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Revista Novedades en Población

versión On-line ISSN 1817-4078

Rev Nov Pob vol.18 no.35 La Habana ene.-jun. 2022  Epub 16-Jun-2022

 

ARTIGO ORIGINAL

Extinção municipal no Brasil contemporâneo: debatendo o problema no contexto geográfico das cidades pequenas no uso do território

Extinción municipal en el Brasil contemporáneo: debate del problema en el contexto geográfico de las pequeñas ciudades en el uso del território

Paulo Fernando Jurado daSilva1  * 
http://orcid.org/0000-0003-3325-6451

1 Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul - UEMS, Brasil.

Resumo

As cidades pequenas são numerosas e diversas, apresentam grande complexidade para o entendimento conceitual na ciência e funcionam no território, especialmente, como abrigo e lugar de moradia para milhares de pessoas. Do ponto de vista econômico, configuram-se como centros gestores dos municípios que abarcam no Brasil as dimensões da cidade e do campo. Essa diversidade é notada em vários sentidos e, também, no demográfico, algo que precisa ser mais bem elucidado teoricamente. Com esse intuito, este artigo tem como objetivo central compreender o tema das cidades pequenas, no contexto da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 188, e o consequente processo de extinção municipal, sugerido no documento. Cidades, portanto, que não apresentarem arrecadação compatível com o teto previsto nessa legislação, bem como número mínimo de 5.000 habitantes serão excluídas do quadro territorial, sendo absorvidas por municípios vizinhos com maior capacidade econômica e demográfica, algo que mudará a dinâmica socioespacial do país. Com isso, o texto apoiando-se, metodologicamente, em literatura sobre o tema, em dados secundários e em documentos oficiais públicos busca problematizar a questão de forma crítica. Os resultados demonstrarão, desse modo, a conjuntura atual e o possível desdobramento da aplicação da PEC, sendo debatido o território como condição essencial para formulação de leis. Por fim, pretende-se contribuir para um debate tão caro às ciências humanas e à agenda política, econômica e territorial, levando em conta que as cidades pequenas importam à vida e à dignidade das pessoas.

Palavras-chave: Cidades pequenas; Extinção Municipal; Território; PEC 188

Resumen

Las pequeñas ciudades son numerosas y diversas, presentan una gran complejidad para la comprensión conceptual de la ciencia y el trabajo en el territorio, especialmente como refugio y lugar de residencia para miles de personas. Desde un punto de vista económico, se configuran como centros de gestión de municipios que abarcan las dimensiones de la ciudad y el campo en Brasil. Esta diversidad se nota de varias maneras y también en la demografía, algo que necesita ser mejor aclarado teóricamente. Con este fin, este artículo tiene el objetivo central de comprender el tema de las ciudades pequeñas, en el contexto de la Enmienda Constitucional Propuesta (PEC) 188, y el consiguiente proceso de extinción municipal, sugerido en el documento. Por lo tanto, las ciudades que no tengan un numero compatible con el techo previsto en esta legislación, así como un mínimo de 5,000 habitantes, serán excluidas del marco territorial, siendo absorbidas por los municipios vecinos con mayor capacidad económica y demográfica, algo que cambiará la dinámica socioespacial del país. Con esto, el texto que se basa metodológicamente en literatura sobre el tema, datos secundarios y documentos oficiales públicos busca problematizar críticamente el tema. Los resultados demostrarán así la situación actual y el posible resultado de la aplicación del PEC, debatiéndose el territorio como condición esencial para la formulación de leyes. Finalmente, se pretende contribuir a un debate tan importante en las humanidades y la agenda política, económica y territorial, teniendo en cuenta que las ciudades pequeñas son importantes para la vida y la dignidad de las personas.

Palabras clave: Ciudades pequeñas; Extinción municipal; Territorio PEC 188

Introdução

Os municípios participam do processo de gestão territorial da política e da economia, reunindo a dimensão da cidade e do campo, em escala local, no Brasil. Cidade e campo, por sua vez, são formas espaciais do processo de divisão territorial do trabalho, enquanto os respectivos conteúdos dizem respeito ao urbano e ao rural. Forma e conteúdo, ao longo da história e dialeticamente, mantém relação visceral. No atual período técnico-científico-informacional (Santos, 1982) observam-se transformações substanciais em tais relações, que se manifestam de forma intensa e em grande velocidade, exigindo novas variáveis para a compreensão da realidade.

O urbano do século XXI, portanto, não é apenas um produto da indústria como foi do século XVII até o último quartel do século XX, guardadas as devidas diferenças e proporções, entre países, modos de desenvolvimento internos, e as respectivas formações socioespaciais (Santos, 1982). Tal realidade adquire um conteúdo informacional e desigual, o que requer novas formas de se pensar analiticamente o fenômeno (Castells, 2003). Entretanto, é preciso que as cidades sejam analisadas por meio da história, manifestando-se como um dado das contradições da produção do espaço que as separam do campo, em diferentes escalas e tamanhos (grandes, intermediárias, pequenas).

No país, a diversidade de conteúdo urbano existente nos municípios é intensa, havendo grande heterogeneidade, quanto aos papeis econômicos e políticos que esses exercem, na divisão territorial do trabalho. Aliás, esse não é um fato recente e desde o período colonial verifica-se que o uso e ocupação do território vêm se dando de forma desigual: da faixa litorânea ocupada até o interior, menos populoso e com menor vitalidade econômica.

