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Revista Universidad y Sociedad

versión On-line ISSN 2218-3620

Universidad y Sociedad vol.14 no.5 Cienfuegos sept.-oct. 2022  Epub 30-Oct-2022

 

Artículo original

Reflexões sobre o reúso potável direto e dessalinização para a garantia do direito humano à água

Reflexiones sobre el reúso potable directo y desalación para garantizar el derecho humano al agua

Haneron Victor Marcos1  * 
http://orcid.org/0000-0003-2299-4694

Bessy Castillo Santa María2 
http://orcid.org/0000-0001-5320-4005

1Universidad César Vallejo/Escuela de Gestión Pública y Gobernabilidad/Lima-Perú.

2Dirección de Políticas Migratorias, Unidad de Formación de Investigación/MIGRACIONES/Lima-Perú.

RESUMO

Este artigoapresenta como objetivo estudar caminhos alternativos às políticas e técnicas tradicionais de fornecimento de água potável tendo como justificativa a má distribuição de recursos hídricos no Brasil, assim como as crises hídricas cada vez mais frequentes e profundas, atentos ao Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 6. Com enfoque qualitativo e por meio de revisão bibliográfica e de suporte em documentos oficiais e normas e legislação relacionadas ao tema, há foco no reúso potável direto (RPD) e na dessalinização, dispondo como casos paradigmas a cidade de Windhoek (capital da Namíbia), com mais de cinco décadas de experiência em larga escala, e o recente e inovador projeto peruano denominado PROVISUR, que respondem às duas técnicas, respectivamente. O artigo evidencia a necessidade de que o tema não mereça tratamento eminentemente economicista, mas dentro da perspectiva da água enquanto um direito humano. Dos resultados e da discussão, extrai-se que esses modelos, factíveis técnica e economicamente, considerados em nossa realidade nacional como alternativos, devem ser encarados desde já dentro da responsabilidade estatal transgeracional.

Palavras-chave: Reúso potável direto; Dessalinização; Direitos humanos; Acesso à água; Crise hídrica

RESUMEN

Este artículo presenta como objetivo estudiar caminos alternativos a las políticas y técnicas tradicionales de suministro de agua potables teniendo como justificativa la mala distribución de los recursos hídricos en Brasil, así como las crisis hídricas cada vez más frecuentes y profundas, atentos al Objetivo de Desarrollo Sostenible (ODS) 6. Con enfoque cualitativo y por medio de revisión bibliográfica y de soporte en documentos oficiales y normas y legislación relacionada al tema, hay foco en el reúso potable directo (RPD) y en la desalinización, disponiendo como casos paradigmas la ciudad de Windhoek (capital de la Namibia), con más de cinco décadas de experiencia en gran escala, y el reciente e innovador proyecto peruano denominado PROVISUR, que contestan a las dos técnicas, respectivamente. El artículo hace evidencia a la necesidad de que el tema no merezca tratamiento eminentemente economicista, sino que dentro de la perspectiva del agua en cuanto derecho humano. De los resultados y de la discusión, se extrae que eses modelos, factibles técnica y económicamente, considerados en nuestra realidad nacional como alternativos, deben ser encarados desde ahora dentro de la responsabilidad estatal transgeneracional.

Palabras clave: Reúso potable directo; Desalinización; Derechos humanos; Acceso al agua; Crisis hídrica

Introdução

O Brasil, que sempre se postou como nação agraciada pela suficiência hídrica, por seus mananciais de superfície e seus aquíferos, enfrenta, pelas alterações climáticas e ações antrópicas, cada vez mais frequentes e severas crises hídricas. Estamos, inclusive, sob vigência de uma crise com contornos dramáticos. Essa crise, que impacta nas disponibilidades para os mais variados usos de consumo e na produção energética, expõe as desigualdades: nem todos, no Brasil e no Mundo, são afetados da mesma maneira (Melo, 2019). No Brasil, a distinção de disponibilidade entre as regiões norte e nordeste são evidentes.

Estima-se que 31% dos brasileiros vivam em locais de baixa segurança hídrica, com enfrentamento de racionamentos e/ou colapso em períodos de seca; 41% em regiões que exigem algum tido de expansão ou melhoria, enquanto somente 27% vivam em condições consideradas - hoje - satisfatórias. A desigualdade é, ainda, evidenciada pela informação de que 40% da população não atendida pelos serviços está na faixa de renda abaixo de 1 salário mínimo (Gomes, et al., 2020).

A ONU registra que 2,1 bilhões de pessoas não possuem acesso a serviços de água com segurança, e 4,5 bilhões carecem de serviços de saneamento. Há previsão de que até 2050, cerca de 5,7 bilhões de pessoas poderão estar vivendo na experiência de crise ou estresse hídrico, com maior afetação na Ásia e África, justamente em áreas que hoje já operam com intensa desigualdade no consumo de água per capita/dia: 575 litros ao cidadão estadunidense, 15 litros ao etíope, 4 litros ao moçambicano, v.g. (Melo, 2019).

Há projeções que indicam que a demanda global por água doce excederá em 40% a oferta em 2030, consolidando o estresse hídrico em escala global.A água salgada presente nos oceanos cobre cerca de 75% da superfície da Terra, representando 97,4% de toda a água. Dos míseros 2,6% restantes de água doce, 90% corresponde às geleiras, estando o restante em superfície, como rios e lagos, e em fontes subterrâneas (Francisco & Arica, 2018).

A região brasileira do Pantanal, maior área úmida continental do planeta, em setembro de 2021, viu a necessidade de fornecimento artificial (caminhões-pipa) para a dessedentação de animais selvagens. Nesse mesmo período, o país sofre grave crise econômica pela necessidade de socorro às termelétricas. Inolvidável deve ser, também, a grave crise hídrica enfrentada pelo estado mais populoso do país, São Paulo, entre os anos 2014 e 2016.Em se tratando de água potável, essencial à manutenção da vida, alçada ao status de Direito Humano pela ONU, e presente como um dos (n. 6) Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) na Agenda 2030 dessa mesma instituição, as políticas públicas exigem organização de longo prazo, especialmente em um cenário de progressão demográfica combinada com correspondente esgotamento ou conspurcação dos mananciais disponíveis.

