspróprios, mas aqui acrescentaríamos ainda aausência de um estudoepistemológico sistemático dos fundamentos do campocientífico da demografia. Semesse auto-reconhecimento, estaremos semprenavegandoem mares desconhecidos quando necessitamos cruzar as fronteiras dadisciplinapara entender um processo ou fenômeno social.

Assim,mesmo que nos esforçarmos em balancear adefinição da demografia nas suas duasdimensões: formal e estudospopulacionais, fica claro que prevalecem as técnicascomo a figura distintivadeste campo de conhecimento. Entretanto, do que setrata essa parte"substantiva"? Não seria esse ponto de conexão aqueleque permite trazer paradentro dos aspectos "formais" da demografia,novos métodos? (Miró, 2006). Comomencionado por Preston (1993, p. 593), doissemestres seriam suficientes paratransmitir a essência e os detalhes dastécnicas quantitativas próprias dademografia, mas quanto tempo seria necessáriopara estreitar as ligações com aanálise dos processos sociais e as técnicas?

Greenhalgh(1997) menciona a dificuldade encontradapela demografia em lidar com asmetodologias qualitativas, tendo recebidocríticas por parte dos antropólogossobre a sua abordagem. Mesmo dentro dademografia, são muitos os céticos emaceitar que tais abordagens possam serclassificadas como parte da demografia, fortemente marcada por técnicasquantitativas. Mas esse receio só se torna realquando não se tem clareza doslimites e fronteiras do campo de conhecimento,pois caso contrário, todo equalquer avanço metodológico no sentido de melhorcompreender um processodemográfico deveria ser incentivado (Miró, 2006).

Emverdade, a relação entre macro teorias é muito maispróxima aos estudos demográficos,pois ao tratar os grandes números, essaaproximação fica mais visível. Mas comolidar com o comportamento, aexperiência e a percepção da população em diversosníveis de agregação? Qual aquantidade de pessoas necessária para se delimitarquando estamos falando deuma população ou um grupo de indivíduos? Enfim,reduzir a número o objeto deanálise da demografia não seria justamente umacontradição dentro do que sepretende analisar?

Talvezainda seja cedo para afirmar que a demografiaseja uma ciência totalmenteconsolidada, mas tampouco seria prudente afirmarque ela nunca teve essapretensão. Entretanto, a uma conclusão podemos chegar:ainda não temos um esboçode uma epistemologia da demografia. O estudocientífico da ciência da populaçãoainda está por ser feita. Como mencionado noinício deste trabalho, não se trataapenas de recuperar o percursoinstitucional dos programas de ensino ou dasassociações de pesquisa para queesse empreendimento seja concretizado. Énecessário chegar às fronteiras daciência demográfica para que possamos ver oque está do outro lado.

Setivermos a segurança do nosso recorteteórico-metodológico, do nosso objeto deanálise, ou de nossos limites deabrangência, a interlocução com outras ciênciasse mostrará cada vez maisprodutiva, pois a busca pela interdisciplinaridade nãoé uma exclusividade dademografia. Mas o risco de não termos isso claro é que oprocesso de formaçãodemográfico se resuma meramente na instrumentalização detécnicas de mensuraçãoe estatísticas de dados populacionais (Szmrecsányi,1999).Tarefa complexa principalmente quando estamos buscando ampliar suainserçãoinstitucional e formando novos quadros. Enfim, para uma ciência naqual grandeparte de seus fundadores ainda está viva, ainda há muito tempo paraque tais desafiossejam empreendidos.

 

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* Profesorde la Universidad Federal deRío Grande del Norte, Departamento de Demografía yCiencias Actuariales.Presidente de la Asociación Brasileña de Estudios dePoblación (ABEP). E-mail:ricardo.ojima@gmail.com

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