Tal constatação é seguida pela composição de distintas redes e interações urbanas, visualizada na hierarquia das cidades (sedes municipais), conforme se avança na leitura do território usado. Nesse sentido, não dá para fazer análise espacial e do planejamento, sem levar em consideração a economia, a sociedade, o ambiente e o tempo. O território usado, como proposto por Milton Santos, em diversos trabalhos, é chave para a leitura geográfica dos diferentes modos de produção que se sucederam. Nessa compreensão: “O que interessa discutir é, então, o território usado, sinônimo do espaço geográfico. E essa categoria, território usado, aponta para a necessidade de um esforço destinado a analisar sistematicamente a constituição do território [...]” (Santos and Silveira, 2001, p. 20).

Dessa maneira, elucida-se que:

O território é a arena da oposição entre o mercado que singulariza - com as técnicas da produção, a organização da produção, a “geografia da produção” e a sociedade civil que generaliza - e desse modo envolve, sem distinção, todas as pessoas. Com a presente democracia de Mercado, o território é suporte de redes que transportam as verticalidades, isto é, regras e normas egoísticas e utilitárias (do ponto de vista dos atores hegemônicos), enquanto as horizontalidades levam em conta a totalidade dos atores e das ações [...] (Santos, 1996a, p. 207).

Com isso, discutir, por exemplo, a viabilidade municipal é atentar, sobretudo, para essa dimensão do caráter ideológico da produção do território, isto é, quem controla o espaço, normatiza-o. As leis são capazes de inserir conteúdo de controle e vigilância, mudando as forças que mobilizam recursos econômicos e a circulação de pessoas e mercadorias, nas contradições do movimento da vida, ao longo do tempo.

Assim, é necessário sublinhar que no período inicial do uso do território brasileiro diversos autores, a exemplo de Holanda (1998), consideraram que o território português colonial não elaborava planejamento e ordenamento adequado e que as cidades cresciam ao redor de igrejas de forma desordenada, com raras exceções. Sobre o assunto, Schürmann auxiliou no processo de compreensão dessa realidade quando escreveu que:

O fato de o Brasil ter sido submetido, na década de 1530, a uma política colonial, assentada no latifúndio, na produção de açúcar para o mercado europeu e no trabalho escravo, organizou a colônia como uma imensa retaguarda rural para os mercados europeus, resultando em um dinamismo’ centrado no campo. Essa política gerou uma certa atividade urbanizadora, mas o planejamento se restringiu apenas às cidades reais, localizadas no litoral e controladas pela metrópole, que se encarregava do envio de investimentos, de engenheiros militares e de arquitetos. As vilas mais modestas, "sem planos, sem diretrizes específicas, nada tinham da disciplina e da ordem formal das cidades hispano-americanas" (Schürmann, 1999, p. 152).

Essa divisão territorial do trabalho entre metrópole e colônia, também existente entre determinadas áreas produtoras no plano interno ao território, permaneceu por um grande tempo, conformando uma diferenciação, na escala da produção territorial, circulação e movimento, bem como nas normas e objetos técnicos que iam sendo instalados. Nessa perspectiva, vale ressaltar que: “[...] no começo a ‘cidade’ era bem mais uma emanação do poder longínquo, uma vontade de marcar presença num país distante” (Santos, 1996b, p. 17). No território, produziam-se poucas relações de trocas econômicas entre as diferentes localidades. As conexões econômicas eram mais intensas com o exterior e havia pouca ligação interna entre os centros.

Além disso, é a partir, principalmente, da introdução e fortalecimento da economia cafeeira no século XX que esse quadro de transformações ganha maior vigor. São Paulo torna-se o núcleo urbano hegemônico, no território nacional, desbancando o Rio de Janeiro, promovendo um processo de industrialização acelerado, sobretudo, na capital e adjacências. Alguns autores, a exemplo de Cano (2007), situaram essa dinâmica em um complexo econômico, denominado cafeeiro, que reuniria as condições para o fortalecimento e expansão do processo de urbanização do território paulista com a inserção de ferrovias. Nas palavras de Cano:

Café, agricultura, transportes, indústria, comércio e finanças cresciam, assim, dinâmica e integradamente, ampliando consideravelmente o potencial de acumulação do complexo paulista. Dessa forma, a economia paulista contou com amplas condições para o seu desenvolvimento, ao contrário do que ocorria no restante do país [...] (Cano, 2007, p. 263)

Esse conjunto de fatores possibilitou a criação de diversas cidades e a formação a posteriori da maior rede de urbana do país, do ponto de vista da densidade populacional, econômica e da expressão das cidades e do conjunto de interações espaciais. Ocorreu a transformação do modelo agroexportador para urbano e industrial, embora, reconheça-se que tal dinâmica se concretizou de forma desigual no território, articulando o atrasado ao moderno. A partir de meados do século XX houve significativa melhora na integração territorial dos transportes, com a adoção do rodoviarismo, intensificação da industrialização e avanço da interiorização política do território, com a criação de Brasília, no planalto central.

Por conseguinte, as cidades pequenas que surgiram, nesse momento, tinham o papel de atender as demandas mais básicas da população, funcionando como centros de apoio na expansão da fronteira agrícola que florescia no território e servia como fonte de acumulação do capital. Acerca dessa realidade, Milton Santos descreveu que: “A pequena cidade, que preferimos chamar de cidade local, torna-se o centro funcional mas não dinâmico da região circundante [...].” (Santos, 1982, p. 51, grifo do autor).