Diante desses desafios, este artigo pretende, com método qualitativo, com base em revisão bibliográfica, por meio de doutrina, produções jornalísticas, normas e documentos oficiais,discutir duas saídas operacionais substitutivas ao modelo tradicional para a garantia de acesso ao direito humano de água potável: a dessalinização, com experiências ainda incipientes no Brasil e em diminuta escala, e o reúso potável direto, sem experiência local, mas com paradigmas antigos e em larga escala no exterior.Como ilustração das possibilidades e desafios, serão apresentados como estudos de caso o projeto PROVISUR de dessalinização em Lima, Peru, organizado pela estatal SEDAPAL (Servicio de Agua Potable y Alcantarillado de Lima), e o modelo de reúso potável direto (tratamento de esgoto sanitário para consumo humano) aplicado em Windhoek, capital da Namíbia.

Desenvolvimento

Dessalinização para o consumo humano: questões nucleares e a experiência limenha

Ambientados em um planeta em que 97,4% da água é salgada, afetado pelo insustentável crescimento demográfico, acompanhado por impactos ambientais artificiais que, somados aos naturais, desencadearam graves crises hídricas, com projeções ainda mais alarmantes, é natural que os seres humanos centrem cada vez mais esforços em tecnologias para torná-la potável.

A dessalinização é conceituada como o processo físico-químico de extração de sais da água, quer seja ela do mar, de efluentes ou reservatórios subterrâneos; com mais variadas tecnologias, há séculos o homem se socorre desse meio para sua sobrevivência, com registros que remontam a 320 A.C. (Leitão, 2020).

Historicamente, os métodos de dessalinização são os mais diversos, passando da destilação, congelamento, compressão por vapor, osmose reversa, dessalinização térmica, eletrodiálise, até outros em desenvolvimento, como de deionização capacitiva, por exemplo (Santos, 2013;Torri, 2015; Leitão, et al., 2020).

A dessalinização pode ser aplicada sobre a água do mar ou sobre águas salobras (como ocorre, por exemplo, em aquíferos na região nordeste do Brasil, e no norte do Quênia). Sua utilização, historicamente, se dá mais incidente em países desérticos e com pouca disponibilidade hídrica, como no continente africano e no Oriente Médio.De acordo com a Associação Internacional de Dessalinização (IDA, 2021), 183 países praticam em algum grau a dessalinização, com uma capacidade global de 78.349.678 m³ por dia. No Brasil, de acordo com o Serviço Nacional de Informações sobre Saneamento, e para um traço comparativo, em 2018 havia uma produção diária convencional de 43.835.616 m³ (Brasil.SNIS, 2019).

Considerando que o Brasil tem 2,7% da população mundial em 2021, e que a capacidade global de plantas dessalinizadoras é de cerca de 80% acima da brasileira, percebe-se um gigantesco mercado potencial, mas, também, que há um indicativo de que as experiências seguem associadas a pequenos projetos, e de exceção. Alguns fatores podem ser considerados para essa “parcimônia” na utilização desse método: a falta de consciência governamental sobre os riscos inerentes à (in)suficiência dos mananciais de água doce (dentro das perspectivas de políticas públicas de curto, médio e longo prazo), o custo de produção, e os impactantes resíduos (sais concentrados).Enquanto para alguns países, por sua condição geográfica, o método é imperioso, consistindo um problema público de solução imediata, como ocorre com Arábia Saudita (70% da água consumida) e Curaçao (100%), para a maioria segue como solução alternativa e pontual (Leitão, et al., 2020).

Todo método inovador e de exceção ao tratamento convencional surge com o estigma - real ou superestimado - do alto custo.Por certo, que em regiões em que há ausência de mananciais de água doce, não tratamos da hipótese de opção entre métodos e custos; quando se apresentaque em estudos realizados no sertão nordestino brasileiro o custo médio de uma planta dessalinizadora para atender 400 pessoas é de R$ 278 mil, e que o custo de manutenção anual é de R$ 18 mil (Leitão, et al., 2020), tratamos de uma correlação investimentos públicos versus acesso a um direito humano, e não sob as premissas mercadológicas de equilíbrio econômico-financeiro.

Estima-se que pelo método de osmose reversa (o mais difundido e considerando com menor custo), tendo como parâmetro a aplicação norte-americana, o custo varie entre US$ 0,75 a US$ 1,50 para água do mar, e de US$ 0,32 para águas salobras o m³, ainda a se considerar os custos altos de implantação e manutenção, como das membranas, do capital humano qualificado, entre outros (Torri, 2015; Leal, 2020; Leitão, et al., 2020). Para métodos térmicos em larga escala, muito utilizados, com experiências chinesas e no Oriente Médio, o custo varia entre US$ 0,50 e US$ 1,00 (Torri, 2015).

O descenso nos custos é destacado por Santos (2013), ao informar que respeitante ao método de osmose reversa, os custos médios caíram de US$ 5,00 o m³ na década de 1970, para aproximados US$ 0,50 hodiernamente, sendo que em relação à agua salobra se pode chegar a metade desse valor. Santos (2013) na figura 1 abaixo expressa, em gráfico, essa tendência de custo, que tem sua redução associada com um maior exercício global e o avanço das tecnologias aplicadas:

Fig. 1 - tendência de custo (Santos, 2013)  

O tratamento convencional pode exigir até seis fases à potabilidade (coagulação, floculação, decantação, filtração, desinfecção, fluoretação e correção doPh - Francisco & Arica, 2018), com custos que têm aumentado em várias partes do mundo (Torri, 2015), enquanto aqueles relacionados para dessalinizar têm diminuído, de acordo com o aumento da demanda, e de outras questões que impactam no tratamento convencional. O custo dessa modalidade é impactado por diversos fatores, como a qualidade da água bruta,o manuseio e forma de operação, a qualidade dos equipamentos, custos de implantação, manutenção e operação, localização geográfica, disposição final de lodo, entre outros.

Ainda que essas fontes não apresentem uma completude informativa com relação à composição de custos, ao recorrermos ao diagnóstico do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (Brasil. SNIS, 2019), observamos um valor de despesa total média de R$ 3,89, com variações entre R$ 0,31 a R$ 8,85.

