Introdução
As glândulas salivares são locais incomuns de acometimento de lesões, compreendendo de 2 % a 6 % dos tumores da região de cabeça e pescoço. Apesar da baixa prevalência, tem-se uma ampla diversidade de lesões, fazendo com que atualmente a Organização Mundial de Saúde (OMS) reconheça cerca de 30 subtipos de tumores de glândulas salivares,1,2,3 os quais apresentam significativas variações geográfica e racial na incidência, localização anatômica e tipo histológico.4
O adenoma pleomorfo é a neoplasia benigna mais comum de glândula salivar, e a mais comum de glândula parótida. Apresenta uma prevalência maior no sexo feminino, podendo ocorrer entre a 5ª e a 7ª décadas de vida, sendo raro em crianças e adolescentes.5 O palato é a localização intraoral mais comum, seguido pelo lábio superior e mucosa jugal. Apresenta-se como uma massa nodular, geralmente indolor, de crescimento lento, superfície lisa, com alguns casos apresentando superfície ulcerada.6,7
Histologicamente, observa-se uma proliferação neoplásica de células epiteliais, (também chamadas de células luminais ou ductais) e mioepiteliais (ou não-luminais), em meio a um estroma que pode mostrar uma variedade de padrões, desde colageneizado, frouxo, hialinizado, a condroide. Devido essa variabilidade de estroma, as lesões podem mostrar características semelhantes a outras neoplasias de glândulas salivares e, assim, dificultar o diagnóstico.5,7,8 Algumas lesões podem apresentar um componente cístico maior, o que clinicamente pode apresentar uma coloração mais azulada, assemelhando-se a uma mucocele ou a um carcinoma mucoepidermoide.7
Embora o adenoma pleomorfo seja classificado como um tumor benigno, sua recorrência, após tratamento inicial pode ser significativo, variando de 0,4 % a 45 %. Esse índice de recorrência gera uma preocupação, pois estudos vêm mostrando uma associação entre o risco de transformação maligna em um carcinoma ex-adenoma pleomorfo e a alta taxa de recidiva.9,10
Diante do exposto, o objetivo deste trabalho é relatar um caso clínico de adenoma pleomorfo, com enfoque em suas características clínico-patológicas, diagnóstico diferencial e manejo clínico.
Relato de caso
Paciente do sexo masculino, 71 anos de idade, compareceu ao serviço de Cirurgia Buco-Maxilo-Facial da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Natal, Rio Grande do Norte, Brasil) com a queixa principal de “tem uma bola aqui na boca”, a qual provocava um aumento de volume extraoral (Fig. 1A). Ao exame físico intraoral não era visível alteração de aumento de volume ou alteração de cor em mucosa, porém, à palpação notou-se a presença de uma lesão nodular, bem delimitada, de aproximadamente 3 cm, localizada em região de fundo de vestíbulo maxilar esquerdo, na região dos dentes 25, 26 e 27. Com um tempo de evolução de cerca de 4 anos, a lesão exibia coloração normal da mucosa, superfície lisa e regular, consistência borrachoide, inserção do tipo séssil, leve mobilidade e, à compressão, o paciente relatava sintomatologia dolorosa.
Ao exame radiográfico, nenhuma alteração digna de nota foi observada. Foi solicitado, então, exame de ultrassonografia, a partir do qual se verificou a presença de nódulo hipoecoico, heterogêneo e bem delimitado, apresentando dimensões de 2,1 cm x 1,9 cm em região adjacente ao pilar zigomático-maxilar esquerdo, limitada a tecidos moles, sem envolvimento ósseo (Fig.1B). A partir dos achados clínicos e imaginológicos, as hipóteses diagnósticas de lipoma, adenoma pleomorfo e hiperplasia linfoide foram consideradas.
A biópsia excisional foi realizada em ambiente ambulatorial, sob anestesia local, por meio de incisão intraoral em mucosa sobrejacente à lesão e divulsão dos tecidos para sua exposição. Durante o procedimento, a lesão mostrou-se de coloração amarelada, com aspecto encapsulado e sendo facilmente enucleada (Fig. 1C). Após exérese, o espécime mostrou-se flutuante quando imerso em recipiente contendo formol a 10 %, reforçando a hipótese clínica primária de lipoma.
Contudo, ao exame histopatológico observou-se a presença de uma neoplasia benigna de glândula salivar, caracterizada pela proliferação de células epiteliais, formando múltiplas estruturas ductais, e mioepiteliais em meio a um estroma variável. As células mioepiteliais apresentavam aspectos variados, ora de forma arredondada, ora plasmocitoide ou estrelada. Células claras também foram evidenciadas em meio à lesão. O estroma de tecido conjuntivo mostrava-se variado, exibindo os tipos fibroso, hialino, condroide e mixoide. A partir desses achados, o diagnóstico histopatológico de adenoma pleomorfo foi emitido (Fig. 2). Após 1 ano, o paciente se encontra em acompanhamento, sem quaisquer sinais ou sintomas de recidiva da lesão (Fig. 3).