Santos (1982, p. 69) considerou ainda que não se deve definir esses centros a partir de um patamar demográfico específico, porque isso é aprofundar as generalizações e poderia trazer equívocos no processo de compreensão destas cidades. Nesses termos, o autor elucidou que a “[...] a cidade local é a dimensão mínima a partir da qual as aglomerações deixam de servir às necessidades inadiáveis da população, com verdadeira especialização do espaço” (Santos, 1982, p. 71).

Entretanto, opta-se por adotar a expressão de cidade pequena, pois é assim que tal realidade é tratada com maior frequência na literatura e por avaliar que a expressão cidade local possa induzir o leitor a pensar que as cidades pequenas não têm conexão com outros centros urbanos. Em outras palavras, o que se argumenta é que há grande complexidade no entendimento das cidades pequenas, no território nacional, e que admitir um patamar demográfico mínimo pode ser pouco proveitoso teoricamente, embora se possa eleger um estrato demográfico para se estabelecer um recorte demográfico para iniciar a discussão, a exemplo de cinquenta mil habitantes, como propôs Corrêa (1999) e outros autores.

No Brasil, tal discussão é polêmica, levando-se em consideração as variadas regiões que compõem o território e sua diversidade. Há cidades na Amazônia que apresentam patamar demográfico próximo a cinquenta mil habitantes e podem ser consideradas intermediárias, do ponto de vista das relações na rede urbana, como é o caso de Tefé que é considerada por Rodrigues (2011) como cidade média de responsabilidade territorial. Já há outras, a exemplo daquelas situadas no Estado de São Paulo, que apresentam dimensão semelhante, mas são pequenas do ponto de vista da funcionalidade na rede urbana, como é Tupã, situada próxima Marília e Presidente Prudente que são cidades intermediárias na rede urbana.

Isso, por outro lado, revela a diversidade do quadro urbano brasileiro e expõe a amplitude do assunto. Assim, “[...] a pequena cidade pode ser melhor definida em termos do grau de centralidade do que em termos de tamanho demográfico” (Corrêa, 2011, p. 6). Além disso, cada região guarda uma história específica, resultante do processo de formação socioespacial que a gerou, em um dado momento da produção econômica do país e do mundo, fazendo com que os patamares demográficos e papéis sejam distintos.

Logo, as cidades pequenas são significativas no território. Apresentam-se de forma diversa, devendo-se ter cautela em proferir generalizações, bem como enquadrá-las em tipologias ideais do fato urbano. Nessa perspectiva, o debate do tema no âmbito das políticas públicas e das leis deve ser feita de forma crítica e cuidadosa.

Essa preocupação na Geografia sobre a priorização do enfoque analítico geral ou específico é antiga. Em outras palavras, a Geografia deveria ser uma ciência ancorada no aspecto nomotético (formulação de leis mais gerais) ou idiográfica (considerando os aspectos particulares e singulares da realidade socioespacial), a exemplo do que considerou Moraes (1998). Ou seja, qualquer esforço no sentido de buscar definir a realidade deverá observar as especificidades na organização e gestão do território. Todavia, apesar dessa complexidade regional e da necessidade de se voltar para a análise do território para elaborar políticas, leis e planejamento, grande parte das propostas legislativas têm mirado, sobretudo, ou exclusivamente, a dimensão econômica.

Um dos casos mais emblemáticos de políticas pensadas a partir da discussão do equilíbrio fiscal, no tempo presente, configura-se na denominada “PEC 188”1. Foi apresentada no segundo semestre de 2019, ao Congresso, por iniciativa da ala governista, tendo como primeiro signatário Fernando Bezerra Coelho, do que pertence ao partido MDB (Movimento Democrático Brasileiro) de Pernambuco. Tal movimentação foi articulada às PECs 186 e 187 e, em resumo, as três propostas buscavam, na concepção dos proponentes, o ajuste fiscal das contas públicas, alterando diversos artigos da Constituição. As mudanças são profundas e necessitam ser melhor avaliadas.

No momento de discussão da PEC 188 a realidade urbana foi traduzida por meio da discussão demográfica e econômica. Ou seja, daquilo que pode ser viável municipalmente a partir, sobretudo, da dimensão financeira e do chamado equilíbrio fiscal das contas do Estado, em um possível novo pacto federativo do país. Isso, por outro lado, traria grandes impactos nas arrecadações municipais, possibilitando a extinção e consequente absorção de municípios pequenos por núcleos maiores adjacentes, mudando o uso do território por meio de uma nova política que não privilegia a permanência histórica desses municípios.

A PEC, em medida inicial, atenderia à pauta dos ajustes das contas públicas, mas não resolveria a questão do ponto de vista territorial. Ou seja, não responderia adequadamente às demandas da população desses pequenos núcleos urbanos que poderiam ter, em alguns cenários e prognósticos mais negativos, a diminuição de serviços públicos prestados, bem como a qualidade dos referidos, fazendo com que a renda para a administração municipal ficasse concentrada na sede, caso não sejam inseridas cláusulas no texto, que impeçam que isso possa ocorrer futuramente.

Nesse sentido, a Geografia como ciência social e humana traz uma contribuição importante ao debate. Tendo como base tal posicionamento, o presente texto tem como objetivo central debater a extinção municipal, proposta especialmente pela PEC 188, mas posicionando tal assunto por meio do debate sobre as cidades pequenas e entendendo que não se pode fazer políticas de planejamento e leis que impactem a dimensão geográfica, sem considerar as contradições, tensões presentes no uso do território e na vida dos cidadãos.