Considerando a cotação de 19 de outubro de 2021 (R$ 5,58), a média corresponderia a US$ 0,70. Os números não admitem precisão, mas há um indicativo de factibilidade, notadamente para aqueles sistemas que pelo método tradicional já destoam (com grande superioridade) da média.

Essas projeções, sem embargo, não apresentam indicativo de respeito a parâmetros de sustentabilidade, tal como de respeito ao marco do gerenciamento de água no continente europeu conhecido como Water Framework Directive(WFD), que introduz princípios axiais à valoração da água, tal como o princípio da não deterioração dos mananciais, de controle da poluição e gestão integrada de recursos, de custo total de recuperação associado a serviços de água e uso de áreas aquáticas, e o da participação pública e da transparência nas políticas de água.

Espraiando para os demais aspectos de análise, temos a grande emissão de carbono, pelo alto consumo de energia (Santos, 2013; Bertossi & Robert, 2019), e o impacto ambiental, que vem sendo objeto de consideração dos mais relevantes, decorrente das descargas de produtos químicos e concentrados; o rejeito, enquanto subproduto e enquanto proporção, pode ser ilustrado pelo dado de que a cada dois mil litros de água salobra que entram na planta dessalinizadora, produzem-se mil litros de água potável, e outros mil litros de salmoura, com alta concentração de sal, geralmente lançados por emissários oceânicos, injetados em poços de grande profundidade, dispostos em bacias de evaporação ou de percolação, entre outros meios, sem ignorarmos iniciativas mitigadoras possíveis, como a aplicação do rejeito para fins agrícolas ou pecuários (Leitão, et al., 2020).

Ainda que diminuta a aplicação global do método, Leitão et al. (2020) também ilustram que as 16 mil usinas de dessalinização em atividade do mundo em 2019 produziam 143 milhões de m³ de salmoura por dia (número superior ao apresentado pela IDA em 2021), que seria o suficiente para cobrir o estado norte-americano da Flórida com uma camada de 30,5 centímetros dessa substância.

A questão da qualidade da água potável, de seus parâmetros físico-químicos, é suficientemente regulada no Brasil, e, inclusive, a própria Organização Mundial de Saúde (OMS) estabelece o limite permitido de salinidade ou total de sólidos dissolvidos para água doce de 500 ppm (partes por milhão), podendo chegar aos 1000 ppm para casos específicos, como agrícolas e esportivos - destacando que a água do mar pode atingir uma proporção de até 45000 ppm (Santos, 2013).

Sem embargo, propriamente “do direito às águas salobras e salgadas” há carência de regulamentação no ordenamento jurídico brasileiro;e, à mingua de experiências nacionais de efetivo impacto ou amplitude para o encerramento de brechas públicas relacionadas com as crises ou estresses hídricos contemporâneos ou projetados e que tenham como aspiração a utilização de fontes salobras ou oceânicas, é importante observamos um paradigma que se aproxime de nossa realidade econômica e social. Antes de olharmos “para cima” (caminho eurocêntrico, v. g.), houve a decisão de olharmos para experiências ao lado, no caso a peruana com a recente experiência do projeto PROVISUR, que por parceria público-privada recém-inaugurou uma planta dessalinizadora para atendimento de uma população aproximada de cem mil pessoas. Vamos a ela.

O paradigma peruano: Provisión de Servicios de Saneamiento para los Distritos delSur de Lima (PROVISUR)

A escolha de um projeto peruano como paradigma resulta não somente de sua dimensão, mas de suas especificidades e da similaridade do Peru em sua evolução - proporcional - econômica e social ao longo dos últimos anos em comparação com o Brasil. Emem 1995 o Brasil tinha um Produto Interno Bruto (PIB) total de US$ 671,35 bilhões e um índice de desenvolvimento humano (IDH) de 0,65; em 2015, o PIB saltaria para US$ 1652,32 bilhões e o IDH para 0,76. O Peru, a seu turno, passaria, no mesmo período, seu PIB de US$ 47,92 bilhões e seu IDH 0,65, para US$ 181,21 bilhões e 0,75.

Uma vez alcançados - praticamente - pelo mesmo índice de desenvolvimento humano, com similaridades de capacidade de consumo e disponibilidade relacionada aos serviços públicos essenciais, uma “aposta” em um projeto em parceria público-privada (PPP) de dessalinização de US$ 102 milhões (mais de meio bilhão de reais na cotação atual) para o atendimento de uma população flutuante entre 24 e 100 mil pessoas na cidade de Lima (Peru, ProInversión, 2012) merece atenção, uma vez que enfrenta o paradigma do alto custo frente um direito humano que reivindica a modicidade tarifária, quando não sua gratuidade.

Histórico do projeto e suas características nucleares

O plano de promoção do projeto data de julho de 2012, como o primeiro a incorporar a dessalinização no abastecimento enquanto serviço público. Com olhos à sustentabilidade, atento às limitações hídricas regionais, objetivava avançar sobre brechas públicas relacionadas ao abastecimento em regiões mais periféricas, atendendo também a uma retórica de crise hídrica fortemente enraizada nas políticas públicas de água em Lima, alimentada pelo risco real e por conflitos hídricos nos Andes (Bertossi & Robert, 2019).

A capital do Peru, com seus mais de dez milhões de habitantes, é, ainda, frequentemente apresentada como a segunda maior metrópole localizada em um deserto depois do Cairo; nela, a vulnerabilidade dos recursos hídricos em um contexto de mudanças climáticas enfrenta um aumento de demanda (Robert, 2019). Lima (e Callao) é abastecida, nos serviços públicos de saneamento, pela SEDAPAL (Servicio de Agua Potable y Alcantarillado de Lima), uma empresa cem por cento estatal criada em 1981, e que apresenta uma cobertura de 93 % de água, com aproximadamente 800 mil pessoas (7%) ainda não alcançadas pelo serviço (Peru, Sedapal, 2021).