Discussão
Diversas lesões, das mais variadas etiologias e aspectos clinico-patológicos, podem acometer a região de cabeça e pescoço. O adenoma pleomorfo é a neoplasia de glândula salivar mais prevalente e apresenta uma elevada taxa de recorrência. (4, 11) Por isso, estudos e relatos de casos que ressaltem os aspectos clínicos, histopatológicos e terapêuticos dessa neoplasia são de grande relevância clínica, possibilitando, assim, diagnóstico e manejo clínico adequados.
O adenoma pleomorfo acomete indivíduos de uma ampla faixa etária, com pico de incidência entre a segunda e a terceira décadas de vida.5 A parótida é o sítio extraoral mais acometido, enquanto que, intraoralmente, o palato é mais comumente afetado, consistindo, nesses casos, em um aumento de volume indolor.4 No presente caso, o aspecto clínico, a localização incomum e a presença de dor à palpação reforçam o fato de que o adenoma pleomorfo pode apresentar-se clinicamente de forma variada, mediante alguns fatores, tais como localização da lesão, raça e localização geográfica. Além disso, evidencia-se que os aspectos clínicos e cirúrgicos são, na maioria das vezes, insuficientes para o diagnóstico eficaz de determinada lesão. Como exposto, o fato de o espécime excisado ter flutuado em formol reforçou a hipótese diagnóstica de lipoma. Isso mostra que o diagnóstico clínico por vezes pode ser desafiador, uma vez que as características clinico-cirúrgicas podem se sobrepor a sinais clínicos de outras lesões que afetam o complexo maxilofacial.6 No caso clínico em questão, a biópsia excisional foi realizada e o espécime obtido foi enviado para análise anatomopatológica, procedimento este essencial para uma melhor acurácia diagnóstica, guiando, assim, a adoção de um tratamento mais eficaz.
Dentre as peculiaridades do adenoma pleomorfo cita-se a ampla variedade de padrões histológicos que podem ser evidenciados em um mesmo tumor.5 Essa complexidade morfogênica é atribuída à diferenciação das células tumorais em tecido fibroso, hialinizado, mixoide, condroide e até ósseo, 7 havendo possibilidade de confusão na interpretação histológica, principalmente em pequenos espécimes provenientes de biópsias incisionais.12 Adicionalmente, essa neoplasia compartilha algumas características que são comuns em outros tumores de glândulas salivares, benignos e malignos,13 fazendo-se necessária uma avaliação cuidadosa, de modo a descartar a possibilidade de outras neoplasias mais agressivas.14) Ressalta-se, então, a importância de conhecer de forma detalhada os diversos padrões morfológicos do adenoma pleomorfo para que, em associação com os achados clínicos, seja possível a obtenção de um diagnóstico preciso. No caso em questão, o espécime apresentava diversos tipos de estroma, dentre eles o fibroso, mixoide, hialino e cartilaginoso, conferindo a heterogeneidade característica do adenoma pleomorfo.
Entretanto, em algumas situações, especialmente em pequenas biópsias ou em casos desafiadores nos quais a histologia e a imuno-histoquímica por si sós não são suficientes, pode-se lançar mão de algumas técnicas que auxiliem no diagnóstico adequado. Dentre elas, incluem a hibridização de fluorescência in situ e a reação em cadeia da polimerase. Por outro lado, a utilização de anticorpos primários para a identificação de produtos gênicos aberrantes específicos do adenoma pleomorfo é bastante útil, como PLAG1 e HMGA2.7,15
De modo geral, o prognóstico geralmente é bom. Entretanto, alterações metaplásicas ou displásicas podem estar presentes. O carcinoma ex-adenoma pleomorfo, por exemplo, é uma neoplasia maligna que surge a partir de um adenoma pleomorfo primário ou recorrente, por vezes tratados inadequadamente. A natureza da cápsula, conhecida por emitir extensões microscópicas do tipo pseudópode nos tecidos circundantes, favorece o surgimento de recorrências. Dessa forma, o tratamento mais adequado para o adenoma pleomorfo consiste na excisão cirúrgica completa, de modo a evitar o rompimento capsular. A enucleação inadequada ou a ruptura da cápsula tumoral durante a excisão também pode predispor ao desenvolvimento de recorrências locais.5,6,7 Por conseguinte, embora classificado como um tumor benigno, a incidência de recorrência após o tratamento é significativo e varia amplamente devido a diferenças na técnica cirúrgica.(10, 16) No presente estudo, o paciente foi submetido à excisão cirúrgica da lesão, a qual foi bem sucedida, sendo a mesma removida completamente. O paciente encontra-se em acompanhamento há um ano, com ausência de recidivas.
Assim, a partir da obtenção de uma maior acurácia diagnóstica, torna-se possível a adoção de medidas terapêuticas adequadas e personalizadas para cada situação, diminuindo, assim, as taxas de recorrência e o risco de transformação maligna. Por isso, mesmo diante de uma conduta terapêutica adequada, o acompanhamento a longo prazo de pacientes diagnosticados com adenoma pleomorfo é indispensável. portanto o conhecimento da diversidade de células, arquitetura e características morfológicas presentes no tumor é muito essencial para o diagnóstico correto.