Assim, cumpre frisar que, historicamente, no meio científico, deu-se maior ênfase aos centros com número populacional mais expressivo e Produto Interno Bruto (PIB) elevado, embora, nos últimos anos, pesquisadores de diferentes partes do país tenham contribuído para o estudo da realidade de fatos não metropolitanos. A importância de se estudar essa realidade é mais que necessária, dada a complexidade e variedade do fato e do quadro urbano no país e no mundo, justificando a relevância sobre o tema, bem como considerando-se que não há nenhum estudo que se propõe a entender o fato a partir dessa proposta legislativa que terá impacto expressivo na dimensão territorial, mas que apresenta desdobramentos e interações socioespaciais variadas.

Para tanto, este trabalho, além da introdução que apresentou o tema a ser abordado, encontra-se organizado em dois eixos analíticos: o primeiro versa sobre os enfoques teóricos que retratam a discussão das cidades pequenas, bem como a intencionalidade da política de extinção municipal; o segundo enfatiza as contradições do processo de extinção pretendido. As considerações finais, por sua vez, sublinham ideias relevantes na reflexão.

Desenvolvimento

Discutindo as cidades pequenas e a intencionalidade da política de extinção municipalQuadro 1

A definição de cidade no Brasil do ponto de vista legal e administrativo é herança do governo Getúlio Vargas, tendo amparo no Decreto-Lei 311, no artigo terceiro, de março de 19382, em que fica definido que: “A sede do município tem a categoria de cidade e lhe dá o nome.” Ainda no mesmo decreto considerou-se no Art. 11 que: “Nenhum novo distrito será instalado sem que previamente se delimitem os quadros urbano e suburbano da sede, onde haverá pelo menos trinta moradias”.

Nesse momento histórico, a proposição de cidade configura-se mais como aspiração política do que propriamente uma manifestação territorial de fato, que levasse em conta papéis previamente estabelecidos e fornecidos pelos lugares, sendo o critério balizador o número mínimo de habitações e a articulação política existente para a constituição de uma nova sede. Logo, a cidade é entendida enquanto sede do município e o perímetro urbano como área legal da produção da cidade. Sobre o assunto, Corrêa (2011) frisou que:

“(...) reconhecemos que inúmeras vilas e povoados têm funções urbanas, mas o padrão dominante diz respeito à presença da função político-administrativa. Ser sede municipal significa certo poder de gestão de um dado território, o município, para o qual a presença de instituições e serviços públicos, além do acesso a tributos estaduais e federais tornam-se essenciais (...)” (Corrêa, 2011, p. 6).

Tal situação mascara, em muitos casos, a realidade socioespacial, vivenciada pela maioria das cidades, visto que se configura como linha artificial, sujeita às interferências políticas para demarcar aquilo que é ou não considerado urbano, geralmente visto em oposição ao rural, mas que, desde a gênese das primeiras cidades, sempre estiveram primordialmente articulados.

Essa definição não leva em consideração a presença de ruralidade e nem previu que haveria a instalação de residenciais fechados de alto padrão na borda geométrica das cidades desde o último quartel do século XX. Alguns desses loteamentos, inclusive, são propositalmente construídos fora dos perímetros urbanos para que não incidam tributos junto às prefeituras municipais, principalmente do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU). Nesse sentido, observa-se que apesar de se lidar com dimensões espaciais de pequena magnitude, as cidades pequenas possuem especificidades que necessitam ser melhor aclaradas e estudadas.

Os pequenos centros apresentam particularidades e singularidades, manifestas na produção do espaço urbano e na relação com a rede urbana. Vários são os autores que já trabalharam com o assunto, como fresca (1990), Bernardelli (2004), David Bell e Mark Jayne (2006), Sposito e Jurado da Silva (2013), entre outros. Tais autores, guardadas suas particularidades, enfatizaram o debate conceitual e recortes empíricos distintos.

Consequentemente, não se tem por objetivo estocar definições ou conceituações acerca da temática, o que demandaria um outro esforço, em uma dimensão teórica distinta dessa. Entretanto, é preciso considerar que cada cidade possui forma única na morfologia da rede urbana e no território e, assim sendo, “(...) um lugar não pode acolher nem todas, nem as mesmas variáveis. E quando as acolhe, as combina de maneira singular, embora muitas variáveis sejam comuns a vários lugares” (Fresca, 1990, p. 212).

Alguns desses centros podem ter importância econômica relativa, no âmbito regional, como é o caso de Dracena. Esse município, em 2020, conforme estimativas da Fundação Seade (2020)3, apresentava 44.995 habitantes, grau de urbanização de 92,89% com a presença de indústrias do segmento moveleiro que possuíam múltiplas interações econômicas, por meio da comercialização e venda de produtos nas principais redes de varejo nacionais, bem como outras empresas com alcance internacional, a exemplo da que comercializa balanças e cercas para contenção bovina animal.

Já há outros núcleos urbanos em que a ruralidade é relevante, possuindo gradiente populacional menor e que estão no limiar inferior das cidades consideradas pequenas, como é o caso de Nioaque, no Estado de Mato Grosso do Sul, com população estimada4 de 13.930 pessoas e atividades no espaço urbano que são, historicamente e sociologicamente, ligadas ao “mundo rural”, a exemplo de hortas e a produção de pequenos animais nos quintais das residências de alguns moradores, para consumo de subsistência ou venda no comércio local.