O projeto fugiu dessa concepção de atenção efetivamente periférica (em seu aspecto geográfico, econômico e social), para alcançar distritos distantes da capital (40 km) que possuem dedicação turística, ocupados majoritariamente por classe média e alta, e que viam sua expansão estruturada tolhida pelo não atendimento efetivo e suficiente da estatal. Diz-se isso, pois é em 2008 que a Sedapal assume essa região sul de Lima, quando já havia, em 2007, proposta de PPP por uma empresa norte-americana para uma planta dessalinizadora para substituir a dependência de poços e rios sujeitos a estresse; a proposta não foi aceita por discordâncias relacionadas com a sobrecarga financeira imprevista e pela falta de controle - na proposta - sobre a construção na planta que seria concedida para 23 anos (Bertossi & Robert, 2019).

O projeto (PROVISUR) nasce no ambiente do Ministerio de Vivienda, Construcción y Saneamiento, com execução da Agencia de Promoción de laInversión Privada - ProInversión, no ano de 2012, com o objetivo de atendimento com os serviços de água e esgoto em quatro distritos no sul de Lima: PuntaHermosa, Punta Negra, San Bartolo e Santa Maria del Mar, sendo este último até então administrado pelo setor privado, ficando condicionado no projeto o repasse do sistema à estatal Sedapal (Peru, ProInversión, 2012). É a única planta ou estação dessalinizadora de água do mar construída na mesma área de uma estação de tratamento de efluentes (Fernández, 2021).

De iniciativa ministerial, o projeto de PPP se apresentava como autossuficiente, sem subvenção pública, e destinado - a administração das estações dessalinizadora e de tratamento de efluentes - à concessão à iniciativa privada pelo prazo de 25 anos, por contrato com a intervenção da Sedapal. A responsabilidade da empresa contratada seria de construção das estações e sua operação, competindo à Sedapal a gestão dos serviços de distribuição e a operação somente da estação de tratamento de efluentes (Peru.ProInversión, 2012; Bertossi & Robert, 2019).

Aprimeira etapa previa 250 l/s (litros por segundo), com possibilidade de evolução a 400 l/s de água potável, e, respectivamente, 135 l/s e 180 l/s para a planta de tratamento de efluentes. A licitação foi vencida pela empresa espanhola Técnicas de Dessalinização de águas S.A. (TEDAGUA, integrante do Grupo Cobra), com adjudicação em 17 de dezembro de 2013, e colocação em serviço no ano 2021.

Fernández (2021) descreve detalhadamente os diferentes componentes das infraestruturas construídas no âmbito do PROVISUR: captação de água do mar (peneira passiva localizada a 535 metros da praia de Santa Maria del Mar e a 17 metros de profundidade com foco na redução de impacto ambiental); estação de bombeamento (edificada sob uma estrutura viária e um parque de estacionamento evitando o impacto urbanístico e turístico. É uma estrutura que já influencia no início da operação com a introdução de elementos químicos); planta dessalinizadora e de tratamento (destaque ao fato de que compartilha da mesma área da estação de tratamento de efluentes, com superfície de aproximadamente 41000 m², com distância aproximada de 900 metros da praia. A tecnologia de osmose inversa ou reversa é acompanhada da linha de tratamento por flotação por ar dissolvido, filtros autolimpantes, ultrafiltração, injeção de CO2 e leitos de calcita); reservatório de água potável (recebe, por bombeamento da estação, a água produto com capacidade de quase 10000 m³); rede de distribuição (mais de 9 km de redes principais com dimensões entre 400 e 700 mm, chegando a mais de 115 km de redes secundárias de distribuição); rede de esgoto e estações de bombeamento (realização de rede a atingir aqueles alcançados pelo novo serviço de abastecimento público de água potável. Três dos quatro distritos tinham redes e estações de tratamento em diferentes estados de conservação, e o distrito de Punta Negra era desprovido do serviço. Houve a centralização a um emissor principal para encaminhamento à nova planta. Foram mais de 120 km de novas tubulações); estação de tratamento e reutilização de efluentes (construída junto a área da planta dessalinizadora para o compartilhamento de alguns serviços visando maior eficiência, com foco na segurança para evitar contaminação cruzada. O pré-tratamento é feito em edifício fechado e desodorizado); emissário submarino (com destaque de ser único para a captação e para a disposição final de efluentes, com diferença entre os respectivos pontos e considerando o papel da salmoura na ação biocida sobre os microrganismos).

Fernández (2021) ilustra, por fotografia (fig 2), a magnitude da planta da ETA dessalinizadora e da ETE conjunta:

Fig. 2 - foto aérea da planta dessalinizadora e de tratamento de efluentes (Fernández, 2021)

Na perspectiva dos órgãos oficiais, a partir da operação do PROVISUR, iniciada em julho de 2021, espera-se como principais benefícios o aproveitamento sustentável dos recursos hídricos para o abastecimento da zona objeto, ampliação da cobertura e melhoramento da gestão de serviços de saneamento nos balneários sul de Lima, redução das enfermidades de origem hídrica (Peru, ProInversión, 2012; Peru, Sedapal, 2017). Além disso, é destaque a redução da dependência das fontes andinas, sob constante conflito (Robert, 2019).

Reúso potável direto: o dever de pensar na potabilidade de efluentes como responsabilidade em políticas públicas de saneamento

Àquele insipiente, saciar a sede com uma água que há pouco fora esgoto sanitário, é causa de repulsa. A superação dessa ignorância, ou das reações psicológicas e institucionais que constrangem, ou podem constranger (Hespanhol, 2015; Maquet, 2020),na prática exige a superação de dois paradigmas fáticos: o da necessidade (que supera ao da aceitação) e o da tecnologia aplicável.

Em muitas regiões do país e do mundo o funesto cenário de escassez ou de estresse hídrico se torna ainda mais sombrio em função de questões climáticas e geográficas. Há significativa densidade populacional, mesmo em regiões proibitivas no que diz respeito à disponibilidade de recursos hídricos. Temos, portanto, a óptica da necessidade. Há situações, e cada dia nos depararemos com mais, de ausência de disposição de água doce suficiente para o abastecimento de regiões, cidades e países.

O segundo paradigma, o da tecnologia, enfrenta suspeitas naturais não enfrentadas pelo primeiro - da necessidade - que se mostra inquestionável. Primeiramente, exsurge sempre a indagação sobre alternativas. Há situações de inexistência total de fontes suficientes ao abastecimento humano, e há situações em que há a indagação sobre alternativas, como a dessalinização antevista.

A experimentação técnica e a experiência científica têm demonstrado que a dessalinização em muitos casos não é capaz de suprir demanda diante dos modelos de tratamento existentes que apresentam um alto custo e um alto impacto ambiental. O reúso de águas de efluentes domésticos, por sua vez, apresenta casos de única opção de uso, ou de uso mais eficiente diante das alternativas disponíveis.

Ele pode ocorrer - o reúso potável - de maneira direta (quando os efluentes são propositalmente e diretamente tratados para o alcance de níveis de potabilidade, que é o objeto deste artigo) ou indireta (planejada ou não planejada), que ocorre quando o efluente é descarregado no meio ambiente, e é injetado em fontes naturais subterrâneas ou é captado a jusante pelos sistemas de tratamento (sofrendo impactos de diluição natural e autodepuração), algo infelizmente recorrente e carecedor de melhor atenção científica, uma vez que os sistemas tradicionais não estão capacitados, fundamentalmente, para os chamados “poluentes emergentes”, compostos por fármacos, cosméticos, disruptores endócrinos e seus metabolitos,nanopartículas, hormônios sintéticos e naturais, entre outros (Hespanhol, 2015).

Enquanto reúso potável indireto não planejado exige uma via corretiva à realidade ambiental posta, aquele planejado exige enfrentamento da complexidade do ciclo hídrico e de adaptação dos sistemas, ademais dos obstáculos próprios do reúsopotável (Hespanhol, 2015). Um dos maiores e mais conhecidos modelos de reúso potável indireto planejado é o de Orange County, na Califórnia.

A proposta, aqui, é de reflexão sobre o reúso potável direto (RPD), que implica no tratamento de efluentes (domésticos) e sua incorporação em uma Estação de Tratamento de Água (ETA), para a distribuição em um sistema público, sem o positivo e adicional impacto de atenuadores ambientais (superficiais ou subterrâneos) ocorrente no modelo indireto (Hespanhol, 2015).

Relacionado ao RPD, algumas décadas de observação científica permitiram concluir que o tratamento dos efluentes por meio da adição ao modelo tradicional de tecnologias com membranas, radiação ultravioleta e osmose reversa, por exemplo, resulta em água dentro dos padrões legais e internacionais de potabilidade, sem problemas à saúde dos consumidores, e respeitando a economia circular tão preconizada. Sem embargo, Hespanhol (2015) destaca que a questão adjacente ainda reinante em setores conservativos é sobre a disponibilidade de tecnologias adequadas e técnicas de certificação que deem uma segurança objetiva.

Ainda que para o uso humano essa realidade se apresente distante - em regra geral - dentro da realidade brasileira para a maioria da população, os mais recentes indicativos de escassez e estresse hídricos recomendam a iniciação de reflexões sobre o tema, como já vem ocorrendo (Lahnsteiner, 2018).Tal como no método de dessalinização para a obtenção de água potável, há segurança sobre as tecnologias contemporâneas - já reconhecidas - e viabilidade econômico-financeira. Estudos apontam custos que variariam de US$ 0,57 a US$ 0,97 o m³ (Hespanhol, 2015), mostrando uma escala inferior aos encontrados nos sistemas de dessalinização de água do mar, que podem variar de US$ 0,75 a US$ 1,50 o m³ (Torri, 2015; Leal, 2020; Leitão, et al., 2020), somando-se a responsabilidade ambiental positiva, ao contrário dos grandes impactos que envolvem os métodos de dessalinização.

Propõe-se, aqui, foco na experiência namibiana (Windhoek) que é uma das mais consolidadas e referenciadas na literatura especializada (Hespanhol, 2015), conhecendo suas peculiaridades e sua perspectiva normativa.

A experiência da capital namibiana (Windhoek)

A Namíbia é o país mais árido da África subsaariana, com baixa e variada precipitação. É um dos países menos densamente povoados do mundo. Com 845.418 km², possui uma população de aproximadamente dois milhões e meio de habitantes.

De acordo com o Integrated Water Resource Management (IWRM) Plan for Namibia, da escassa precipitação, apenas 2% fica acumulado na superfície e 1% somente se torna disponível para recarregar as águas subterrâneas (Maquet, 2020). O saldo de 97% é perdido na evaporação (83%) e evapotranspiração (14%) (Namíbia.MinistryofAgriculture, Water and Forestry, 2010).

A disposição de água superficial é proibitiva para grande parte dos centros populacionais. No extremo sul, o rio Orange faz fronteira com a África do Sul, ao norte, os rios Zambeze e Okavango, que liga o país com Angola, Zâmbia e Botswana. Apenas o rio Cunene, no extremo norte, fornece água dentro de uma equação técnico-econômica possível aos aglomerados populacionais dessa região.

Esse cenário fez com que o país buscasse soluções alternativas e não convencionais de abastecimento para o consumo humano, como a dessalinização (Erongo/Swakopmund) e a reciclagem de água residual, proveniente de efluentes domésticos. Notadamente em Windhoek, a capital, para seus aproximadamente 300.000 habitantes.

Inserta numa realidade de escassez local e de fontes disponíveis insuficientes para fazer frente ao consumo, ainda quando a Namíbia - então Sudoeste Africano - era um protetorado da África do Sul, em 1968, a capital teve a iniciativa de recuperação direta (Lafforgue, 2016). Em 1992 e 1998 a planta de tratamento mereceu ampliações, sendo substituída em 2002 pela New Goreangab Reclamation Plant (NGWRP), que permitiu a substituição da planta antiga que então não mais se dedica ao tratamento para o consumo humano, mas à irrigação de parques e campos esportivos (Menge, 2018). De anteriores 4.300 m³/dia, produz atualmente 21.000 m³/dia, sob administração da WINGOC (Windhoek Goreangab Operating Company), concessionária privada formada pela participação de duas grandes companhias do setor privado: Veolia (67%) e Wabag (33%) (Namíbia.WINGOC, 2018).