O espaço rural não pode ser encarado de forma residual no país, tanto em termos de extensão territorial no computo da federação e em âmbito municipal quanto na importância econômica e na articulação territorial. Nesse sentido, é preciso considerar que:

“(...) a transformação do meio rural, longe de ser um processo homogeneizador, resulta em uma profunda diferenciação dos espaços rurais, tanto no que se refere aos espaços urbanos, quanto internamente, constituindo uma rede de relações que se desenham entre situações urbanas e situações rurais, ambas bastantes heterogêneas (Wanderley, 2000, p. 107)

Em outras palavras, a diversidade do fenômeno do conteúdo cidades pequenas é notável. Entretanto, ao longo dos últimos anos, têm-se observado no Brasil o crescimento de municípios embora, efetivamente, não se tenha incluído mecanismos que possam debater de forma mais qualificada, cientificamente, no plano da gestão pública, no território nacional, tal movimento.

Demográfico5, fornecidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Basta observar que em 1960 eram 2766 municípios, algo bem diferente da realidade de 2010 quando esse número saltou para 5565, isto é, um pouco mais que o dobro de municípios em relação ao primeiro Censo citado, porém revelador de que a urbanização brasileira se intensificou nos últimos 60 anos, seja na criação de muitas cidades quanto no aumento populacional e extensão territorial dos espaços urbanos. Minas Gerais aparece, em 2010, como o estado da federação com a maior quantidade de municípios (853), na sequência estão São Paulo (com 645), Rio Grande do Sul (496) e Bahia (417).

Quadro 1 Número de municípios nos Censos Demográficos, segundo as Grandes Regiões e as Unidades da Federação - 1960/2010. 

Fonte: Fonte: IBGE, Censo Demográfico 1960, 1970, 1980, 1991, 2000 e2010. Adaptação: Autores.

Nesse contexto, conforme o Censo Demográfico de 2010, Borá (São Paulo) era o município com menor número de habitantes do país, seguido por Serra da Saudade (Minas Gerais) com 815 habitantes, Anhanguera (Goiás) com 1020 pessoas, Oliveira de Fátima (Tocantins) com 1037 pessoas.

Nessa perspectiva, uma cidade situada numa região metropolitana terá um papel diferente daquela situada no interior. Cidades pequenas em áreas de controle territorial de uma metrópole tendem a ser incorporadas, tanto em termos de contiguidade do tecido urbano, como configuram-se como espécies de anexos/apêndices da lógica de reprodução do espaço urbano metropolitano, em termos econômicos e da vida social, havendo a necessidade de se pensar em uma gestão do território condizente com tal realidade. Não há fórmulas e receitas para o uso do território e as leis devem sinalizar para a compreensão da vida humana, em múltiplas abordagens.

Cidades com essa especificidade tendem a se conectar rapidamente com espaços da fluidez (Santos, 1996a) e com alto desempenho econômico e se extintas serão rearticuladas ao domínio metropolitano, sem nenhum impeditivo ou constrangimento porque já estão integradas, economicamente e em termos de tecido urbano, por meio de grandes rodovias ou em contiguidade à mancha urbana maior.

A partir dessa argumentação tem-se um leque variado de questões que possam ilustrar o fato urbano, no que tange à dimensão das cidades pequenas e da política pública. Evidentemente, o centro da questão não se refere ao número de municípios existente ou ao número de habitantes que cada um mantem historicamente, mas da forma como é engendrada certa concepção de política econômica do uso do território brasileiro.

Nesse sentido, no artigo 159 da Constituição Federal6 de 1988 há uma imposição de que 23,5% da arrecadação seja transferida ao Fundo de Participação Municipal (FPM), fato que passa a ser criticado por diferentes setores, que ressaltam o peso das cidades pequenas nessa distribuição, embora os maiores repasses estejam entre as capitais e os municípios com maior população e assim:

“(...) de acordo com a classificação dos municípios e do montante do FPM, onde 10% pertencem às capitais dos estados, 86,4% pertencem aos municípios do interior e o restante, 3,6%, constituem o Fundo de Reserva que é destinado à distribuição entre os municípios do interior com mais de 142.633 habitantes” (Bahia Dos Santos and Ribeiro Santos, 2014, p.7)

Logicamente, mesmo que o emprego de um determinado patamar demográfico não possa ser levado exclusivamente em consideração para se definir uma cidade e suas necessidades, do ponto de vista da transferência dos repasses os critérios adotados envolvem, além disto, a renda per capita e a região na qual o município se encontra.

Atualmente, sob o governo do presidente Jair Messias Bolsonaro, foi colocado em curso propostas que visam redesenhar o pacto federativo, como já mencionado anteriormente, cuja perspectiva é a extinção de municípios com menos de cinco mil habitantes. Trata-se de um modelo de inspiração liberal, matemático e financeiro. As intencionalidades da política ficam mais claras ainda quando se leva em consideração medidas e reformas que são colocadas em andamento como é o caso da Reforma da Previdência, aprovada e sancionada recentemente, bem como propostas como a Reforma Administrativa e Tributária que visam assegurar cada vez mais os interesses do capital rentista e financeiro, às expensas dos interesses da população e da qualidade dos serviços públicos prestados.

Entretanto, convém ressaltar que há bons exemplos no Brasil, nos últimos anos, sobre legislações que explicitam preocupação com o tema da condição espacial, dentre os quais há de se destacar: Estatuto da Cidade, por meio da Lei número 10.257 de 10 de julho de 2001, que regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição; a formação de Consórcio Público, Lei número 11.107 de 6 abril de 2005; Lei do Saneamento Básico (Lei número 11.445 de 5 de janeiro de 2007); Política Nacional de Mobilidade Urbana (Lei número 12.587 de 3 de janeiro de 2012); Política Nacional dos Resíduos Sólidos (Lei número 12.305 de 2 de agosto de 2010), entre outras.