Maquet (2020) proporciona, na fig 3, uma visão aérea da estação de tratamento referenciada, com características estruturais distintas daquelas tradicionais em aplicação no Brasil:

Fig. 3 - planta de tratamento de Windoek (Maquet, 2020)

Atualmente, não há outra cidade no mundo que utilize a água residual reciclada nessa escala de operação em Windhoek, e, por isso, também por sua cinquentenária experiência, é alvo de constantes estudos e citações (Hespanhol, 2015). O que faz dessa experiência ainda mais rara, é a modalidade de reúso potável direto (RPD) aplicada, na qual a água produzida é misturada com água superficial tratada em estações de tratamento de água convencionais e representa cerca de 35% da água potável da cidade em períodos normais e até 50% em períodos com oferta limitada de recursos hídricos (Kubler, et al., 2015). Outra excepcionalidade, é o fato de promover a separação física das redes de efluentes domésticos e industriais (Lahnsteiner, et al., 2018). Somente os efluentes domésticos refluem para o reúso potável direto (RPD). A solução para a separação da rede foi a separação geográfica de áreas industriais.

Por certo que o labor psicológico de aceitação do consumo humano de água de reúso direto teve de historicamente vir acompanhado de demonstrações técnicas precisas da segurança e qualidade da água posta à disposição dos consumidores (Maquet, 2020). Ao longo das décadas, extensos testes microbiológicos e toxicológicos comprovaram a segurança da água de Windhoek (Kubler, et al., 2015).

De acordo com Remmert (2016), logo após a independência, era evidente para o Estado que o apartheid, enquanto política, também impactava no setor de água, com um ordenamento desatualizado que não se alinhava com a nova ordem política que enfatizava explicitamente o acesso e a garantia de direitos humanos, assim como o acesso equitativo aos recursos naturais e às oportunidades para todos os cidadãos. Nas últimas três décadas, portanto, a Namíbia passou por inúmeras mudanças e reformas na legislação e na regulação do setor. Remmertelen caos seguintes documentos normativos:

The Water ACT n. 54 of 1956; The Namibia Water Corporation Act n. 12 of 1997; The National Water Policy White Paper 2000 (NWP); The Water Resource Management Act n. 24 of 2004; The Water Supply and Sanitation Policy 2008 (WSASP); The Integrated Water Resource Management Plan 2010 (IWRM); e The Water Resources Management Act n. 11 of 2013 (Remmert, 2016).

Dentro dos mais recentes, o Ministério da Agricultura, Água e Florestas da Namíbia, em seu IntegratedWaterResource Management Plan (IWRM), elenca como tripé chave o NWP e o WSASP, harmonizados com os princípios do próprio IWRM, que reconhece, no entanto, que muitos aspectos de suas políticas não haviam ainda sido completamente implementados em 2010.

Da leitura desse conjunto normativo, evidente o caráter programático e principiológico. Em 2008, 40 anos após o início da experiência do reúso potável direto, no NWP ainda se lê que procedimentos e diretrizes para o controle de qualidade de água deveriam ter sido implementados (Namíbia.MinistryofAgriculture, WaterandForestry, 2010). Mesmo em 2018, Lahnsteiner et al. (2018) dissertam sobre faltas de implementação de padrões e da condução contemporânea de revisões dos padrões, requisitos de monitoramento e exigências de qualidade. Salientam que para as especificações finais da água, houve socorro às diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS) de 1993, critérios de qualidade de água potável sul-africanos de 1996, além de diretrizes próprias da Namíbia de 1998, revisados pela capital namibiana com o objetivo de implementar mudanças na NGWRP (New Goreangab Water Reclamation Plant)

Notável, seguindo dentro do NWP, o estabelecimento do princípio da precaução em um sistema calcado na reutilização direta de efluentes para o consumo humano. A experiência no setor nos mostra que a perfeição e o alcance dos parâmetros ideais são sempre relativizados pelo avançar das descobertas científicas e das tecnologias aplicáveis.

Ademais, dilemas econômicos são sempre enfrentados considerando a capacidade de recursos e a natureza privada da exploração realizada em Windhoek. Como exemplo, mesmo que o modelo de osmose reversa seja o aplicado para as modernas experiências em RPD, o sistema namibiano nasce e segue com um esquema de barreira múltipla com osmose não-reversa, que se mostra representativo na medida em que a sustentabilidade e eficiência são aprimoradas (Lahnsteiner, et al., 2018).

Ainda, tem-se que em 1996, apesar da obviedade de que as membranas seriam preferidas como uma etapa primária do tratamento para remover matérias em suspensão, os custos muito altos e a falta de registros confiáveis da vida útil das mesmas conduziram à solução alternativa a partir de estudos internacionais, implicando na adoção de uma combinação de ozônio, adsorção biológica e carvão ativado granular (Du Pisani & Menge, 2018).

Estudo do Australian Water Recycling Centre of Excellence destaca que até 2002, lançamento da NGWRP, inexistiam diretrizes oficiais para o reúso potável direto adotadas na Namíbia, havendo a aplicação de uma combinação ou compilação de diretrizes setoriais nacionais e internacionais (Onyango, et al., 2014).

As diretrizes e padrões para a segurança da água potável fornecida se sustentam elementarmente pelo acordo de gestão privada firmado entre governo e concessionária, com penalidades financeiras previstas em caso de desconformidade com base em instrumentos on-line de medição e análises laboratoriais. Combinado com modernos sistemas supervisórios, em 2005 a vigilância regulatória das operações da NGWRP passa pelo Bureau Veritas (BV) - órgão regulador independente - com base nos sistemas de gestão de qualidade ISO 9001, e pela análise de perigos e pontos críticos de controle (Hazard Analysi sand Critical Control Point - HACCP). Há auditoria independente anual, e a certificação do esquema é realizada a cada três anos. Além disso, a NGWRP possui um programa contínuo de monitoramento de pesquisas em saúde que conduz projetos em áreas de virologia, toxicidade, mutagenicidade, produtos farmacêuticos, entre outras, supervisionadas por um comitê de direção de pesquisa que se reúne anualmente para avaliar as necessidades de pesquisa (Onyango, et al., 2014).

Postando-se como a primeira grande experiência mundial de RPD, o case Windhoek se mostra como vitrine para as acionistas da WINGOC (Windhoek GoreangabOperationCompany), Veolia e Wabag. Percebe-se que a gestão e a segurança do sistema atrelam-se mais a princípios, diretrizes, e padrões de governança corporativa e compliance aplicados ao setor, que nomeadamente de marcos legislativos autóctones, marcados - os principais - por um caráter eminentemente programático.

Du Pisani e Menge(2018) dissertam que mesmoquando da concepção da NGWRP nãohaviamdiretrizes e padrõeslocalmentesistematizados, o que exigiuoupermitiua compilação de inúmerasfontesnacionais e essencialmenteinternacionais, como as que destacam: • Guidelines for the Evaluation of Drinking water for Human Consumption (1991) Dept. of Water Affairs, Namibia (Namibian Guidelines 1991); • Potable Water Quality Criteria (Rand Water 1994); • WHO Drinking Water Guidelines (WHO 1993); • The National Drinking Water Standards and Health Advisories USEPA (USEPA 1996); • The European Community Guidelines for the use of water for human consumption (80/778/EWG) (1980 and 1994 draft) (EC 1980); • A guide for the planning, design and implementation of a water reclamation scheme (Meiring & Partners 1982).

E, inobstante as dúvidas sobre a técnica efetivamente mais adequada (osmose reversa, não-reversa etc.), o fato é que os inúmeros estudos observados apontam para a segurança do modelo RPD, resultando necessária a superação da percepção e aceitação públicas àqueles que almejem ou necessitem avançar para esse modelo, algo conquistado pela WINGOC, inobstante se exija constante renovação da imagem de segurança.

Uma discussão sobre as experiências e as perspectivas dos modelos

As soluções alternativas de abastecimento de água para consumo humano surgem, diante dos custos, das complexidades estruturais e das barreiras psicológicas - como no RPD - da necessidade. No RPD, países como a França, inadmitem por questões sanitárias (Lafforgue, 2016); no Brasil, o sentimento nacional de suficiência hídrica desponta como justificativa à incipiência no tema. Em ambos os casos, há falta de políticas públicas com perspectivas de longo prazo.

A crise hídrica, presente e com projeções sombrias, se apresenta - também - como consequência das mudanças climáticas, que impactam no aumento da intensidade, frequência e duração dos extremos climáticos, com variações das temperaturas urbanas, secas, inundações costeiras, aumento do nível do mar, variação na concentração de chuvas, entre outros efeitos que impelem os governos à inovação na gestão dos recursos hídricos e serviços de abastecimento de água.

O direito à água potável é um direito humano (assim reconhecido pela ONU), essencial para a saúde, qualidade de vida e a própria sobrevivência. Ainda que Paz et al. (2021) reconheçam - acertadamente - a água como um bem comum, um recurso de compartilhamento compulsório, e disponham que, em ambiente capitalista dominante, a água faz parte de um regime de utilização não capitalista, os últimos fenômenos do setor apontam para uma intensa mercantilização.

Infelizmente, o cenário brasileiro, notadamente após a aprovação da Lei n. 14.026/2020 (que altera a Lei n. 11.445/2007), é de prestígio à privatização, incorporando-se princípios capitalistas aos serviços de saneamento, com a mercantilização avançando sobre requisitos do que se classifica como direito humano. E, seja sob qual perspectiva se considere instalada no Estado brasileiro, a água segue sendo distribuída de forma injusta e desigual (Paz, et al., 2021).

A dimensão da qualificação da água enquanto direito humanose apresenta em escala superior até mesmo daqueles considerados fundamentais; o direito humano pertence à própria natureza humana, de caráter inviolável (dimensão jusnaturalista-universalista); o direito fundamental seria aquele objetivamente vigente numa ordem jurídica concreta.

Esse status “jusnaturalista-universalista” não anula a importância de que esse direito seja reconhecido constitucionalmente, e que seja tratado como bem comum alheio a princípios mercadológicos. Muitos países, como África do Sul, Bolívia, Colômbia, Congo, Etiópia, Equador, Gâmbia, Nicarágua, Níger, Quênia, Uruguai, Zâmbia e Zimbábue, consagram em suas constituições de forma explícita o direito à água (Melo, 2019). Aqui, ao nosso lado, Uruguai, Equador, e Bolívia insculpiram em suas constituições o impedimento à privatização dos serviços de água.

Essas perspectivas sociojurídicas assumem relevo no ambiente das alternativas - ou via única a depender da situação geográfica - de abastecimento humano; a questão de custos, na hipótese de opção única, é absolutamente superada diante de um direito humano essencial à sobrevivência.

No campo das opções, de variedade de fontes, a dimensão dos custos assume relevância, o que não importa desconhecer, no âmbito da formulação das políticas públicas, as dimensões de médio e longo prazo que podem tornar o ambiente “alternativo” ou “opcional” em uma fonte suplementar ou exclusiva de abastecimento. Considerar o metabolismo urbano é condição primária para o êxito das políticas relacionadas.

Do que se extrai da prática de RPD, as modernas tecnologias, sistemas de controles e certificação apresentam um cenário possível e seguro de opção e implementação, inclusive com impactos ambientais positivos (Hespanhol, 2015; Kubler, et al., 2015), a se considerar, no desenho das políticas públicas, a questão psicológica (Hespanhol, 2015), de forma a não retrair o consumo ou mesmo impedir a implementação. O paradigma de Windhoek parece ter superado as barreiras psicológicas e econômico-financeiras, a considerar que não se trata de um mercado de alto poder aquisitivo, e ser uma experiência cinquentenária.

No Brasil, pelo - equivocado - culto à suficiência hídrica eterna a matéria carece de normatizaçãoe de evidência de políticas públicas seminais que considerem a opção em médio e longo prazo, ignorando-se os sinais climáticos.

A dessalinização, a seu turno, em modelo apropriado às cidades litorâneas, e que não sofre a barreira psicológica do RPD, vêm sendo mundial e nacionalmente disseminada. No Brasil são milhares de pequenos sistemas dessalinizadores, com núcleo em pequenas comunidades na região semiárida nordestina, inclusive através de políticas públicas federais, como ocorrido por meio do programa Água Doce, que em 2019 atingiu o número de 651 pequenas plantas (Bertoncello, et al., 2021). No mundo, dados de 2018 indicavam mais de 20 mil usinas de dessalinização em 150 países, enquanto apenas dois tratavam do RPD, ainda que outros poucos adotem o RPI (Leitão, et al., 2020).