Ou seja, não dá para fazer política sem considerar a questão territorial e temporal, deixando em segundo plano o contexto social e geográfico de lado. Importante que sejam pensadas políticas estruturadas, cada vez mais, na compreensão do uso do território pelos seus diferentes agentes, interpretando os nexos e interações daí decorrentes, bem como a possibilidade de desenvolvimento local/regional, em processos mais democráticos que promovam a autogestão das comunidades locais.

Nessa compreensão, é indispensável que antes da realização de qualquer lei e política pública a população seja consultada, principalmente, aquela que faz uso mais periférico do território e sobre a qual essa incida. No território, conforme Santos e Silveira (2001), há “espaços que comandam e outros que obedecem”. São os que obedecem, então, os mais vulneráveis às ações de políticas econômicas que ampliam o desnível social, como perda dos direitos trabalhistas, previdenciários e a negação/restrição aos serviços mais básicos à população, como acesso à água, saneamento básico, energia, saúde e educação.

Observando essa dialética “[...] pode-se dizer que há espaços que comandam e espaços que obedecem, mas o comando e a obediência resultam de um conjunto de condições, e não de uma delas isoladamente” (Santos and Silveira, 2001, p. 265). Há, portanto, lógicas perversas na produção e uso do território e formas mais solidárias em que se articulam outras relações presentes, tanto nos espaços que comandam quanto naqueles que obedecem. Pode-se comentar, grosso modo, que tais modos de concepção e ação territorial mobilizam as distintas intencionalidades, na luta pela vida e pelo território. Nesta linha de raciocínio, retomamos Santos (1996a), ao considerar que:

A noção de intencionalidade permite uma outra releitura crítica das relações entre objeto e ação. ‘A intencionalidade é o traço fundamental do vivido em geral’ disse Jean Beaufret, referindo-se à ideia de Husserl, para quem a intencionalidade é ‘essa presença das coisas e nas coisas’ (SANTOS, 1996a, p. 89).

E ainda: “(...) Essa noção é igualmente eficaz na contemplação do processo de produção e produção das coisas, considerados como um resultado da relação entre o homem e o mundo, entre o homem e o seu entorno” (SANTOS, 1996a, p. 73).

Enquanto as redes solidárias buscam se articular para mostrar que a vida é muito importante e sublinhar o território como instância da vida social como antítese dos processos dominantes de produção capitalista, outras redes intencionais já costuradas pelo poder hegemônico se entrecruzam nessa dinâmica como tese. Ou seja, nesse campo de batalha as finanças têm, muitas vezes, maior importância que a vida social das pessoas: o lucro é colocado em patamar superior, buscando ser a máxima síntese das relações históricas da sociedade, incorrendo em novas contradições sociais e espaciais a partir desse movimento.

Em outras palavras, tais intencionalidades são alimentadas, em geral, por lógicas estranhas ao território nacional e na escala local e regional, tendo lastro, sobretudo, no fenômeno da mundialização do capital e no poder do capital financeiro, conforme Chesnais (1996), em que a crise econômica se torna elemento fundamental no processo de reprodução do capital.

As contradições na dialética do processo

Historicamente, parte dos governos capitalistas busca inspiração no liberalismo e no neoliberalismo para governar ou são pressionados e levados a adotarem esses modelos, em razão de cobranças do sistema financeiro internacional e por meio da ação de determinados bancos e fundos de investimentos que controlam as dívidas públicas. Nos últimos anos, a financeirização ganhou importante relevo, como nova forma de acumulação, colocado como paradigma de desenvolvimento, sendo disseminado no meio empresarial e em vários governos, por meio da adoção da desregulamentação de mercados e junto ao imperativo da flexibilidade (Harvey, 2008).

A PEC 186 em tramitação, por exemplo, traz, entre outras medidas, a possibilidade de redução salarial dos servidores públicos em até 25%, bem como aponta para a restrição à abertura de concursos públicos e contratações, algo que poderá ter, igualmente, efeito nos estados e municípios da federação, já que para terem acesso a crédito novo terão de se ajustar à legislação federal.

Dessa maneira, o artigo 115 da PEC 188/2019 acaba colocando, especialmente, a questão da viabilidade municipal no centro das discussões. Para que se tenha ideia sobre o assunto, transcreve-se7 o referido:

  • Art. 115. Os Municípios de até́ cinco mil habitantes deverão comprovar, até́ o dia 30 de junho de 2023, sua sustentabilidade financeira.

  • § 1° A sustentabilidade financeira do Município é atestada mediante a comprovação de que o respectivo produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 156 da Constituição Federal corresponde a, no mínimo, dez por cento da sua receita.

  • § 2° O Município que não comprovar sua sustentabilidade financeira deverá ser incorporado a algum dos municípios limítrofes, a partir de 1° de janeiro de 2025.

  • § 3° O Município com melhor índice de sustentabilidade financeira será o incorporador.

  • § 4° Poderão ser incorporados até́ três Municípios por um único Município incorporador.

  • § 5° Não se aplica à incorporação de que trata este artigo o disposto no § 4° do art. 18 da Constituição Federal.

  • § 6° Para efeito de apuração da quantidade de habitantes que trata o caput serão considerados exclusivamente os 4dados do censo populacional do ano de 2020.

A medida é uma ação de contenção de gastos públicos. Nessa concepção, no presente texto, advoga-se que o território é elemento chave e essencial na produção das políticas públicas, pois, é a base da vida, do movimento social, cultural e da realização econômica no tempo. Consequentemente, é necessário frisar que as cidades pequenas importam, portanto, à análise do território.

Muitas dessas pequenas localidades têm em sua extensão territorial espaço rural com grande diversidade e peso significativo, produzindo, por outro lado, função polarizante sobre a cidade, não gerando a arrecadação desejada pela proposta de emenda. Isso não significa, por outro lado, que tais municípios não apresentem relações específicas importantes do ponto de vista da dinâmica agroindustrial.

Na PEC, em questão, são estabelecidos que os municípios com menos de cinco mil habitantes e que possuam arrecadação própria de IPTU (Imposto Predial Territorial Urbano), ISS (Imposto sobre Serviços) e ITBI (Imposto sobre a transmissão de Bens Imóveis) inferior a 10% sobre o total das receitas serão extintos e incorporados ao município vizinho com maior desempenho até 2023. Segundo estudo realizado pela Confederação Nacional dos Municípios (CNM): “No total, 1217 municípios entre os 1252 com população inferior a 5 mil habitantes não atingiu hoje o índice mínimo estipulado pela emenda para permanecerem existindo de forma autônoma” (CNM, 2019, s/p).

Para que se tenha compreensão desse fato foi construído o mapa (Figura 1) que ilustra justamente o que seria hipoteticamente a implantação da PEC 188 no território. Com isso, ainda de acordo com o mesmo estudo da CNM (2019), com a nova divisão do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) estados como Minas Gerais, Rio Grande do Sul, São Paulo, Paraná e Santa Catarina serão os Estados mais afetados com perdas bilionárias de arrecadação.

Na porção Sul e Sudeste do país verifica-se forte impacto dessa alteração, sobretudo, quando se leva em consideração o Oeste do Estado de São Paulo, Paraná e Santa Catarina. A Região Concentrada (Regiões Sul e Sudeste do país) conforme a proposta de Santos e Silveira (2001) é uma das mais impactadas desse movimento, ainda que mantenha poder territorial, econômico e demográfico, posto seguir no controle das demais regiões. “Nessa Região Concentrada do país, o meio técnico-científico-informacional se implantou sobre um meio mecanizado, portador de um denso sistema de relações (...)” (Santos and Silveira, 2001, p. 269).

Fonte: PEC 188. Organização

Figura 1 Extinção municipal no Brasil, conforme PEC 188 (2019). 

Já quando se leva em consideração realidades regionais como a da Região Centro-Oeste, constata-se menos impactos territoriais e econômicos, em razão da aplicação da medida. A estrutura fundiária dessas áreas é mais concentrada, as redes urbanas do ponto de vista da dimensão territorial são extensas, porém o número de cidades é rarefeito, há pouca concentração demográfica, em comparação às Regiões Sul e Sudeste, em uma área em que a presença do espaço rural é bastante forte e domina, inclusive, na política econômica e governamental desses Estados. Ademais, é preciso lembrar que:

A Região Centro-Oeste, constituída pelos Estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás e Tocantins, é uma área de “ocupação periférica” recente. O meio técnico-científico-informacional se estabelece sobre um território praticamente “natural”, ou melhor, pré-técnico, onde a vida de relações era rala e precária (Santos and Silveira, 2001, p. 271)

Tal fato incide, inclusive, na formação socioespacial dessa área, a exemplo do que ocorre com a Região Norte do país que representa a nova frente de acumulação capitalista do século XXI. Além disso, inspira governos neoliberais a incentivar a sua ocupação pela mineração e atividades agropastoris, ressaltando-se que: “Num arranjo diferente em relação ao resto do país, sua ocupação decorre de um conhecimento fundado em modernos satélites e radares, ao passo que o inventário dos reinos vegetal e animal ainda não foi concluído” (Santos and Silveira, 2001, p. 273).

No Nordeste, os estados da federação mais afetados com a extinção municipal serão respectivamente: Piauí, Rio Grande do Norte e Paraíba. Tal região, por sua vez, expressa “[...] uma área de povoamento antigo, onde a constituição do meio mecanizado se deu de forma pontual e pouco densa” (Santos and Silveira, 2001 p. 271). Há várias cidades no interior que possuem uma dinâmica demográfica baixa, problemas com as prolongadas estiagens, embora melhorias tenham sido efetuadas nos últimos anos, especialmente, com a implantação de cisternas e irrigação.

Do ponto de vista empírico, não se dá para fazer uma análise do futuro a partir da História e da Geografia, mas pode-se refletir sobre os possíveis cenários que serão impactados, em relação aos municípios extintos. Frisa-se, por conseguinte que qualquer tentativa de visualizar o futuro soa como especulação, mas é fundamental proferir uma reflexão possíveis impactos dessa ação, das quais sublinha-se hipoteticamente os seguintes pontos:

  1. Dificuldade em manejar atividades rotineiras que necessitem ação direta e empenho na manutenção das cidades e do espaço rural imediatos, de forma emergencial e urgente, uma vez que a proximidade das autoridades públicas do executivo e legislativo mitigava, em geral, tais necessidades;

  2. Conflito de interesses com as elites e dirigentes dos municípios maiores pelos quais foram absorvidos. Os municípios incorporadores poderão ter interesses antagônicos àqueles das elites e empresas locais, divergindo, portanto, na condução do uso do território, causando dissenso e animosidades locais;

  3. Submissão ao município maior, que passará a ditar como devem ser implantadas leis e ações públicas no município extinto;

  4. Perda da autonomia política e administrativa;

  5. Redução dos serviços públicos prestados nos municípios extintos, em razão dos cortes oriundos da extinção municipal;

  6. Fechamento de escolas e postos de saúde de acordo com a conveniência do município predominante;

  7. Diminuição da qualidade de vida das pessoas, resultante da piora da infraestrutura, equipamentos e serviços urbanos oferecidos.