Desfavorece ao modelo, entretanto, dentro de uma relação com o RPD e os modelos tradicionais (quando tratamos de opção e não de via única), a geração de impactos ambientais, muito relacionada com aspectos energéticos e de resíduos, fundamentalmente com o grandioso volume de salmoura produzida (Santos, 2013;Bertossi & Robert, 2019; Leitão, et al., 2020).

Traçando-se um comparativo entre os modelos, resultados sugerem, sob os prismas ambiental e econômico, que o RPD desponta como de melhor desempenho para complementação em situações de crise hídrica. Os custos de implementação, dentro de uma capacidade de 1,0 m³/s apresentaram mais de 400% de diferença favorável ao RPD, e um custo de operação (energia, mão de obra, operação e manutenção) que alcança os R$ 1,40 o m³ em RPD, e R$ 4,21 em dessalinização(Leal, 2020).

O paradigma peruano de dessalinização em grande volume e representatividade é ainda incipiente, exigindo respostas futuras. Inobstante tenha sido um projeto apontado como de satisfação a um ambiente urbano de maior poder aquisitivo (Bertossi & Robert, 2019), há de se considerar a sua viabilidade - em tese - à realidade de um país como o Brasil, com identidade de IDH, e que possui um PIB significativamente superior.

Em comum nesses dois projetosa participação do setor privado como incorporador ou importador de novas tecnologias, que se apresentou como solução a brechas públicas que exigiam novas - e extraordinárias - fontes de abastecimento humano. Essa participação privada não poderá, sem embargo, ser presença imposta aos países em desenvolvimento para acesso à fundos internacionais, tampouco impor uma perspectiva mercadológica ao produto final, classificado, como vimos, como um direito humano.

Conclusões

A desigualdade na distribuição desse escasso bem comum, a sua constante inacessibilidade, com mais de dois bilhões de pessoas sem segurança de disposição hídrica, e o sombrio cenário de perspectiva de evolução demográfica paralela à redução de fontes de água doce limpas e disponíveis, exige dos Estados um abandono a qualquer visão economicista sobre a água e uma responsabilidade transgeracional. É fato que muitos ainda beberão, com segurança, daquilo que hoje lhes dá repulsa.

Por certo que os custos ou despesas inerentes a essas soluções alternativas à garantia do direito humano à agua devem ser sopesados sob esse viés de encerramento de brechas públicas inerentes, mas não sob uma perspectiva de mera sustentabilidade econômico-financeira dos serviços públicos, diante do risco de que tais políticas sejam direcionadas exclusivamente às comunidades mais ricas e atrativas especialmente ao setor privado, tal como objeto do PROVISUR.

As premissas vigentes em Windhoek que tornam a necessidade como fator que se sobrepõe a uma ortodoxia do uso da precaução são distintas da realidade brasileira contemporânea, o que aparenta justificar (?) nossa incompletude normativa e incipiência mesmo na abordagem do reúso direto não-potável. Sem embargo, a grande disponibilidade hídrica proporcional encontra obstáculos em um país de proporção continental, havendo uma má distribuição dessa riqueza por razões geográficas e de investimentos, assim como a contaminação de muitos dos mananciais que cortam os centros urbanos, não raramente sucedendo nas zonas rurais de plantio, em função dos agrotóxicos, por exemplo.

O RPD surge, então, como uma solução de fuga do padrão de economia linear para a economia cíclica, afinada com a sustentabilidade e o conceito “cradletocradle” (do berço ao berço). Entretanto, ele surge, em função do princípio da precaução, ou da confrontação risco-benefício, da configuração de efetiva necessidade. No Brasil ele depende da superação das etapas de descontaminação ou despoluição de mananciais disponíveis e de investimentos que possam superar as barreiras geográficas e o planejamento urbano ineficiente, ou mesmo inexistente em determinadas regiões.

Contudo, dada a essencialidade da água potável à vida e ao desenvolvimento, toda perspectiva contingencial é mínima, e a saturação das reservas em inúmeras regiões se encontra em um futuro cada vez mais próximo. Nem todas as possibilidades resolutivas são aquelas desejáveis pelos planejadores públicos; há desafios que precisam enfrentamento, exigindo pragmatismo.

A crise hídrica global aguçou o interesse internacional sobre o tema, e mesmo que países como Namíbia, Singapura, e EUA, por exemplo, já estejam em passos adiantados, persistem obstáculos relacionados ao tema reúso: percepção ou aceitação públicas;padronização de soluções técnicas; segurança de monitoramento (falhas de operação impõem sérios riscos à saúde pública); falta de consenso sobre questões regulatórias, políticas e de melhores práticas; custos e planejamento para a inclusão do RPD e RPI nas estratégias integradas de abastecimento de água.

A maior ênfase será colocada no gerenciamento de riscos à saúde em um nível no qual a aceitação pública possa ser obtida e, no qual, se acresce, o Estado possa ser garantidor.

O fato é que o RPD, tal como no paradigma namibiano (cuja legislação ainda segue curso evolutivo), não vigora no campo alternativo, mas sim tem razão de existência nas áreas sem opções de abastecimento, mesmo que as tecnologias vigentes e as experiências de décadas sem efeitos negativos conhecidos à saúde coloquem o RPD como solução válida e viável de existência, se confirmados os cenários mais sombrios de escassez.

A dessalinização, a seu turno, igualmente não surge como panaceia à problemática de disponibilidade hídrica. Numa face, a incomensurável fonte oceânica; noutra, a sua mácula no ciclo hidrológico pelos impactos ambientais que proporciona. Surge, entretanto e assim como o RPD (que mais positivamente impacta no ciclo hidrológico), como movimento paralelo de garantia; e, paralelo, tomando em consideração que a política pública primeira é aquela que combata a poluição e preserve todo o enredo ambiental no entorno da água doce disponível.

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Recebido: 18 de Fevereiro de 2022; Aceito: 25 de Outubro de 2022

*Autor para correspondencia. E-mail: haneron@casan.com.br

Los autores declararon no tener conflictos de intereses.

Los autores participaron en el diseño y redacción del trabajo, y análisis de los documentos.

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