Lembrando que: “Diversas atribuições constitucionais, relacionadas ao gerenciamento da política de desenvolvimento urbano, cabem aos municípios”. (Dias, 2012, p. 111). Dentre essas, devem ser ressaltadas a prestação de serviços públicos como transportes, proteção do patrimônio público, preservação ambiental, educação, saúde e guardas municipais (Dias, 2012, p. 111).

Diante das considerações apresentadas, não se trata de fazer uma leitura inflexível sobre o território, nem cair na falsa ilusão de uma inocência teórica, a respeito do fato urbano e da política. Verifica-se em muitas cidades pequenas também ganhos abusivos por parte de determinados prefeitos, agentes públicos e do legislativo, em relação ao porte e arrecadação municipal. Ou seja, muitas cidades possuem fragilidades do ponto de vista da consolidação e função urbana, em razão do predomínio da agropecuária, configurando-se como reservatórios de mão de obra para as atividades agrícolas, havendo poucas atividades comerciais, de serviços e industriais.

Logo, é importante ter em mente que as contradições do território não serão resolvidas com a adoção da extinção de municípios com baixo porte demográfico e capacidade fiscal frágil, pois são inerentes ao processo de desenvolvimento da sociedade e da dinâmica capitalista, bem como da tradição das oligarquias em emancipações municipais que atendem seus projetos de poder. Concretizando-se a proposta em tela, haverá municípios que ganharão em termos de território e economia enquanto outros, extintos, perderão importância no contexto político e econômico, nascendo desse processo contraditório novas desigualdades, no que tange às intencionalidades presentes na produção do território.

Consequentemente, novas formas de gerir o território desses municípios, com menor patamar demográfico, poderiam surgir como um meio termo para a análise da política pública e da lei, a exemplo de conselhos municipais eleitos pela população, ao invés de câmaras municipais, transformando-se a máquina pública em formas mais representativas da ação social no uso do território.

Endlich (2006, p. 307) contribuiu para a reflexão dessa realidade quando escreveu que:

A instituição municipal surgiu da capacidade de autogestão da sociedade. Ao longo do tempo, embora não de uma maneira linear, mas num trajeto marcado por insurgências, tal instituição passou a ser comandada de forma autoritária por oligarquias locais e interesses forâneos. A sua captura por estes interesses comprometeu a autonomia, tornando alheio aos cidadãos o encaminhamento político local.

Dessa maneira, é necessária a defesa de uma política territorial no Brasil que é diferente de uma política simplesmente setorial. A base para qualquer ação do Estado deve partir da produção da vida social, cuja ação também deve ser democrática, observando tanto as desigualdades quanto a diversidade das ações e dos locais. Mas, não se pode fazer leis avançadas dentro de uma proposição conservadora, devendo-se promover as transformações necessárias para se modificar tais condições e as relacionar ao aparato legal condizente. As reformas no capitalismo não serão revolucionárias, posto que visam, tão somente, manter um determinado status quo, quiçá, ampliar seu poder.

Há, portanto, a necessidade urgente de se refletir a partir de um projeto territorial social com base na negociação com os diferentes agentes, na busca pelo desenvolvimento territorial, mesmo que em uma proposta utópica em que o conteúdo possa alterar a forma e vice-versa de modo dialético e constante.

Considerações finais

Ao longo da construção do texto fica nítido que sem efetuar a análise do uso do território a reflexão sobre a política pública ou da lei mostra-se deficiente de sua base primordial. Diante disso, defende-se a ideia de que as cidades pequenas constituem um tema bastante caro à Geografia, havendo a necessidade de melhor compreendê-las para a propositura de uma leitura crítica de mundo, assim como da sociedade e dos aspectos legais e normativos que regem o arcabouço civil e constitucional da sociedade.

Assim, interpretando o sentido da PEC 188, verifica-se nitidamente a intencionalidade da proposta, no sentido de promover o ajuste fiscal e um novo pacto federativo. Fica claro que tais cidades servem como importantes pontos de organização e gestão do território sendo, portanto, legítima a garantia de permanência das referidas. Entretanto, é importante elencar variáveis de viabilidade municipal para o futuro do processo territorial de definição e reconhecimento de emancipação municipal, mas ajustando tal condição às dimensões espacial, social e histórica dos diferentes lugares e regiões, na produção e uso do território.

Trata-se, portanto, de privilegiar no território usado, além da interpretação dos conteúdos econômicos, políticos, a representatividade da sociedade, na proposição de políticas e promovendo maior autonomia e articulação territorial. Consequentemente, mudar-se-ia o foco de debate para a valorização da vida, com ênfase na reprodução social, base para o desenvolvimento efetivo do território e das vidas nele existentes, mesmo que se trate especificamente do universo conceitual das cidades pequena e de seus habitantes.

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Recebido: 23 de Maio de 2021; Aceito: 07 de Janeiro de 2022

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